quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

2005

Tema fácil, o do fim do ano. Estas alturas de festa não dão para muito mais, não se pensa em muito mais. Milhares de Portugueses correrão hoje os supermercados, comprando champagne, passas, comida... E principalmente álcool em barda. No fim do ano exagera-se em tudo: usam-se as roupas que não se usam no resto do ano, come-se como se não houvesse 2005, bebe-se mais que no resto do ano junto (se excluirmos as queimas das fitas). Nos hospitais caem os bêbados de bêbados (ainda vá), mas caem também os acidentados. Ainda não perceberam, a maioria dos Portugueses, que álcool e volante é uma combinação muito infeliz! Na noite de fim de ano é proibido andar de carro: ou estamos demasiado bêbados para isso, ou há demasiados bêbados na estrada. Não há volta a dar. Se fazem o fim de ano fora de casa, fiquem lá. Regressem de manhã (entenda-se 15h00) depois do café e do Guronsan (passo a publicidade).
Da minha parte despeço-me de 2004 sem nostalgia. Não tem sido um ano fabuloso. 2005 será um ano muito complicado, mas certamente será pautado por momentos bem agradáveis... Mas quanto a isso deixo o mistério no ar!
O blog, como já avisei, vai mudar depois de dia 3. Começo a trabalhar a sério, e terei as histórias do dia a dia para contar, apesar de ter menos tempo para o fazer. Mas conto manter este espaço de desabafo bem activo, e espero contar com a presença de todos aqueles que têm sido os "colaboradores regulares" da área de comentários, bem como de todos os visitantes mais silenciosos!
Para todos vocês, um sincero cliché: Que o melhor de 2004 seja o pior de 2005! E façam o favor de ser felizes! (e já são 2 clichés)

Até para o ano! Feliz 2005!

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

Altura de parar

A Medicina Interna (MI) é uma especialidade praticamente desconhecida da população. O internista (como se designa o especialista em MI) é o médico mais médico que há. A MI é a especialidade generalista hospitalar, ou seja, uma prima afastada da Clínica Geral (especialidade generalista comunitária). São os internistas que tratam a maioria dos doentes com multipatologia, aqueles com "demasiadas doenças para o especialista". As Urgências Hospitalares são asseguradas (na sua vertente médica - por oposição à vertente cirúrgica) principalmente por internistas. É a especialidade mãe de todas as outras especialidades médicas, e geralmente os internistas são tidos como os "cromos" da medicina, por saberem bastante sobre quase tudo. Desta forma tem também um enorme peso na formação pré-graduada e pós-graduada de todos os médicos.
Hoje em dia, no entanto, e principalmente nos grandes hospitais, a MI vê-se remetida para os doentes que ninguém quer... As "especialidades" reclamam para si os casos "interessantes", e deixam os doentes "desinteressantes" para a MI*. Logo, os doentes da MI são maioritariamente de um grupo etário elevado, com várias doenças concomitantes, com mau prognóstico.

