quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Um velho amigo

O Sr. Manuel esteve no SO, antes de ser internado no nosso serviço. Conheci-o ainda no SO. Ele estava no Hospital por uma pneumonia, mas tinha bastantes doenças de base. Uma delas era a Doença de Alzheimer. E foi essa que me surpreendeu.
Quando o cumprimentei, com um sonoro "Bom dia!!", arranquei-o ao sono superficial em que se encontrava. Surpreendido, esboçou um enorme sorriso, fingindo claramente um reconhecimento da minha pessoa. Acenou-me com a cabeça, dizendo muitas palavras (seriam?) ininteligíveis que soavam ao cumprimento que se dá a um velho amigo. Sorri de volta, ao que ele apontou para o braço direito, paralisado por um antigo AVC, dizendo "Já viste? O coiso... o... coiso!", e abanava a cabeça com uma expressão de aborrecimento por aquilo lhe ter acontecido. Perguntei-lhe então o nome, e a resposta que obtive foi um pequeno momento de introspecção, seguido de "coiso, ai... é... ai... coiso! Espera, ai...". Tentava repetidamente dizer o próprio nome, mas não conseguia de facto dize-lo... Nesse instante fui chamado ao exterior da sala, pelo que saí e voltei a entrar passados dois minutos. Ao ver-me entrar chamou-me de longe, parecia ter algo importante para me dizer, aflito para não perder as palavras. Agarrou-me então na mão, e disse cuidadosamente "Manuel... ai! Pe... Pereira Silva!". Abriu então um rasgadíssimo e francamente orgulhoso sorriso, ao que foi impossível responder-lhe de outra forma senão com outro sorriso e um "muito bem, Sr. Manuel, é isso mesmo!".
Já no serviço voltei a observa-lo em dois dias consecutivos. Em ambos me cumprimentou efusivamente, como da primeira vez, nitidamente fingindo o reconhecimento de que não era capaz. Eu não voltei a repetir a pergunta. Limitei-me a cumprimenta-lo de volta como a um velho amigo, o que o parecia deixar satisfeito por não ter deixado de se alegrar pela presença de uma recordação que tinha há muito perdido.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Não sou poeta

Recordo, sorrindo, o frio.
Apesar da geada que hoje pintou de cristal fosco os vidros,
Eu sei que o frio, o nosso, é passado.
Sorrio, que mais, porque não preciso já da tua recordação,
Da recordação da tua paixão,
Para perder o frio.
Estiveste comigo esta noite,
Esquecendo o frio, o teu e o meu,
Como em tantas outras noites, todas.
E espanto-me ao olhar para ti, conhecendo-te de cor,
E vendo a cada olhar uma surpresa
Que me recorda o quanto te quero, todas, todas as noites.
Poderia haver a melancolia,
Tendo-te aqui todas as noites,
De te reconhecer sempre do mesmo modo.
Poderia até haver o enfado,
Tendo-te em mim todas as noites,
De uma triste monotonia.
E por isso me espanto,
Por não precisar da tua recordação para deixar de ter frio.
Por me bastares tu, aqui, todas, todas as noites,
Uma paixão presente ao invés de prometida,
Uma história vivida, muito mais que imaginada.
E se a paixão inflamada do poeta precisa do frio para sobreviver,
Da distância para estar mais perto,
A nós basta-nos estar, todas, todas as noites,
Juntos.
Por não ser poesia não sofrer,
Não sou poeta.
Amo.