quarta-feira, 30 de março de 2005

Intern Blues

Venho recomendar-vos um amigo, servido em bandeja de prata. Este amigo é médico, interno do primeiro ano da especialidade de Medicina Interna. Conta-vos os seus dias mais azuis, e os mais coloridos também!

Podem, e devem, visita-lo aqui.

sexta-feira, 25 de março de 2005

Os "doentes saltitões"

A quem é que eu chamo "doente saltitão"? Àquele que procura directamente os médicos especialistas, sem passarem pelo "crivo" do médico generalista (clínico geral ou internista).
O "doente saltitão" interpreta os seus sintomas como correspondendo a doença de um determinado órgão, e imediatamente procura o especialista responsável pelo dito órgão. Se tem falta de ar vai ao pneumologista, se doi a barriga vai ao gastrenterologista, se tem um problema na pele vai ao dermatologista, e assim por diante.
O "doente saltitão" entra num de dois grupos: ou tem dinheiro suficiente para ir aos especialistas da privada, ou tem um sistema de saúde que faz convenções com os especialistas da privada (é o caso da ADSE e alguns seguros de saúde). Geralmente entende-se que a facilidade de acesso aos especialistas é sinónimo de bons cuidados médicos. Mas o grande problema dos "doentes saltitões", e é isso sim que me preocupa, é que essa correspondência é absolutamente falsa! De facto, estes doentes não têm um médico generalista que conheça o seu passado clínico e que olhe para o doente como um todo, mais do que um somatório de vários órgãos. Porque nem sempre uma falta de ar corresponde a uma doença pulmonar! Pode surgir por doença cardíaca, por doença muscular, por doença do sistema nervoso central, por um problema psicológico/psiquiátrico, por um problema hormonal (endocrinológico), etc, etc, etc... Não quer isto dizer que os especialistas não conhecem os diagnósticos diferenciais das doenças que tratam com mais frequência, mas é muito fácil olhar para o doente pensando predominantemente num órgão e encontrar um diagnóstico que "encaixa" mas não é correcto...

A D. Luísa tem ADSE. Foi ao consultório privado de um Clínico Geral, que trabalha no Centro de Saúde onde eu trabalho actualmente, porque não se sentia bem. Aliás, já há dois anos que não se sentia bem. Nesses dois anos tinha tido vários problemas de pele, com queda de cabelo e pele seca, pelo que tinha ido a um Dermatologista. Infelizmente, apesar das melhoras provocadas pelos cremes e champôs, não tinha ficado completamente bem. Queixava-se também de falta de força e de ar, que tinha agravado progressivamente nos dois últimos anos. Tinha também engordado vários quilos, pelo que foi seguida por um Nutricionista que tinha feito uma amiga dela emagrecer 15 quilos! No entanto, não perdeu peso algum. Por tudo isto, porque uma das suas irmãs tinha cancro, e se calhar algo mais que desconhecia, sentia-se profundamente triste. Chorava facilmente, e ficava horas a fio fechada dentro de casa sem vontade de falar com as pessoas. Uma amiga íntima recomendou-lhe um Psiquiatra excelente, que lhe diagnosticou uma depressão. Medicou-a, bem, com antidepressivos.
Outra amiga houve que, passados dois anos de "saltitar", lhe recomendou um "saltinho" a um médico de Clínica Geral - mas que é muito competente. E assim tinha ido parar ao consultório do dito Clínico Geral. Este, em face de toda esta história, facilmente suspeitou de um hipotiroidismo (doença endocrinológica em que a tiróide não produz a quantidade normal de hormona tiroideia). As análises laboratoriais confirmaram o diagnóstico, e a terapêutica adequada fez resolver a queda de cabelo, a pele seca, o cansaço, o aumento de peso e a depressão...
Pele seca tem muita gente... O dermatologista medicou de acordo com os sintomas apresentados, e a doente tinha apenas falado do problema da pele (ora se estava no dermatologista, iria ela falar da depressão?). Depressão tem muita gente, e a neoplasia da irmã dava-lhe um motivo bem plausível para se sentir mais triste... Que diabo, e havia ela de se queixar ao Psiquiatra da pele seca?! Excesso de peso, infelizmente, sobeja na população portuguesa. É óbvio que o Nutricionista fez o que devia: recomendou uma dieta adequada e exercício físico. E, caramba, porque iria ela falar da depressão ao Nutricionista?