No estágio de MI do 6º ano trabalhei num serviço de MI de um grande hospital do país, um desses em que a MI está mais limitada ao "desinteressante", mas muito pedagógico. A alguns meses do início do estágio, já bastante habituado à "rotina" pouco rotineira da MI, foi internada aos nossos cuidados (da minha assistente e meus) uma senhora de 70 anos de idade, a D. Josefina. O motivo de internamento era parco de informação: desorientação temporo-espacial e agitação. Inicialmente parecia tratar-se de uma simples descompensação de insuficiência cardíaca, mas com o estudo apurado da situação apercebemo-nos que não era só o coração que estava "fraco". Também a função dos pulmões estava reduzida (a agora mediática DPOC - Doença Pulmonar Obstructriva Crónica), descompensada por uma pneumonia. A pneumonia havia descompensado a insuficiência cardíaca e a DPOC, e todo este embrulho começava a lesar também os rins. Por todas estas razões vários elementos presentes no sangue apresentavam-se também alterados. O tratamento de uma situação destas não é simples, porque esta concomitância de patologias transformava esta doente numa balança de muitos pratos... Um toque em qualquer um deles podia desiquilibrar os outros! Daí que, mais do que tratar verdadeiramente as doenças, nestes doentes pretendemos estabiliza-las de forma progressiva, removendo os elementos perturbadores do equilíbrio (neste caso isso implicava tratar a pneumonia). O internamento da D. Josefina previa-se longo, e assim foi. Passados vários dias a fazer malabarismos com os vários pratos da balança ela continuava bastante doente. O internamento prolongado e a fragilidade do seu organismo não passavam incólumes, e a algumas semanas do internamento (apesar de tratada a pneumonia inicial) surgiu uma pneumonia hospitalar. Isto significa que o agente que provoca a pneumonia é um agente "residente no hospital", e portanto de agressividade marcada e elevado índice de resistência aos antibióticos. Ao contrário do que por vezes os media fazem parecer, esta é uma situação relativamente frequente e "normal" (em qualquer parte do mundo!), e portanto é um factor que temos em conta na decisão de internamento e alta. Aquele "bicho" não era nada simpático, e mostrava-se resistente mesmo aos antibióticos mais recentes e potentes existentes... E nós continuavamos a "jogar" com os pratos da balança, sendo que cada vez tinhamos mais pratos com que jogar...
No meio de toda esta agitação diária e semanal, falei muitas vezes com a filha da D. Josefina. Uma pessoa muito educada e bem formada, preocupava-se com a saúde da mãe, e visitava-a todos os dias. Falava bastante comigo, e fui sempre absolutamente honesto com ela perante as possibilidades grandes de insucesso que tinhamos pela frente. A ela custava-lhe muito o sofrimento prolongado da mãe (e também a mim), e teve um dia a coragem extrema de me perguntar se "não estarão a ir longe demais? Não terá chegado a hora dela?". Tremia ao pergunta-lo, visivelmente magoada com a situação, e envergonhada de quase desejar o fim mais rápido e menos cruel para aquela situação. Não tive resposta para lhe dar. Dependia da D. Josefina, da sua resistência (e que resistência...)... O nosso papel e o da Morte ali estavam um pouco baralhados, e entre o desinvestir e o matar vai uma grande diferença expressa numa linha muito ténue...
Entretanto a situação agravava de dia para dia... Cada vez mais órgãos sucumbiam à doença de todo o corpo, ao coração, pulmões e rins juntava-se o fígado, as funções de coagulação do sangue, etc, etc... E por muito que desinvestíssemos, a D. Josefina lutava contra a morte, desafiava-a, e aproximava-se dela cada vez mais, sem lhe tocar...
Uma manhã como as outras cheguei ao serviço. Na véspera tinha lido a morte nos olhos fixos da D. Josefina, quando esta lutava ainda contra ela. Tinha dito à minha assistente, que chegaria naquela noite o alívio daquele sofrimento atroz. E tive razão. A enfermeira chefe recebeu-me com uma exclamação (moderadamente contida) de alívio pelo sucedido. O doentio arrastar da situação causava sofrimento a todos no serviço, e naquela manhã respirava-se melhor pelo corredor. Apesar do peso da morte no ar, ela tinha chegado como uma libertação. Ao virar a esquina dei de caras com a filha da D. Josefina. Engoli em seco, e dirigi-me a ela. Já sabia. Facilitou-me o trabalho e tomou a palavra. O que me disse nunca esquecerei: "Muito obrigado por tudo. Fez as coisas certas na altura certa. Dá-me o número do seu consultório? Queria que fosse o meu médico.". Engoli dez vezes em seco para não deixar molhar os olhos, e expliquei que ainda era aluno de medicina, não tinha consultório. Despediu-se de mim e daquele serviço, e foi-se embora com um ar pacífico, deixando-me absolutamente de rastos. Quem me dera que todas as pessoas soubessem lidar assim com a morte...



* Pode parecer um pouco chocante, mas se gostamos do que fazemos, obviamente temos maior interesse em determinadas patologias, mais desafiantes que outras... Daí a designação se calhar um pouco fria de doentes "interessantes" e "desinteressantes". Não se entenda, daqui, que tratamos uns com mais afinco que outros...

Acerca de acreditar

Vejam isto, da autoria dos meus vizinhos.

Um cheirinho:

"O doutor nem acredita no que eu como!!! Se comer menos desapareço!!!" Ai não acredito não... Porque ninguém engorda com ar e vento...
(...)
"Quantos copos de vinho bebe por dia?"
A resposta... Ninguém estava à espera: "Ó menina... é melhor começar a contar em garrafões..."

