domingo, 24 de outubro de 2004

Um caso "daqueles"

Há algum tempo, estagiava eu num serviço de Ginecologia e Obstetrícia, passou-me pelas mãos um caso "daqueles"... Daqueles que todos desejávamos que fossem menos frequentes...
Estava no Serviço de Urgência de Gin-Obst quando chegou uma ficha de uma rapariga de 13 anos. Vinha com a mãe, e vinha absolutamente em pânico. Chorava copiosamente e a mãe trazia um olhar carregado. A mãe contou a história por ela: ela tinha chegado a casa essa tarde e sangrava abundantemente da vagina. Tinha engravidado havia algum tempo, confessou-nos, mas tinha escondido essa gravidez dos pais durante todo esse tempo. Nessa tarde tinha ido a uma "clínica" clandestina onde faziam abortos. Tinham-lhe perguntado de quantos meses era a gravidez, ou seja, há quanto tempo tinha tido a última menstruação. Ela tinha perdido sangue pela última vez 2,5 meses antes. Como tal, na "clínica" deram-lhe comprimidos abortivos, remédio suficiente para 2,5 meses de gestação. E o resto da história já sabem, chegou a casa a sangrar abundantemente.
Fizemos a observação e uma ecografia, e tudo conferia à excepção de um ponto importantíssimo: o tempo de gestação. O feto tinha 5 meses de gestação, e não 2,5... Perguntada bem a história, tinha de facto tido uma pausa na menstruação, depois teve um sangramento há 2,5 meses e de então para cá nada mais.
5 meses é tempo demais para este método abortivo, e a rapariga não reagiu nada bem quando lhe explicaram que ia ter um parto e não um aborto... Demonstrou aliás a óbvia (e necessária, tinha 13 anos!!) falta de maturidade para estar envolvida naquela situação... Algumas horas de trabalho de parto depois a criança nasceu, para morrer breves instantes depois. Feliz ou infelizmente?...

Este é apenas um dos muitos casos que envolvem as clínicas clandestinas de aborto... Alguns acabam pior, com a morte das mães nos hospitais para onde correm após o aborto mal sucedido... Outros resultam em partos também, de crianças com malformações permanentes e gravíssimas...

Contra o aborto? Sou. Todos somos. Mas acima disso sou a favor do rigoroso aconselhamento familiar aliado à existência da possibilidade de realização de abortos em condições técnicas, científicas e sociais adequadas, nos hospitais.

Sintam-se à vontade para comentar! Este espaço também se pretende de discussão, e tenho a certeza que ninguém fica indiferente a este tema tão polémico.

sábado, 23 de outubro de 2004

Uma imagem bonita. Algo mais?


Posted by Hello
Esta fotografia foi tirada durante uma cirurgia intrauterina. Pretende, a cirurgia, corrigir ainda in-utero malformações fetais importantes e que têm que ser corrigidas no período pré-parto.
O que é lamentável é que esta imagem, bastante bonita por sinal, seja usada em campanhas relacionadas com o aborto...
Quanto ao aborto, podem contar com futuros posts dedicados a este tema...

Sentir vs. mostrar

«Kirsti A. Dyer, MD, MS, a primary care doctor in northern California who presented the talk "Dealing With Death and Dying in Medical Education and Practice" at the American Medical Student Association's (AMSA) 51st Annual Convention in March 2001, remembers her own rude awakening to this lack of guidance in end-of-life care. As a medical student at University of California, Davis, from 1988 to 1992, her training amounted to little more than negative reinforcement of any emotional expression in the face of death. She recalls the disapproving look of the attending physician when, as a third-year student, Dyer cried after the partner of an AIDS patient who had unexpectedly died thanked her for all of her help on the case. That was her first "lesson."»
in
Medscape

Em Portugal não encaramos estas situações desta forma tão rígida (talvez por sermos um povo latino, que expressa as suas emoções?). Esse olhar de desaprovação dos colegas mais velhos seria compreensível devido ao facto de ela ter chorado em frente à familiar do doente... Isso devemos tentar evitar, visto que as pessoas já estão a sofrer o suficiente, mas o nosso sentimento não desaparece... Aprendemos é a lidar com ele.

É interessante, a propósito deste excerto, ver como os familiares de um doente falecido podem reagir de formas tão díspares em relação ao médico... Se por um lado a culpabilização do médico pela morte é relativamente frequente, mais frequente ainda é o agradecimento pelo apoio prestado naquela fase difícil. E por vezes, como aconteceu no caso acima, temos mais dificuldade em lidar com os agradecimentos do que com a culpabilização. Talvez porque fiquemos mais expostos ao que nós próprios pensamos da situação e da nossa "culpa". Porque mesmo quando sabemos não ter quaquer tipo de "culpa", mesmo quando dizemos com toda a convicção "não havia mais nada que eu pudesse fazer" ou mesmo "foi melhor assim", mesmo nessa situação sentimos uma pequena mágoa pelo sucedido.