Um médico generalista não trata todas as doenças - apesar de resolver 90% dos problemas de saúde das pessoas*. Mas olha para o doente como um todo, e encaminha as doenças que não sabe tratar para o especialista adequado. E poupa, assim, muito tempo aos "doentes saltitões"...



* Para o meu leitor ABS, que certamente lerá esta pequena crónica: recordo a aula em que este surpreendente número me foi transmitido pelo Prof. GJ. Para ele fica esta memória.

segunda-feira, 21 de março de 2005

Saúde de ferro

O Sr. José tem 93 anos. Entrou no gabinete pelo seu próprio pé, com a ajuda de uma bengala. Mas anda bem, mesmo sem a bengala. Entrou com as costas um pouco curvadas, mas com o olhar em frente, bem diferente do olhar de tantos "velhotes" de 60 anos, bem pregado no chão. O Sr. José tem muito cuidado com a alimentação, sempre teve. É diabético, mas uma pequena dose de um antidiabético oral é suficiente para controlar os valores de glicémia (açúcar no sangue). A alimentação é a sua melhor terapêutica, e cumpre-a rigorosamente. Apressou-se a colocar as análises laboratoriais em cima da mesa, para as vermos. Uma rápida vista de olhos nas análises não detectou qualquer problema! Quando lhe contámos que tem uma anemia ligeira, explicou-nos como perdeu sangue pelas fezes. Já tinha ido à consulta de uma Internista, que lhe pediu um exame endoscópico. Tinha mais um problema nas análises (que o livrinho do diabético confirmava): estava a cumprir tão bem a dieta que o antidiabético oral estava já em dose excessiva, sendo necessário reduzi-la. O colesterol, esse, estava óptimo - a minha tutora roeu-se de inveja, e eu não quero nem saber o meu. A tensão arterial estava um pouco alta, mas um pequeno ajuste na terapêutica antihipertensora seria em princípio suficiente. Rapidamente, e sem pruridos, se colocou de joelhos na marquesa para um toque rectal (apesar de estar a aguardar o exame endoscópico, o toque rectal é uma ferramenta diagnóstica importante). Tinha de facto uma pequena hemorróida, nada mais havia a salientar. A próstata, essa, estava óptima.
Certo de que estava a ser enganado, perguntei-lhe em tom de brincadeira se tinha 39 ou 93 anos. Riu-se, e gabou-se da sua saúde. Deu-me um aperto de mão, e saiu pela porta do gabinete. Para trás deixou, para além da bengala que regressou para ir buscar, uma grande lição de vida.

quinta-feira, 17 de março de 2005

O síndrome misterioso

Mais uma história de SAP.

Chamámos a D. Assunção pelo altifalante. A ficha contáva-nos que já por ela tinham passado 80 anos, pelo que esperámos pacientemente pela sua chegada. Ouvimos depois o som da bengala intervalada pelos passos da D. Assunção, que se aproximava do gabinete. Entrou, lentamente, e sentou-se. Perguntei "Então, D. Assunção, o que a traz por cá?". Iniciou uma descrição atabalhoada de dores múltiplas, saltando da perna para a cabeça, depois passando pelas costas e abdómen. Voltava à dor de cabeça, e descia para o peito. Perguntámos se já tinha essas dores há muito tempo, e a resposta foi clara: "Uuuui, sei lá eu há quanto tempo...". Tentando inteirarmo-nos de outras patologias que tivesse a D. Assunção, perguntámos qual era a medicação que fazia habitualmente. Disse "está aqui na bolsa para mostrar...", e começou a vasculhar, lentamente, no fundo da sua bolsa. Dezenas de papéis surgiam, nenhum parecia ser o pretendido. Disse "Bem, eu tenho uma doença no sangue, aí há uns tempos andei muito mal e fui seguida no hospital. Agora com os medicamentos ando melhor! Parece-me que tenho aqui um papel onde tenho o nome da doença escrito...". E continuou a vasculhar, muuuito lentamente, todos os papéis da mala. Até que, enfim, sai o papel desejado: "É este! Este é o nome da minha doença!!". Olhámos ambos para o papel, e pensámos ambos o mesmo: deve ser o nome de algum síndrome hematológico esquisito que só os hematologistas conhecem... Até que olhámos com outros olhos para o papel e... percebemos o quanto estávamos enganados. Não me contive, e chegaram a rolar lágrimas pela minha cara abaixo de tanto rir... O dito papel está aqui reproduzido:


Posted by Hello

Não, não se tratava de três nomes dos investigadores que deram nome a algum estranho síndrome hematológico... Era o nome de um MOLHO DE CARIL...

Infrutíferas foram as restantes tentativas de perceber qual era a doença de base da velhota, e por precaução levou apenas um paracetamol para as múltiplas e habituais dores e uma recomendação para se dirigir ao médico de família...

E foi assim que um dia absolutamente infrutífero de SAP (não vi ninguém doente...) ficou absolutamente ganho. Valeu a pena esperar tanto para receber um papel assim...

terça-feira, 15 de março de 2005

Momentos

Um médico contacta todos os dias de muito perto com as pessoas. Contacta com ricos, com pobres, com estudantes, com analfabetos... Nesse contacto com as pessoas surgem momentos engraçados, em que expressões médicas e não médicas saem "ao poste". Esses momentos dão um pouco de graça ao nosso dia a dia, por vezes tão deprimente, e é saudável rirmo-nos desses momentos. Não pretendo, atenção, rir-me das pessoas...
De entre as dezenas de expressões adulteradas que oiço todos os dias, escolhi algumas que me ficaram na memória:

- "Doutora, a minha mulher tem para lá uma coisa nas partes, parece que é a Cândida Dias!" (a candidíase é uma infecção fúngica)

- "A minha sobrinha leu-me o relatório do Taco, já sei o que são estas dores!! É uma hérnia fiscal!!"

- "O meu tio é epilétrico!"

- Disse-me uma velhota muito simpática: "Eu sou alfabeta!" (alfa-beta? Está em código?)

- Num pequeno recado ao médico: "Passe-me as análises à próstada"

- Escrito num envelope de radiografia, para não fugir da memória:
"Aprovel - tenção Zocor - Castrol"

- Mais um recadinho: "Remédio para o Colester-Oil" (devia trabalhar numa oficina...)

- "Ai, já me desquecia, passe-me os comprimidos da atenção! Já me faltaram e já anda alta..."

E por fim, uma pequena pérola dita por uma velhota na consulta:

- "O homem que saiu daqui agora? Ele diz que não bebe! Eu sou vizinha dele... Eu bem sei! É vinho, vinho do Porto, bagaço... Oh! E já é assim há muito tempo! Já depois do 25 de Abril ele lá andava lá pela rua a gritar e a partir coisas... A Doutora sabe, essas coisas do álcool e do comunismo..."

sábado, 12 de março de 2005

Histórias de SAP (2)

Mais um dia de SAP. Dezenas, largas dezenas de pessoas passaram pelo gabinete 5. Centenas esperavam lá fora para serem atendidos por um dos três médicos que estavam a trabalhar. A pilha de fichas a aguardar consulta crescia a olhos vistos, e estava cada vez maior (por mais doentes que víssemos).