segunda-feira, 27 de dezembro de 2004

Domicílio

Quando estagiava na Clínica Geral, no 6º ano do curso, tive oportunidade de acompanhar um domicílio. Os domicílios consistem na ida do médico à casa dos doentes, quando estes não se podem de todo deslocar ao CS, e quando a situação médica o justifica.
Telefonaram para o Centro de Saúde, a pedir ao doutor para "ir lá a casa". O velhote não saia da cama há já vários dias, e parecia estar mais doente. Assim que desligou o telefone, o Dr. D. olhou para mim com um ar grave. E colocou-me dentro do contexto: tratava-se de uma família numerosa, que vivia toda debaixo de um mesmo tecto, desde os trisavós aos trisnetos. O meio socioeconómico era aparentemente muito baixo, e alguns dos membros da família estavam presos, um deles por homicídio. As perturbações mentais abundavam naquela família, em que filhos, enteados, madrastas, padrastos e pais já perdiam as contas aos parentescos reais.
No carro do Dr. D. dirigimo-nos para a casa da família em questão, seguindo as indicações transmitidas por telefone. O ambiente circundante não parecia muito mau. Uma zona de casas térreas, de nível económico modesto, com alguma desorganização espacial típica da construção ilegal. A casa para onde nos dirigíamos tinha como aspecto exterior um muro alto, verde, com um portão de metal. Assim que nos aproximámos do portão uma dezena de cães aproximou-se do portão, ladrando frenetica e agressivamente. Chamámos os residentes, aproximando-se uma velhota mestiça que gritava com os cães para os afastar. Abriu-nos o portão, e encaminhou-nos para a casa. O caminho para a casa era um trilho de pedras ladeado por lama e ferro velho, coberto de dejectos de cão, ocluído por cordas de roupa com lençóis rotos pendurados. Os cães rosnavam-nos ao passarmos por eles. Entrámos em casa, e chamar-lhe casa era sem dúvida alguma um eufemismo. As paredes, de tijolo entremeado com placas de contraplacado, suportavam um telhado de zinco e plástico. No interior, destacava-se a televisão, rodeada de lixo, loiça suja e restos de comida. Dois (que em tempos foram) sofás davam lugar a quatro crianças sujas e barulhentas. Dois miúdos mestiços e dois loiros de olhos azuis, todos trisnetos da senhora que nos abriu a porta. Um cheiro fétido emanava de cada recanto. Dirigimo-nos para a "divisão" onde se encontrava "o velho", como lhe chamava a senhora, e o choque foi substituido por terror. O "velho", nitidamente em caquexia (magreza e subnutrição extremas), estava deitado num colchão no chão, embrulhado em lençóis empapados nas próprias fezes e urina. Gritava palavras que não existem, interrompidas por insultos e lamentos. Os quatro membros flectidos, a imobilidade das articulações denunciava o longo arrastar daquela situação. Um (muito sumário) exame objectivo e uma medição da pressão arterial depois e o diagnóstico superficial não estava muito longe: provável demência no contexto de condições económicas e sociais muito baixas (e sobretudo sociais!). Pelas minhas costas e membros saltavam pulgas imaginárias (?), que me enchiam de comichões avassaladoras. As minhas mãos, encolhidas, gritavam por água e sabão, e todo eu me sentia porco, sujo, nojento e enojado. Todo o meu corpo gritava por um banho, que certamente tardaria. Reprimi todos estes sentimentos, por trás de uma face de cera inflexível. Passadas as receitas necessárias (inúteis?), e uma boa conversa depois (que caíu em saco roto, certamente), saimos finalmente daquela casa. O velhote estaria melhor em qualquer outro sítio, e teria que ir para o hospital. No entanto, naquele momento o que importava é que tinhamos saido dali, e encaminhavamo-nos de volta para o Centro de Saúde. Envergonhado pela fraqueza que sentira mas não demonstrara, não pude deixar de esboçar um sorriso aliviado quando o Dr. D. me disse: "Eh pá, tou cheio de comichões, mal posso esperar por um banho!". Afinal a experiência não nos torna assim tão impenetráveis...

domingo, 26 de dezembro de 2004

Família e amigos

Nenhuma altura é melhor do que depois do Natal para falar da família e dos amigos.

Obviamente que família e amigos todos temos, e não sou eu que vos vou falar do que é te-los! E qualquer que seja a nossa profissão, os familiares e amigos aproveitam sempre para fazer umas perguntinhas, e pedir uns favorezinhos... O meu caso não é diferente!

Um qualquer Natal, em redor da mesa repleta de doces: Tiro um sonho cheio de molho, e ponho-o no meu prato. "J., vais comer isso? Tu, melhor do que ninguém, sabes que isso faz mal!" diz a minha mãe. O meu tio, diabético, reclama "deixa o rapaz, isso é só para os diabéticos!". Segue-se uma discussão filosófica sobre calorias, fritos, hidratos de carbono e proteínas em que todas as frases acabam em "É ou não é assim, ò sotôr?" (em tom jocoso). O meu sonho acabou de perder todo o sabor, transformando-se num molho de calorias embebidas em óleo de fritar. "As coisas não são assim tão simples, essas coisas variam de pessoa para pessoa", safo-me eu sem contradizer ninguém para não provocar mais uma discussão. Já antes se tinha avivado a discussão acerca do vinho branco e do ácido úrico, "não é sotôr?", e das natas e do colesterol, "não é sotôr?". Depois do jantar, o meu tio explica-me: quando subo um lance grande de escadas doi-me a barriga das pernas, das duas, mas mais da esquerda... Antes não me acontecia... Já fui ao endireita (torço o nariz), fiquei melhor das costas, mas das pernas estou na mesma! Não sei o que se passa!". Diagnostico-lhe, com mais algumas perguntas, uma claudicação intermitente, e pergunto-lhe porque não foi ao médico de família (e preferiu o médico da família). "Sabes como é, os médicos da caixa... Não sei...". Mais uma vez torço o nariz, e engulo o sapo.
Um ano depois agradece-me o diagnóstico e a recomendação de arranjar uma consulta de Cirurgia Vascular "através da caixa". Curiosamente "o médico da caixa disse o mesmo que tu, saíste-me um grande médico! E o médico operador das artérias mandou-me fazer uns exames que te deram razão!".
Depois vêm as outras situações, bem mais aborrecidas, quando alguém está verdadeiramente doente. Vamos para o hospital de bata vestida, conferenciamos com o médico assistente, vigiamos de perto a situação. Temos que ter o cuidado de não interferir no trabalho dos outros médicos (uma vez que temos o olhar clínico toldado pela proximidade emocional), o que muitos de nós não têm o cuidado de fazer. Mas é, no entanto, difícil não interferir, especialmente se não conhecemos bem o médico assistente...
Outras situações são menos graves e mais caricatas... Alguns amigos entendem que, por estar num curso que estuda o corpo humano, tenho que entender todos os pormenores do comportamento do corpo humano... Um amigo meu pergunta-me: "Porque é que quando faço isto assim dói? E porque é que coçar alivia a comichão? O que é que faz a comichão? E porquê?"... Está visto que é um engenheiro! A minha resposta do costume: "Sei lá, Zé!!". Isto, claro, quando não me entretenho a faze-lo acreditar que tem uma doença potencialmente mortal só porque fica um bocado vermelho quando bebe um copito de nada... "Mas isso do flushing é perigoso?!" pergunta ele...

