terça-feira, 31 de janeiro de 2006

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Ambição

Há já alguns dias ao preparar-me para ver os doentes na enfermaria, deparei-me com o processo clínico de uma velhota de 84 anos, a D. Ilda. Estava internada para investigação de uma anemia importante, com valores que a impediriam concerteza de fazer uma vida normal. Ainda por cima aos 84 anos, quando a definição de vida normal das pessoas está geralmente já alterada. Tinha ainda uma doença das válvulas do coração, que lhe limitaria concerteza ainda mais a actividade física.
Quando entrei no quarto olhei para a cama 2, onde devia estar a D. Ilda, e não a vi. Os lençóis esvoaçavam, enquanto uma auxiliar e outra senhora os desdobravam vigorosamente para fazer a cama. Olhei para o cadeirão ao lado da cama, na esperança de a encontrar, e nada. Dei uma olhadela de longe à doente da cama 3, fechada em mundos interiores, e cumprimentei a doente da cama um, a aniversariante do outro dia. Dando pela minha presença, a auxiliar que fazia a cama sorriu e disse: "Está a ver, doutor? Até já as doentes ajudam a fazer a cama!!". Olhei uma vez, sem ter percebido bem o que me havia sido dito, e voltei a olhar quando finalmente percebi. Era a D. Ilda que fazia a cama com a auxiliar, com uma genica fora de série. Comentei, banzado, a força dela, e disse em tom de brincadeira que já estava pronta para ir embora. Ela olhou para trás, e apercebendo-se do meu ar espantado exclamou: "Doutor! Eu tenho 84 anos! Veja lá se não me estraga, quero viver pelo menos até aos 100! A minha avó foi aos 120, estou nas suas mãos!". Sorri, e respondi-lhe que concerteza não seria eu a espantar-lhe a ambição!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

Um cenário diferente

Há alguns dias atrás aconteceu algo no meu serviço de Medicina Interna que me surpreendeu. Uma doente de 34 anos, que nas últimas semanas nos tem dado água pela barba para perceber que doença tem, fez 35 anos. Ao saber desta notícia, e antes de algum médico a ter visto naquele dia, os meus chefes resolveram fazer-lhe uma surpresa. Pediram à secretária de unidade para comprar um bolo, pago pelos membros do serviço individualmente. A poucos minutos de iniciar um jejum necessário para um exame que ia realizar essa mesma tarde (exame esse que se revelou fulcral para o diagnóstico), todo o serviço irrompeu pelo quarto dela com o bolo e duas velas, cantando-lhe os parabéns. Chefe de Serviço, equipa médica, enfermeiros e auxiliares, todos interromperam as suas tarefas para entoar o "parabéns-a-você" em redor da cama dela, todos com uma pontinha de emoção. Também ela se emocionou (apesar de estar um pouco ensonada por causa da medicação), e agradeceu a surpresa. Um cenário diferente, nada habitual num local geralmente mais silencioso. Eu só me lembrava dos cartazes antigos em que uma enfermeira de dedo espetado pedia aos utentes "Shhhh! Está num hospital!". Mas as regras fizeram-se para ser quebradas de quando em vez, não é? E valeu a pena.

Ontem morreu uma cigana

Ontem morreu uma cigana.
Não era uma cigana qualquer, era uma cigana aliás muito diferente de todas as outras. Ao contrário da maioria não tinha um séquito de familiares ansiosos por saber dela. Os seus familiares não perguntavam por ela, não a visitavam no hospital. Recusaram-se aliás a aparecer quando ela já não precisava de ficar no hospital e tinha alta médica dada. Passou várias semanas internada no hospital, exclusivamente como caso social. Sem uma única visita. Nas últimas semanas estava cada vez mais distante do mundo, e ontem acabou por morrer. Ao contrário da maioria das ciganas, sozinha. Porque, ao contrário da maioria das ciganas, tinha casado com um português.

domingo, 8 de janeiro de 2006

O Natal dos hospitais

O verdadeiro Natal dos Hospitais pouco tem de Tony Carreira, Anjos ou Toy. É feito de muitas histórias tristes, que nem a aparente alegria despreocupada da música dita "pimba" consegue esconder.
O Serviço de Urgência estava, no dia 23 de Dezembro, repleto de "utentes". Uso também eu o popular eufemismo porque havia de facto bastantes utentes-não-doentes. O tradicional despejo de Natal, geralmente invisível aos olhos da maioria, apresentava-se em todo o seu esplendor no chamado "corredor externo" do SO. Em fila indiana, as macas com os chamados casos sociais acumulavam-se. Os processos clínicos eram inequívocos, os motivos de internamento eram os mais estranhos, mas todos gritavam uma palavra: abandono. Centenas de "velhotes" são todos os anos abandonados no Serviço de Urgência, sem história pregressa, sem vida de relação com o exterior, sem família. Correcção: com família desertora. O Natal é o culminar desta tendência, e este não foi excepção. Na maca 3 estava o Sr. Amaro, trazido pela família por "mau-hálito". O estado de desnutrição e desidratação, aliado ao facto de o Sr. Amaro viver num mundo apenas partilhado consigo mesmo, fechado para o exterior, obrigava à realização de análises laboratoriais. O mau-hálito não se confirmou, e a promessa de permanência para avaliação laboratorial encorajou os familiares ao desaparecimento. O número de telefone falso obrigou à permanência do Sr. Amaro na maca 3 do SO, rotulado como caso social, apesar da practicamente normal avaliação analítica...
Uma outra face do Natal no hospital é o internamento. Na cama 2, a D. Josefa olhou para mim com um ar desolado, no dia 24, quando lhe disse que não estaria ainda em condições de ir passar o Natal a casa. A dependência de oxigénio que uma pneumonia lhe causava impedia-a de se afastar do hospital. A sua família iria concerteza passar a consoada sem ela, uma consoada mais triste e sombria que as anteriores. No entanto a D. Raquel, na cama 3, estava já clinicamente melhorada - também ela de uma pneumonia. Estava em condições de, ela sim, passar a consoada com a família. Quando lho disse não sorriu, fez antes uma cara apreensiva. Explicou-me que as filhas estavam na Bélgica, que vivia sozinha, e que a relativa dependência de terceiros que ainda apresentava não lhe permitia ir para casa. A D. Josefa, quando saí do quarto, deixava cair uma lágrima de triste revolta pela face.

Este é o verdadeiro Natal dos Hospitais, ou antes uma pequena amostra...