Achámos graça ao nome. "Então vamos lá chamar o chinês!" disse o meu tutor. Com alguma dificuldade chamou o bizzarro nome pelo intercomunicador. O chinês era uma chinesa de 40 anos. Entrou, e por curiosidade (e cortesia) perguntámos-lhe como se pronunciava o nome dela. Tinhamos falhado redondamente na leitura, mas já estava corrigido o erro. Este "preâmbulo" da consulta chegou para percebermos que iria ser muito difícil estabelecer uma comunicação eficaz. Ela falava muito poucas palavras em português (provavelmente as que sabia não ajudariam muito, quando se trata de "sentir" usamos termos pouco usados no dia a dia), e entendia menos palavras ainda. Percebeu que lhe perguntávamos o motivo da consulta, após uma aturada gesiculação da nossa parte em que apontávamos para as costas, abdómen e tórax com ar de sofrimento e inquisição em simultâneo. Era a vez dela gesticular, e agarrava a metade inferior do abdómen com "cara de dor". Isto complicava as coisas, se fosse uma simples faringite não era necessário nenhum inquérito apurado - uma observação detalhada seria provavelmente suficiente. Uma dor abdominal requer uma comunicação bem mais complexa... Não é fácil, por gestos, perguntar se vomitou, se teve diarreia (daria concerteza uma mímica expressiva e hilariante), se arde ao urinar, se já tem alguma doença conhecida... Apercebendo-se das dificuldades de comunicação, a doente tomou uma iniciativa inteligente: disse "eu não fala, telefó!", e rapidamente tirou o telemóvel da bolsa. Começou então a falar chinês (desconheço se cantonês ou outra língua, para mim era simplesmente chinês...) muito rapidamente com a interluctora do outro lado da linha. Falou... Falou... Falou... Eu e o meu tutor entreolhávamo-nos com um ar espantado, e confesso que foi complicado não rir da situação caricata em que nos encontrávamos... De repente pára de falar, e estica o telemóvel na direcção do meu tutor. Era a filha da doente, que começou a explicar o longo discurso da mãe (pelo menos em chinês era longo...). Resumindo, doia-lhe a barriga... O meu tutor deu-lhe três perguntas-chave para fazer à mãe, e passou de novo o telefone à doente. Mais uma conversa interminável, finda a qual a filha negou a existência dos três sintomas perguntados... Desligado o telefone, mais uns gestos largos para a deitar na marquesa. A palpação abdominal era dolorosa num ponto específico, mas não tinha características compatíveis com apendicite. Pedimos análises laboratoriais e uma radiografia ao abdómen... Tinhamos pouca informação, e a que tinhamos não nos permitia excluir uma situação potencialmente grave... Nesse sentido tentámos ganhar mais alguma informação que nos tranquilizasse ou alertasse para uma situação grave. Ainda assim, provavelmente a doente seria referenciada às urgências hospitalares. Parecia tratar-se de um problema do foro ginecológico, que provavelmente iria justificar uma ecografia pélvica. Acabámos por passar o caso ao colega que nos "rendeu" para o turno seguinte, transmitindo a parca informação que possuíamos...
Ainda hoje me rio ao lembrar aquela situação caricata... Imagino a perspectiva da doente, com dois tipos de bata branca e estetoscópio a gesticular e a gemer, uma agarrado à barriga e o outro a simular tosse e espirros...

quinta-feira, 10 de março de 2005

Já fez abortos?

Esta pergunta não é feita todos os dias... Não é, também, feita por todas as pessoas. No entanto, os médicos precisam muitas vezes de saber se uma determinada mulher já fez interrupções voluntárias da gravidez (IVG), pelo que é uma pergunta frequente no consultório de um Médico de Família. As respostas, essas, ficam lá dentro. Antes de ser estudante de medicina, não sei se por ser muito novo e inocente ou por contactar pouco com estas realidades, não fazia ideia se eram muitas ou poucas as mulheres que abortam. Devo dizer que fiquei surpreendido com o que encontrei: uma enorme percentagem das mulheres acima dos 25 anos já fez uma IVG. Arrisco afirmar que provavelmente mais de metade das mulheres já o fez... Este número não decorre de nenhum estudo estatístico (se os há), mas apenas do que me apercebo no dia a dia da prática clínica.