Não me entendam mal, eu estou sempre disponível para ajudar os meus familiares e amigos! Mas por vezes as coisas não são fáceis... ;-)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

Lá terá que ser...

...um post de Natal.

O Natal é uma época complicada... Se por um lado muitas pessoas andam atarefadas com o extase do consumismo nacional, outras ainda vêm no Natal a festa da reunião da família. Enquanto algumas pessoas se enroscam em redor da lareira, outras enroscam-se nos lencóis frios dos hospitais. Alguns passam-no em casa, outros na casa dos pais e avós, outros ainda têm o azar de estar a trabalhar enquanto o filho abre os presentes: "Porque é que o pai não está cá, mãe?" "Está no hospital, filho, teve que ir trabalhar...".

No Natal os velhotes vêm às Urgências num número assustador. Todos eles trazidos pelos filhos, pelos motivos mais variados... Alguns simplesmente pretendem abandonar o "chato do velho" no hospital - não lhe custará concerteza encontrar sintomas que justifiquem alguns exames e umas horitas de observação e... ups! Acabados os exames e a observação e o filho já lá não está. Não há contactos, o velhote não sabe números de telefone nem tem telemóvel. E lá ficou ele, para passar o Natal. Doente? Está, está, nunca deixou de estar. E agora está mais um pouco. Apesar destes casos não serem NADA raros, ainda há outro caso: aqueles que não visitavam o velhote desde o Natal passado e, regressados "à terra", o encontram magro, doente, velho. E assim, assustados pela condição do velhote, levam-no ao hospital. Com a melhor das intenções, acredito, mas a ausência durante o ano anterior não foi se calhar muito positiva... Os desgraçados dos Médicos Internos, os mais novos (o eterno mexilhão), passa o 24 no Hospital. Que remédio, já sabemos que assim é... Os casos tristes da sociedade caem todos lá, é um dia deprimente. Se não for para serem abandonados, os velhotes vão lá porque estão sozinhos, e quem é que gosta de estar sozinho no Natal?... Contam histórias uns aos outros, entretêm-se uns aos outros e a nós...

Claro que há muito mais no Natal além disto. Há a família dos que a têm, reunida em torno da lareira (ou do aquecedor), a trocar prendas compradas com carinho. Há o Natal das crianças, mesmo as que não têm família têm no Natal uma festa. Em nenhuma outra altura do ano as pessoas se lembram tanto de ser solidárias e de ajudar o próximo como no Natal. E, por pouco que seja, muitas pessoas levam as pequenas alegrias do Natal aos que têm muito pouca alegria na vida... Mesmo no Hospital, alunos de Medicina e voluntários entregam pequenas lembranças embrulhadas aos doentes internados, levando-lhes também a eles um pouco do brilho do Natal.

Gosto do Natal, pelo que me traz de convívio com os que me são queridos, pelo brilho que acende um pouco por toda a parte. Não gosto de muito do que significa o Natal no presente, mas resta-me acreditar que as pequenas coisas, os pequenos gestos, podem levar um pouco de alegria a toda a gente. E por isso, a todos os que seguem estas minhas pequenas crónicas,

Um Feliz Natal!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Um susto valente

Um dos meus primeiros grandes sustos aconteceu quando eu estava, no 3º ano da faculdade (ou seja muito fresquinho...), a fazer um estágio organizado pela Associação de Estudantes no Hospital de Setúbal (HSB). O estágio era "de Urgência", ou seja, eu ia uma vez por semana para as Urgências do HSB. Lembro-me muito bem de tudo o que se passou comigo nesse estágio, sendo que aprendi imenso com todos os médicos, especialmente com os Internos (que tinham um pouco mais disponibilidade para nós). Passava a maior parte do tempo no SO (Serviço de Observação), absolutamente "atulhado" de doentes, e aos poucos fui ganhando a confiança dos médicos da equipa (e confiança em mim próprio...). Passado algum tempo já observava doentes sozinho, o que era na altura um grande feito para mim.