Lidamos todos os dias com a responsabilidade imensa de termos vidas humanas na dependência dos nossos actos...

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Um entre muitos

Há alguns meses estive a trabalhar na Urgência Pediátrica de um dos maiores hospitais do país.
Diariamente passavam-me pelas mãos dezenas e dezenas de crianças, felizmente a maior parte delas com problemas simples e muitas sem problemas absolutamente nenhuns, cujas vindas se deviam a pais ansiosos (os pais que estejam a ler isto esboçarão um sorriso sarcástico).
Num desses dias fomos avisados que estava a chegar uma criança de Moçambique, um miúdo de 9 anos, referenciado à Urgência Pediátrica. Tinha vindo directamente do aeroporto, o pai e o tio acompanhavam-no. O que o trazia era bizarro... A face do miúdo estava deformada por uma enorme massa que parecia crescer por baixo da pele e que envolvia a pálpebra, testa e orelha do mesmo lado. Ele estava bem, não falava muito, mas não havia nada de verdadeiramente urgente para resolver. O pai contou que tinha começado como uma manchinha mais escura ao pé da sobrancelha, há cerca de 5 (!!) meses, e que de então para cá tinha vindo a crescer inexoravelmente. Apenas quando atingiu proporções dignas de um "freak show" é que surgiu a preocupação de o enviar para Portugal.
Desconhecendo, apesar das suspeitas, a verdadeira origem do problema a criança foi internada num dos serviços de pediatria do hospital. Alguns dias depois fui pessoalmente a esse serviço - a situação era bizarra e o miúdo tinha cativado a minha empatia - para saber o que lhe tinha acontecido. Tinha um melanoma (situação rara em indivíduos de raça negra), um cancro de pele. Tinha já metástases (localizava-se noutros locais do organismo que não o de origem), e um prognóstico péssimo. Tinha sido enviado para o IPO na véspera. Os olhos em baixo dos Pediatras e os esgares dizendo "ah, esse miúdo..." diziam tudo.

Antes fosse este um caso isolado...

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Engolir em seco

Hoje participei numa cirurgia.
Já conhecia o doente, tinha-o seguido vários dias na enfermaria, quando ele tinha estado internado poucas semanas antes. Tem cancro. Sabe que tem uma "coisa ruim", mas pergunta pouca coisa, prefere ler-me o desalento nos olhos. E lê bem, não há já muito a fazer. A cirurgia era paliativa. Isto significa que pretende aliviar algum sofrimento, sem no entanto pretender curar o incurável.
Antes da cirurgia cumprimentou-me: "Oh, senhor doutor!". Pediu desculpa pelo sorriso desdentado, tinham-lhe tirado a placa. Não estava nervoso. Não são só os animais irracionais que sabem resignar-se ao inevitável, também os humanos pressentem mais do que percebem. Tinha nos olhos a calma de quem sabe que a morte não está muito longe.
A cirurgia mostrou que estava tudo pior do que se pensava. O desalento nos olhos do primeiro cirurgião dizia tudo, quando ele palpava todo o abdómen por dentro.
Já depois da cirurgia, ainda meio abananado (efeitos do já famoso Propofol - não faço ideia se era genérico), reconheceu-me quando me cheguei a ele no recobro. As mesmas palavras, uma amargura diferente no tom: "Oh, senhor doutor...". Deu-me umas pancadinhas nas costas, eu afaguei-lhe a careca. "Dói-me tudo..." , "Daqui a pouco vai sentir-se melhor" disse eu, e dei-lhe a mão. Ele apertou-me a mão. E eu engoli em seco, e esbocei um sorriso.

O primeiro post!

Um blog é um desafio!
Dispormo-nos a partilhar com o mundo todo um universo de sensações que temos diariamente não é fácil.

Um médico passa por muitas emoções diferentes no seu dia a dia. Nalguns dias chego a casa deprimido, noutros realizado. As pessoas com quem me cruzo por vezes perguntam-me como é ter tanta responsabilidade diariamente nas mãos... Não lhes sei responder, é assim porque... é assim! Tenho a profissão que amo, faço o que faço por gosto (às vezes a contragosto, bastantes vezes com desgosto).
E tem-se hoje em dia uma visão tão fria do médico! O médico "americanizado", frio e metódico... Se os há, serão certamente muito poucos. Mesmo os de aparência mais rígida sofrerão no silêncio do lar, enquanto pensam no que poderiam ter feito mais por "aquele" doente. Porque há uns que nos tocam mais que outros, mas todos os médicos se deixam tocar. E dezenas de anos depois contam a história do "senhor José Silva", com uma lágrima de comoção ao canto do olho. Todos os detalhes gravados na memória, e acima de tudo muitos sentimentos.

Somos todos humanos. Pelo menos para tentar demonstrar isso sirva este blog!