Antes de chamar a Ana, uma mulher de 42 anos, a minha tutora deu uma vista de olhos no processo. Rapidamente recordámos a história: tinha estado na consulta há cerca de três semanas, grávida. Tinha entrado descontraidamente no consultório com um teste rápido positivo. Na altura pedimos análises laboratoriais e uma ecografia obstétrica. Assim que saiu do consultória a minha tutora afirmou categoricamente: "Vai fazer um aborto.". Era já mãe de dois rapazes, e não tinha planeado engravidar. Não usava qualquer método anticoncepcional apesar da insistência da minha tutora na consulta de planeamento familiar.
A minha tutora disse-me "Queres ver como fez um aborto?" e chamou a Ana. Entrou no gabinete com o mesmo ar descontraido da outra vez. Sentou-se, e disse: "Tenho uma coisa que se calhar era melhor falar só com a doutora...". A minha tutora respondeu-lhe que eu já sabia o que era, podia contar à vontade... Confirmava-se: tinha tentado abortar. Foi ao Ginecologista/Obstetra em consulta particular fazer a ecografia obstétrica que tinhamos pedido na consulta anterior, onde confirmou a presença de um saco gestacional. Nada contou ao Ginecologista da sua intenção, e comprou os já famosos comprimidos abortivos (aqueles que servem para as patologias do estômago). Desconheço como obteve acesso aos comprimidos (mas reconheço que não deve ser nada compicado, com mais ou menos dinheiro...), mas ingeriu-os na quantidade que lhe foi recomendada pela vizinha. Pouco tempo depois teve uma pequena hemorragia. Explicou: "Da última vez tinha feito no bidé, e vi sair qualquer coisa. Desta vez não tive coragem, e fui para a sanita...". Não me surpreendi com a recorrência da situação, uma vez que as pessoas facilmente se habituam a utilizar o aborto como "método anticoncepcional"... Já não tinha tido mais perdas de sangue, dores ou corrimentos desde então, e vinha agora pedir as análises laboratoriais que confirmariam o sucesso do aborto. Observei-a, e facilmente senti o fundo uterino. Das duas uma: ou tinha um útero grande ou ainda estava grávida. Não tinhamos o relatório da ecografia obstétrica para tentar avaliar a existência de miomas, uma vez que ela tinha queimado o relatório na lareira para apagar os registos daquela gravidez. Qualquer que fosse a situação, uma certeza eu tinha: aquela gravidez não iria seguir por muito mais tempo... Passámos nova ecografia, desta vez "mascarada" de ecografia pélvica. Pensando alto afirmou que teria que ir a outro Ginecologista, não queria contar ao primeiro o que tinha sucedido. Afirmou ainda que se houvesse algum problema iria às Urgências do Hospital fazer uma "raspagem", mas naturalmente não iria contar a verdade. Expliquei-lhe que tal como nós naquele consultório, também os médicos da Urgência não são polícias. Não nos compete, como médicos, julga-la. Mas é importante que tenhamos em mão toda a informação possível para a tratar convenientemente. Lembrou a mediática história do enfermeiro que denunciou às autoridades uma doente que tinha abortado. Relembrámo-la que o enfermeiro em causa tinha sido penalizado por quebrar o sigilo profissional a que estava obrigado, e que as queixas tinham por isso sido retiradas. Encolheu os ombros, sorriu, e disse que fosse como fosse a situação se resolveria. E saiu, com descontracção semelhante àquela com que havia entrado.

segunda-feira, 7 de março de 2005

Surpreendentes diferenças culturais

Na prática clínica vemo-nos por vezes confrontados com diferenças culturais que nos surpreendem. Temos obviamente que as aceitar, e o seu conhecimento prévio permite-nos lidar com as situações futuras de uma forma mais adequada. Aquilo a que assisti hoje surpreendeu-me a mim e à minha tutora (com dezenas de anos de profissão, milhares de doentes na sua lista, e bastantes deles de etnia cigana).