Já algum tempo de estágio era decorrido, pediram-me para ficar sozinho na sala de aerossóis (onde estão os doentes com dificuldade respiratória), enquanto a médica que lá estava ia lanchar. Não me agradou muito a ideia, não só por ter pouca experiência, mas porque os doentes que lá estavam não eram casos muito simples... O mais complicado dos casos era o de um doente que tinha sido operado à "anca" num Hospital Ortopédico cerca de uma semana antes, que tinha nessa manhã entrado em coma após um período de confusão e agitação. Suspeitava-se de um AVC embólico (uma complicação possível das cirurgias ortopédicas), e não havia TAC funcionante no HSB. Por esse motivo o doente estava a aguardar transporte para o Hospital S. José. Tentei inteirar-me decentemente das patologias dos vários doentes na sala de aerossóis, e acabei mesmo por ter que lá ficar sozinho. O enfermeiro passou o tempo todo a gozar comigo, perguntando-me que doses queria eu dar disto e daquilo (perguntas às quais ele sabia a resposta e eu não...), mas com esse problema lá me desenrasquei (adiando a decisão). Então lá estive, sentado num banquinho, a olhar ansioso para os 5 doentes rezando para que nenhum decidisse descompensar. Ia perguntando à D. Palmira se respirava melhor, ao Sr. António se já não estava tonto, e ia eu mesmo tentando descontrair um pouco. A um dado instante, o doente comatoso levanta os dois braços ao mesmo tempo. Bastante surpreendido, já que o doente estava em coma há largas horas, levantei-me e perguntei "Sr. José, está-se a sentir bem? Não se assuste, o senhor está no hosp...". Estanquei. Senti uma onda de pânico percorrer-me dos pés à cabeça quando me apercebi que ele não me estava a ouvir. Tinha ambos os braços esticados para a frente, as pernas esticadas também, os olhos abertos e revirados, e de um momento para o outro começou a sacudir-se violentamente, numa convulsão provavelmente provocada pelo suposto AVC. Absolutamente sozinho (nem o enfermeiro gozão estava na sala nesse momento), fiz a única coisa que podia fazer: corri para fora da sala, agarrei numa médica que estava a passar e disse-lhe "Está aqui um doente a convulsivar, eu estou completamente sozinho e não sou médico, por isso venha aqui JÁ!". Não que eu tivesse mesmo que explicar que não era médico, o meu ar imberbe falava por mim. A médica e duas enfermeiras que passavam na mesma altura pelo corredor invadiram a sala de aerossóis, onde o indivíduo continuava a convulsivar, com espuma sanguinolenta a sair pela boca. Em dois segundos expliquei a história do doente, enquanto lhe administravam rapidamente um supositório de Diazepam, resolvendo a crise convulsiva passados poucos segundos (provavelmente por si só, mas o supositório ajudaria a prevenir nova crise). Agradeci mil vezes às três "salvadoras", a tremer como varas verdes e a suar em bica, que elogiaram a minha presença de espírito (QUAL? perguntei-me eu na altura...) de chamar imediatamente ajuda. Poucos minutos depois entra descontraidamente a médica, regressada do seu lanche, e pergunta "Então, tudo na mesma, não é?".

Aprendi uma lição: não devia ter aceite uma responsabilidade com a qual não estava preparado para lidar! Mais uma vez o tradicionalmente português "jeitinho" tinha-me colocado numa posição complicada!

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

Os atestados - a notícia

DGS Quer Definir Regras dos Atestados Médicos
Público, Terça-feira 21 de Dezembro de 2004

A Direcção-Geral de Saúde (DGS) quer clarificar as situações em que é obrigatória a apresentação de atestados médicos e uniformizar a sua emissão a nível nacional.

Um despacho do director-geral e Alto Comissário da Saúde, José Pereira Miguel, datado da semana passada, cria um grupo de trabalho que, até Março de 2005, deverá inventariar "todas as situações em que é obrigatória a emissão de atestados médicos" e "propor medidas que permitam uniformizar os procedimentos a nível nacional".

Segundo o despacho, a DGS tem sido solicitada a pronunciar-se sobre "a emissão de atestados médicos por entidades privadas e do Ministério da Saúde", salientando também que "tanto as entidades públicas como as privadas obrigam à obtenção de atestado médico para os mais diversos efeitos".

Entre estes contam-se a selecção para acesso a graus de ensino ou a formação profissional ou a aquisição de carteira profissional. O presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Clínica Geral, Luís Pisco, que integra o grupo de trabalho criado pela DGS, diz que é preciso "pôr alguma ordem na absoluta desordem que é a emissão de atestados". O responsável lembrou que todos os exames necessários à emissão do atestado representam uma "sobrecarga" para o Serviço Nacional de Saúde.

Luís Pisco conclui que é "necessário que a DGS elabore normas de boa prática" sobre a matéria, que assumam a forma de um diploma legal, que anule a sua exigência nas mais variadas instituições.



Ora bem! O problema dos atestados médicos já foi aqui levantado neste blog. E finalmente parece haver alguma vontade de o resolver! Vamos a ver se é desta que se regulamentam os atestados médicos de vez!...
Basta de atribuír a responsabilidade sobre tudo o que se passa neste país aos médicos! Obviamente que um médico não pode, para cada criança que entra para a natação (e isto todos os anos!), fazer todos os exames necessários para excluir qualquer pálida e vaga hipótese de doença que impossibilite a prática desse desporto! Isso implicaria uma sobrecarga desnecessária de exames médicos ao SNS e às pessoas... O que acontece no presente é que passamos a vida a declarar por nossa honra coisas que não podemos certificar... No fundo damos sempre "um (muito português) jeitinho", à custa da nossa responsabilidade profissional e, imagine-se, da nossa honra. Tudo, claro, para proteger os ginásios, os infantários, as empresas, as seguradoras, etc, ou seja: proteger todos menos as pobres pessoas que precisam mesmo do "jeitinho"... E, claro, os doentes que veem as suas consultas adiadas e atrasadas à custa do "jeitinho" que se faz aos outros... Transforma-se com isto o Clínico Geral num burocrata, pago para escrever papéis, assiná-los e colar-lhes a magnífica e valiosíssima vinheta... Ora bolas!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

Contabilidades

Os números, parecendo que não, são muito importantes em Medicina.

