domingo, 26 de outubro de 2008

L'inconnue de la Seine

O Dr. Peter Safar, citado com propriedade milhares de vezes como o pai do "ABC" da reanimação cardiopulmonar, teve um papel muito relevante no desenvolvimento das técnicas de ressuscitação. O seu trabalho nesta área desenvolveu-se a partir dos anos 50, e foi sempre um homem à frente do seu tempo. Tive oportunidade de assistir a um vídeo (que não encontro na internet em lado nenhum), em que um dos seus colaboradores (um interno - "resident" em inglês, um elo fraco da cadeia alimentar médica) foi curarizado (a palavra vem do famoso veneno curare, e consiste no bloqueio farmacológico de todos os músculos do corpo, incluindo os que nos mantêm a respirar, mantendo no entanto a consciência) para poder servir de modelo em experiências de reanimação cardiopulmonar. Nesse vídeo pude ver o próprio Dr. Safar a demostrar a respiração boca a boca no seu interno paralizado... Com base nesses estudos começou-se a demostrar a importância do correcto posicionamento do doente na reanimação, nomeadamente a manutenção da permeabilidade da via aérea, bem como todos os pormenores da ressuscitação que compõem o dito "ABC".
O Dr. Safar foi também o impulsionador da massificação do ensino das técnicas de reanimação, e estimulou a criação do primeiro modelo (boneco) para treino de reanimação, a famosa Resusci-Anne (ou Annie). Facto curioso, a face da boneca foi feita a partir dos moldes da "Inconnue de la Seine", um busto de gesso feito post-mortem a partir de uma jovem desconhecida encontrada morta no rio Sena, considerada muito bonita e estranhamente sorridente. A "Inconnue de la Seine" foi muito popular como modelo de beleza no mundo boémio, e muitos artistas da época possuiam em sua casa uma réplica do busto original.

Ok, estou num Congresso e não tenho visto doentes, daí o silêncio... Mas eu volto!

sábado, 11 de outubro de 2008

Mais uma vez, amor e disciplina

Era meio-dia quando recebemos um telefonema na Urgência. Uma Médica de Família de um Centro de Saúde da área de influência do Hospital estava a enviar-nos um adolescente com 13 anos. O José tinha, de acordo com o telefonema, ingerido uma quantidade desconhecida de um antipsicótico e de um antiepiléptico. Preparámo-nos para o pior e estudámos os efeitos adversos dos dois fármacos, tentando antever perante que tipo de quadros nos podíamos deparar, e a atitude terapêutica a tomar. Quando chegou, cerca de uma hora depois da toma, estava consciente e sentado na sala de triagem. Era um adolescente muito problemático, que tinha sido uma criança também muito problemática. Afirmava ter tomado quatro ou cinco comprimidos do antipsicótico, negava ter tomado o antiepiléptico. Não era a primeira vez que o fazia, afirmou. Tinha a certeza, aliás, que só lhe daria mais sono que o habitual, e que nenhum mal mais aquela dose poderia fazer. Não havia, aparentemente, qualquer intenção suicida: tinha-se zangado com a mãe e aquela era uma das muitas maneiras que tinha para a manipular a conseguir os seus intentos. Não perdi muito tempo a elucidar pormenorizadamente os porquês, tinha que supor que ele poderia estar a mentir e ter tomado muitos mais comprimidos. E assim sendo tinhamos que rapidamente lhe fazer uma lavagem gástrica (para remover a maior quantidade possível de fármacos do estômago) e administrar carvão activado (para tentar impedir que os fármacos que já tivessem passado o estômago fossem absorvidos). Isso implicava colocar-lhe uma sonda pelo nariz, até ao estômago, o que o José começou por recusar. Disse-lhe que ele não tinha ali alguma hipótese de negociação, e que a bem ou a mal nós íamos proceder à lavagem. Manteve-se a recusa em colaborar, e eu e um excelente (e corpulento) enfermeiro insistíamos que ou colaborava ou passava pela vergonha de ser agarrado como um bebé. Não nos olhava nos olhos, o olhar fugia entre o chão e as paredes tão evasivo como o seu discurso de negação. Algum tempo depois desistimos da via negocial, e pedimos-lhe "menos gentilmente" que se deitasse. Percebeu aí que não tinha hipótese, e optou por colaborar com os procedimentos. Só queria que lhe explicássemos tudo, e explicássemos se ía doer. Ficou sossegado durante todos os passos, e não voltou a esboçar resistência, mesmo durante a colheita de sangue e urina para análises toxicológicas, entre outras. Depois, enquanto aguardava as análises, ficou internado para vigilância. Deu tempo de perceber, então, todo o contexto que rodeava aquela atitude. Os pais estavam divorciados, e a toda a hora falavam ao José mal um do outro. O José vivia alternadamente com um e com outro, ao sabor das zangas com e pai e com a mãe e das ofertas que estes faziam para conseguirem o seu regresso. Portanto, o José estava habituadíssimo a manipular os pais para conseguir obter o que queria, enquanto gozava de uma liberdade perigosa alimentada pelo desejo de cada um dos pais de que ele, simplesmente, não os chateasse. Porque, palavras da mãe em frente a ele, "É tudo muito mais calmo quando ele não está por perto, não anda a bater no irmão e em mim.". O pai, carrancudo, perguntava - também perante o José - se não havia alguma hipótese de ficarmos com ele internado, ou de o transferirmos para um sítio onde ele ficasse a "recuperar". Claramente queria, também, livrar-se dele. Fosse para onde fosse. Dizia insistentemente a mãe, com um nada disfarçado orgulho - "O Doutor não me viu na televisão?!" -, que tinha já várias vezes sido entrevistada por programas daqueles que vivem da exposição da desgraça alheia, onde descrevia as agressões de que era alvo por parte do José. No meio de tudo isto o José, indiferente pelo hábito ao "jogo do empurra" e obnubilado pela dose excessiva de fármacos, acabou por adormecer depois de conversar com a pedopsiquiatra que o seguia já há uns anos e que o tinha medicado com os mesmos fármacos que ele acabou por tomar em excesso. Quando acordou já as análises mostravam que provavelmente ele dizia a verdade, que de resto tudo bem (excepto alguns sinais laboratoriais de lesão muscular - efeito descrito do antipsicótico), e já a pedopsiquiatra tinha dito que não via razões para que ele permanecesse internado. Dei-lhe então alta, orientado para a consulta de pedopsiquiatria. Procurou-me, no momento da saída, para se despedir de mim. E foi aí que ele mais me supreendeu: foi com sentimento, com um honesto "Obrigado" enquanto me apertava com força a mão e me olhava nos olhos, que ele seguiu o seu caminho. E tudo então ficou mais difícil para mim. Porque até aí ele tinha-se portado como um rufia, um marginal sem emenda, um miúdo estragado e condenado. E nesse momento tive a percepção de que ele era um miúdo com um fundo bom, que precisava de uma figura parental disciplinadora e carinhosa. E que seria sempre um rufia, um marginal sem emenda, um miúdo estragado e condenado, porque não tinha uma família que lhe desse o que ele precisava: amor e disciplina.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Hipocondríase