Entrou no gabinete a Manuela. Tinha 25 anos, e era rara frequentadora do Centro de Saúde (o que é adequado, tendo em conta a idade). Era de etnia cigana, já mãe de três filhos. Entrou no gabinete com um ar muito grave. Sentou-se com um ar mais grave ainda, e fulminou-me com o olhar. "Quero falar com a Doutora.". Assegurei-a que, sendo eu médico, o que fosse dito naquela sala era absolutamente confidencial. Dei-lhe liberdade para exigir a minha saida, mas reconsiderou e permitiu a minha presença. Quando abriu a boca para começar a falar parou, ficou vermelha da ponta dos cabelos às unhas dos pés (suponho eu, já que no meio de tantos panos, aventais e xailes só lhe via a cara). E disse, finalmente: "Quando faço cocó deito sangue...". Baixou a cabeça por instantes, em silêncio, para depois iniciar uma verborreia fluente: "Vem sangue, quando faço cocó, e dói-me, doutora, fica ferido! Tenho uma pele, eu sei porque, ai que vergonha, vi-me ao espelho, assim por baixo, e tenho lá uma pele que me dói, deve ser daí que sangra, assustei-me tanto, ai doutor que vergonha, ai doutora acuda-me, não sei que faça, o mê marido diz que deve ser uma "almorróidea", mas se é estou desgraçada, é a pior coisa para um cigano, ai valha-me Deus, que a mulher do meu irmão Lelo tem disso e ninguém como o que vem da mão dela, se eu tenho o mesmo estou perdida, ai a minha vida, não sei o que fazer!!". Tentámos tranquiliza-la, mas ao mesmo tempo transmitir-lhe que era provavelmente de uma hemorróida que se tratava. Explicámos que as hemorróidas não se "pegam", que muitas, mas mesmo muitas, pessoas têm hemorróidas (especialmente depois de um parto), que se trata de uma variz como as das pernas, etc. A verdade é que quanto mais falávamos mais nervosa ela ficava, insistindo na certeza absoluta que tinha que seria deserdada pela família, que nunca mais iria comer do que ela cozinhasse... Afirmava: "É a pior coisa que pode acontecer a um cigano!!!". Fiquei muito surpreendido com a carga emotiva e social que acarretava aquela doença tão simples, mas era incontornável que não eram "factores de gravidade" que desencadeavam aquela resposta, mas factores meramente sociais/étnicos. A obviamente necessária observação da lesão desencadeou outra "crise": eu tinha que sair da sala. "Se o mê marido sonha que o doutor, desculpe-me lá, me viu o cú, não sei o que acontece!". Respeitei, obviamente, e saí temporariamente da sala. Tratava-se, segundo a minha tutora, de uma pequena hemorróida ligeiramente fissurada, como suspeitámos pela descrição inicial. A confirmação do diagnóstico desencadeou outra "crise", que só acalmou quando lhe dissémos que não precisava de explicar à família que se tratava de uma hemorróida, poderia dizer que se tratava apenas de uma fissura. Esta solução, apesar de parecer pouco lógica no contexto puramente médica, fazia todo o sentido do ponto de vista social. No entanto, ela própria tinha o preconceito relativo às hemorróidas, pelo que estava, segundo as suas palavras, "cheia de nojo de mim própria". Adequadamente medicada saiu da consulta, preocupada e "enojada" consigo própria.

Aprendi hoje a carga emotiva que a etnia cigana atribui à patologia hemorroidária. Para evitar futuras confusões, ficou registado...

quinta-feira, 3 de março de 2005

Histórias de SAP

O SAP, Serviço de Atendimento Permanente, é um sítio muito especial, por mim carinhosamente apelidado de "Selva". Estive lá hoje. A grande maioria dos doentes que vi estavam constipados. Entre "COF COF!" e "ATCHIM!", vamos fazendo diagnósticos complexos e brilhantes como sendo as rinites, sinusites, rinofaringites, faringites, amigdalites, laringites, laringotraqueites, etc... No meio de tanta gente pouco-doente (porque a maioria destas doenças não são doenças graves, por muito que custe te-las) aparecem umas dezenas de não-doentes. Desde "dores nas costas há três meses", passando pelos tradicionais "estive doente, faltei ao emprego, e agora quero baixa", os não-doentes vão passear ao SAP, em vez de ir para o supermercado. Para variar um bocadinho. Com sorte encontra-se alguém de-facto-um-bocado-doente.