Nós, os médicos, estamos sempre a perguntar números, e escrevemo-los com afinco nos nossos caderninhos de bolso (companheiros inseparáveis da caneta e do estetoscópio), nos diários clínicos, etc... Perguntamos "Quantos anos tem? Quantas vezes dói por dia? De 0 a 10, se 0 é ausência de dor e 10 a dor máxima que pode imaginar, dói quanto?". Medimos a tensão arterial, a frequência cardíaca, contamos a frequência respiratória, medimos a temperatura... Depois, colhemos 20cc de sangue e obtemos folhas e folhas de números, para os quais olhamos com cuidado para tecermos considerações filosóficas sobre eles e as suas relações... Os números e as abreviaturas misturam-se, e transfomam-se num código quase secreto! J.A., 56a. F, AST 45, ALT 50, gGT 50,4, FA 190, Hb 10,4, HT 45%, LDL 220, etc, etc, etc...

Mas não é só para nós que os números se revestem de tal importância... A D. Josefina não deixa o marido, coitado, comer o arroz doce porque o Castrol estava a 250 e o açúcar a 150 nas últimas análises... Já o Sr. José queixa-se da comida inssonsa, mas sabe que os 15/10 de tensão não permitem muito melhor... "E na consulta do sotôr está sempre mais alta, o raio da tensão, que eu vou à farmácia todos os dias e não passa dos 14, 15, às vezes lá vêm os 16 se me porto mal...". O Pedro, na escola, gaba-se aos amigos do número de pontos que levou quando partiu a cabeça. "O médico disse que eu me portei como um herói! Foram 6!!!". Já a avó do Pedro contabiliza as cirurgias "foram duas aos intestinos, uma à mama, uma à apêndi, e parece-me que foram três ou quatro ao quisto das costas, já nem me lembra bem!". O Finúrias diz, orgulhoso: "A semana passada estive internado para ser operado à clavícula, (...) tenho uma placa com 5 parafusos!". A pergunta na sala de pequena cirurgia é fatal como o destino: "Quantos pontos vai levar?". Nas grandes cirurgias não se contam os pontos, são os agrafos! Ainda nem acordou o Sr. Manuel, já pergunta "Quantos agrafos levei?" antes ainda de perguntar como correu a cirurgia...

Enfim, vicissitudes numéricas!

PS. Desculpa incluir-te na galeria, Finúrias, mas não resisti!! ;)

domingo, 19 de dezembro de 2004

Diferenças

O Serviço de Urgência é uma parte muito importante da vida do médico hospitalar. Não só tem a oportunidade de colocar em prática os seus conhecimentos numa altura em que a rapidez de actuação é imperativa, como tem também a oportunidade de lidar com pessoas de todas as raças e credos, com todo o tipo de fundo socio-económico. Enquanto há pessoas com crenças, valores e hábitos semelhantes aos nossos, há também pessoas completamente diferentes de nós, e aí a convivência numa situação de stress (como sendo o SU) pode não correr da forma esperada.
Um clássico exemplo é a etnia cigana. Apesar de, na sua grande maioria, viverem em condições degradadas e com saneamento básico mínimo ou ausente, tendem a ser bastante preocupados com a saúde. Dessa forma, acorrem com muita frequência aos hospitais. Por uma questão cultural, deslocam-se sempre em grupos familiares numerosos, e é muito habitual vermos às portas das urgências as suas carrinhas brancas ou bejes* cheias de roupa e de gente. As crianças brincam nos relvados dos hospitais, e muitas vezes os mais velhos fazem piqueniques. Já nada me surpreende desde que vi um grupo a jogar às damas no chão, à porta do SU... Este comportamento não é limitado às Urgências, já que quando um indivíduo está internado no hospital toda a família vela em seu redor, nos corredores do hospital, nas cantinas e nos arredores. Este comportamento gera muitas vezes conflitos com o pessoal de saúde e com os seguranças dos hospitais, que por aceitação da cultura diferente ou provavelmente algum receio, têm uma atitude em geral mais permissiva com eles. Outra diferença cultural significativa relaciona-se com a atitude respeitadora que têm para com os idosos (e aqui ganham um ponto em relação à sociedade "ocidental"...).
Em termos médicos as diferenças culturais também se fazem sentir. Para além da menor qualidade do saneamento - que nos faz ponderar com maior frequência as patologias infecciosas - há uma questão genética muito particular. Uma vez que os indivíduos de etnia cigana casam com outros da mesma etnia, muitas vezes dentro da família (primos direitos), e tratando-se de um número relativamente pequeno de indivíduos, as doenças genéticas têm um peso maior do que nas outras etnias - os erros genéticos exibem-se e perpetuam-se entre gerações com maior facilidade. É relativamente frequente os pediatras hospitalares conhecerem as crianças ciganas com anomalias genéticas pelo nome, já que são muitas vezes "clientes habituais".
Este exemplo ilustra de uma forma extrema aquilo com que lidamos todos os dias: cada doente é um caso particular, fruto de um cruzamento da sua genética, da sua educação, da sua sociedade, das suas vivências. E por isso não há "chapa quatro".