À esquerda vemos o Woody Allen, um dos mais famosos hipocondríacos de sempre...

No seu melhor estilo, este meu amigo psiquiatra conta-nos aqui umas coisas sobre a "mania das doenças" em profissionais de saúde.

Imperdível!

domingo, 5 de outubro de 2008

Medo

O Pedro esperava na sala de triagem pela chegada do pai. Estava sozinho na urgência, tinha sido trazido por uma ambulância dos bombeiros, que a escola tinha chamado. O bombeiro pediu-me que lhe assinasse o verbete: "Um rapaz foi agredido na escola", informou-me. Com um ar calmo assistia à triagem de outras crianças, enquanto esperava pela sua vez de ser observado. Apressei-me a chama-lo, e trouxe-o para a minha sala de observação. Enquanto não chegava o pai limitei-me a conversar com ele. Tinha ar de rapaz bem comportado, mas não tinha ar de "marrão". Marcou-me a voz calma, envergonhada, o ar de derrota resignada e a surpreendente naturalidade com que relatava os acontecimentos. Ele tinha 13 anos, e à porta da escola tinha sido rodeado por um grupo grande, não conseguia atirar um número, de rapazes que estimava um pouco mais velhos que ele. Desses, quatro investiram simultaneamente sobre ele incitados pelos restantes. Pontapearam-lhe a cabeça e as costas, enquanto ele se encaracolava no chão em posição defensiva. Não mostrou qualquer resistência. Não lhe roubaram nada, carteira telemóvel... Ele conhecia-os vagamente, de os ver a cirandar pela escola, mas nunca tinha tido nenhum envolvimento pessoal com eles. Desconhecia qualquer motivo pessoal para a agressão. Tratava-se portanto de violência pura, gratuita, desprovida de intenção. Um fenómeno de grupo, eventualmente parte de um rito iniciático de algum gangue mais ou menos organizado. Gratuito. Não era a primeira vez na escola. Pior, não era a primeira vez que o Pedro era espancado na escola, já o havia sido por outro grupo.
Chegado o pai, alto e corpulento, observei o Pedro. Alguns hematomas, umas contusões aqui e ali, mas felizmente nada de maior. Sugeri ao pai actuação perante as autoridades próprias, ao que o pai responde, com frustração espelhada nos olhos: "São menores, doutor... Não vale de nada...". O Pedro não o mostrava, mas imagino, só imagino, a perspectiva de voltar para a escola... A frustração, a impotência, o medo...