Acabados de atender a D. Júlia, que padecia de uma rinofaringite viral, a enfermeira do SAP entrou na sala onde eu estava com o meu tutor. Informou-nos que um rapaz tinha perdido os sentidos na sala de espera. Fomos até ao gabinete do lado, onde estava o rapaz. Já tinha recuperado a consciência, e estava sentado numa cadeira de rodas com a cabeça baixa. Tinha 19 anos, e um breve questionário permitiu-nos perceber que se trataria provavelmente de uma reacção vagal (um simples "desmaio", que geralmente não implica a existência de uma doença do coração ou epilepsia). Ele ainda estava meio "abananado", a tensão arterial estava baixa e a frequência cardíaca também. Tudo isto estava de acordo com uma reacção vagal. Aos poucos começou a recuperar, e ficou um pouco naquele gabinete a fazer "esperoterapia" (esperar a ver se passa...).
Entretanto chamamos o próximo doente, uma criança de 2 anos. Entrou sorridente, mas rapidamente se desvaneceu o sorriso quando o comecei a observar. A auscultação até correu bem, ele entendeu que o estetoscópio seria inofensivo. As minhas palavras e festinhas também ajudaram, mas quando chegámos à observação da garganta e dos ouvidos o caso mudou de figura. A inocente e sorridente criança transformou-se num demónio, gritando com todas as suas forças. Esperneava e serpenteava no colo da mãe, de tal forma que acertar-lhe com o otoscópio no ouvido foi um "tiro" digno de recorde mundial. Ver a garganta não foi mais fácil, sendo que o pequeno demónio mordeu a espátula com força sobre-humana, enquanto berrava entredentes. No final da sessão de tortura, diagnóstico feito: NADA. Tinha febre, sim, mas o restante exame objectivo era normal. Provavelmente virá a manifestar-se amanhã ou depois como uma otite, uma faringite, ou qualquer outra "ite", mas hoje não tem ainda nada. Explicamos isto calmamente à mãe, que se vai embora com a receita de anti-inflamatório e anti-pirético com um ar desconfiado. Amanhã ou depois seremos concerteza os "péssimos médicos do SAP", que não diagnosticaram uma "claríssima amigdalite" à criancinha... "É uma vergonha, a medicina deste país..." dirá no autocarro à amiga.
Entretanto o rapaz de 19 anos já estava bem. A tensão arterial e a frequência cardíaca tinham regressado ao normal, e conseguia queixar-se agora dos vómitos que tinha tido durante a noite. Medicámos adequadamente, demos os conselhos certos, e foi-se embora.
Já dez fichas repousavam em cima da secretária, cada uma delas tinha o seu "doente" à espera de ser atendido. Entrou então o Sr. António. Estava preocupado com os "açúcares no sangue, têm estado altos". Mediu na farmácia três vezes em três dias diferentes, tinha sempre valores elevados. Ali ficou diagnosticada uma Diabetes. Os valores eram de facto muito elevados, e confirmaram-se ali mesmo. Fazia, por acaso, parte da lista de utentes do meu tutor. O tom de pele escurecido colocaram-nos na pista de uma Hemocromatose. Ficou, esse diagnóstico ou a sua exclusão, para as cenas do próximo episódio. Ali era importante medicar, para trazer a glicémia para valores mais próximos dos normais.
E muitas fichas se seguiram, com outras tantas histórias. Umas mais interessantes que outras, claro.

Dez mil?!

O contador que está ali à direita atreveu-se hoje, pela primeira vez, a mostrar cinco algarismos!
O blog "Desabafos de um Médico" atingiu as 10.000 visitas, ao fim de seis meses de actividade!

O meu MUITO OBRIGADO a todos quantos contribuiram, especialmente àqueles que são os "comentadores residentes". Mais uma vez afirmo: sem vocês este blog não faria sentido!

quarta-feira, 2 de março de 2005

Um post light

Hoje, para descontrair um pouco, resolvi escrever um post muito light. Em jeito de teatro:


D. Manuela - Ah, Doutor, e o meu marido também tem tido chatices de saúde... Já não bastava o "castrol", agora a "prósta" também lhe está a dar chatice...

Eu - Pois, está aqui escrito no processo que foi pedida consulta de Urologia aqui há uns tempos... Ele já lá foi?

D. Manuela - Foi sim, Doutor! Era um médico assim alto, forte! Muito simpático... O meu marido é que não gostou nada do que ele fez, Doutor...

Eu - Então?...

D. Manuela - Enfiou-lhe... O Doutor sabe... [estica o indicador para o tecto] Enfiou-lhe "o dedo no fufo"!!!


O DEDO NO FUFO?? Esta foi nova para mim... Já lhe tinha ouvido chamar muita coisa, mas fufo?!