* escreve-se assim?

sábado, 18 de dezembro de 2004

O futuro


Posted by Hello

Hoje venho falar um pouquinho de mim. Já várias vezes me perguntaram sobre mim, e tenho evitado responder por se tratar de um blog anónimo. Mas o motivo pelo qual vos venho falar de mim é principalmente para explicar o conteúdo dos posts que tenho aqui colocado: a maior parte deles têm-se referido a histórias vividas por mim no passado. O meu blog não tem focado as coisas com que me deparo no meu dia a dia porque o meu dia a dia não se tem relacionado com a medicina... Sim, estou de férias! E estou de férias até ao dia 31 de Dezembro. Eu concluí a licenciatura em medicina em Outubro deste ano, e inicio no dia 3 de Janeiro uma nova etapa: vou começar a exercer como médico. Provavelmente o meu blog mudará nessa altura, porque terei concerteza bastantes mais histórias para contar...
Agora explico a imagem: este "livrinho" define toda a minha vida futura. Em Dezembro do próximo ano farei um exame baseado neste livro, de cujo resultado sai todo o meu futuro: é com base na nota decorrente desse exame que eu escolherei a especialidade que vou execer para o resto da vida. O estudo já começou, e vai-se prolongar durante o próximo ano, durante o qual vou estar a trabalhar como médico interno, passando por áreas diversas como sendo a Medicina Interna, a Cirurgia Geral, a Pediatria, a Clínica Geral e a Obstetrícia.
Agora que está respondida a pergunta: "como é que um médico tem tempo para um blog?", prometo que vou tentar manter a regularidade de posts que tenho tido, apesar de se avizinharem tempos bastante mais complicados...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

Medo, muito medo!

Mais uma vez vos convido a ler as histórias dos meus vizinhos nortenhos!
A história está aqui.

Um cheirinho:

"Ele, um homem corpulento, dos seus 30 anos entrara a mancar.
Perguntei-lhe o que se passava, porque estava a mancar e todas as outras perguntas "da praxe". Acidente de moto. (...)
Peço-lhe para se deitar na marquesa para fazer alguns testes simples e é então que reparo num volume considerável por baixo do casaco de ganga que trazia vestido... o coldre de uma pistola. Os meus olhos, ainda meio incrédulos seguem esse inesperado objecto até encontrarem a coronha de uma arma... Medo, muito medo."

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Reanimação

Uma das alturas mais stressantes da vida de um médico são as reanimações. Quer entre um doente na urgência em paragem cardiorrespiratória, quer ela ocorra a um doente internado num serviço. Mais stressante ainda será assistir uma situação destas na rua... Felizmente nunca me aconteceu ter que socorrer alguém na rua, por isso dessa experiência não posso falar!

A primeira reanimação em que participei como membro activo foi no 5º ano da faculdade. Desde o 4º ano que fazia bancos (voluntariamente, claro) com uma equipa de Medicina Interna no H. Sta Maria com alguma regularidade (praticamente todas as semanas), de modo que já tinha estabelecido uma boa relação com os membros da equipa. Tinha assistido já à entrada de vários directos (doentes emergentes que entram directamente para a sala de reanimação), mas o meu papel tinha-se resumido a encolher-me num cantinho da sala para não incomodar. Um desses dias, estava eu na Sala de Observação (SO) a ver doentes, quando toca a campainha dos directos. Todos largámos o que estávamos a fazer e dirigimo-nos para a sala de directos. Toda a equipa (médicos, enfermeiros e auxiliares) preparou rapidamente a sala para a chegada do doente. Nem um minuto depois entra um homem enorme e obeso de maca, com a face arroxeada, em paragem cardiorrespiratória. Em três tempos foi colocado na mesa de reanimação, os enfermeiros canalizaram veias periféricas, foram colocados eléctrodos para avaliar o tipo de ritmo cardíaco e os parâmetros vitais foram observados pelos médicos. Eu, escondido no meu cantinho para não atrapalhar a dezena de pessoas que se agitava em torno do corpo, prestava atenção a todos os detalhes. O doente estava em assistolia (termo científico para a linha plana no electrocardiograma), o que não representava bom prognóstico (seria bem mais fácil reverter uma fibrilhação ventricular com um choque...). Um dos médicos, por sinal um médico muito alto e forte, começou a fazer massagem cardíaca, enquanto os outros administravam fármacos adequados e tentavam intubar o doente (colocar um tubo da boca até às vias respiratórias para facilitar a ventilação). O tempo passava, e nem a assistolia desaparecia nem conseguiam intubar o doente, que devido à sua obesidade era bastante difícil. Chamou-se a Anestesiologia (com grande prática de intubação) para tentar intubar, que em poucos segundos se pôs na sala de reanimação. E foi com a chegada da anestesista que eu, no meu cantinho, fui acossado para agir: o médico que estava a fazer massagem cardíaca apontou para mim e disse "Tu! J.! Vem para aqui, estou cansado!". Imediatamente desatei a suar profusamente, o meu coração começou a galopar e disse "E-eu?!". Mas não tive tempo para hesitações, num instante estava a substitui-lo e a fazer massagem cardíaca. O começo foi atribulado: a maca era altíssima, eu não, e precisei de um estrado para fazer massagem cardíaca de forma adequada. Na minha cabeça revia os passos que tinha aprendido com "os bonecos" para fazer tudo correctamente. Coloco as mãos em cima do esterno do doente e faço a primeira compressão: senti imediatamente dois ou três "crack!" debaixo das minhas mãos... Lembrei-me da frase proferida pela instrutora das aulas de reanimação: "com força suficiente para ser eficaz, mas de preferência sem partir costelas!". Se já estava suado, mais fiquei, e moderei a força das compressões seguintes. Entretanto a anestesista tentava intubar o doente, mas até ela estava com uma dificuldade imensa. Quando finalmente parecia intubado, começei a sentir algo estranho. Estava com mais dificuldade em fazer as compressões: parecia que o abdómen estava cada vez mais volumoso... "Está no estômago, o ar está a entrar para o estômago!", disse. A anestesista correu para o doente novamente, e confirmou, descomprimindo o ar no interior do estômago, que de facto a intubação não tinha sido eficaz. Voltou a tentar, e finalmente conseguiu. Entretanto passavam-se talvez três ou quatro minutos desde que eu tinha começado a massagem cardíaca (ou seria um ou dois?!?), e os meus braços estavam absolutamente entorpecidos, as costas doíam-me como se eu tivesse 90 anos, a minha camisa estava encharcada, e o meu coração galopava como se não houvesse amanhã... O coração do doente é que não parecia seguir o exemplo do meu... Algum tempo depois, bastantes fármacos depois, e uma substituição iminente (eu estava quase a morrer ali também), o coração do doente pareceu responder. Todos me gritaram: "pára!", porque a massagem interfere com o electrocardiograma, e quando parei confirmámos o que parecia: tinhamos tido sucesso! O coração batia por si! Desci do estrado, e fui com alguns dos outros de volta para o SO, descansar um pouco, com um sorriso nos lábios. Apercebi-me então que era o único com um sorriso nos lábios... Perguntei porquê, e rapidamente percebi: todo o tempo decorrido, acrescido da deficiente ventilação, tornavam muito prováveis a irreversibilidade dos danos cerebrais. Ou seja, provavelmente aquela reanimação resultaria numa permanente "ligação à máquina"... Pouco depois, e afinal para nosso alívio, disseram-nos que o doente não tinha resistido, acabando mesmo por falecer...
Nunca cheguei a perceber se a "minha" primeira reanimação tinha sido um sucesso ou não...

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

Medicinas alternativas

Antes da história propriamente dita, uma advertência importante! Eu não pretendo com este post contestar a veracidade de toda e qualquer dita "medicina alternativa" ou "medicina complementar". Pretendo contar apenas um caso que por si só aconselha a cuidados redobrados quando lidamos com este tipo de "terapêuticas".

Naquele dia eu ia assistir às consultas de Cirurga Plástica. Estava bastante satisfeito, visto tratar-se de uma área pela qual nutro algum interesse. A consulta foi muito variada, podendo ter oportunidade de observar patologias bastante diversas, das mais simples às mais complexas. O cirurgião que estava a dar as consultas foi, a um determinado momento, chamado por um enfermeiro ao corredor de acesso aos gabinetes. Pediu-me para esperar um pouco dentro da sala e saiu com o enfermeiro. Dois minutos depois voltou, com um ar constrangido, e pediu-me para o seguir. Tinha sido chamado a propósito da presença de uma doente que ele tinha seguido há algum tempo na consulta.
Cerca de dois anos antes essa doente tinha ido à consulta dele com um polipo no palato ("céu da boca"), polipo esse que ele removeu e mandou para a anatomopatologia (especialidade médica que, entre outras coisas, se dedica à observação ao microscópio de "partes do corpo"). O resultado do exame anatomopatológico foi tranquilizador - tratava-se de uma lesão benigna. A doente ficou referenciada para uma consulta seguinte. No entanto, chegada a data dessa consulta, o polipo tinha voltado a aparecer. Essa recidiva foi tratada da mesma forma, sendo removida cirurgicamente - desta vez com bordos de segurança mais alargados (isto significa que além do polipo foi retirado tecido aparentemente são em seu redor, como margem de segurança). O resultado da anatomopatologia não foi tão feliz como da primeira vez: havia algumas alterações no tecido (apesar de não se tratar ainda de uma lesão maligna), mas as margens de segurança estavam "limpas". Marcada nova consulta, nova recidiva do polipo, desta vez com maiores dimensões. Mais uma vez foi removido, com margens de segurança ainda mais alargadas, para evitar nova recidiva. A anatomopatologia foi, desta vez, conclusiva: tinha evoluido para uma lesão maligna. Mas, mais uma vez, a margem de segurança retirada era perfeitamente normal, o que era tranquilizador. No entanto, e em face das repetidas recidivas, a consulta seguinte foi marcada com bastante proximidade. No entanto a doente faltou a essa consulta, e nunca mais tinha contactado a central de consultas no sentido de marcar nova data de consulta.
Até esse dia. Tinha passado um ano desde a última cirurgia, durante o qual a doente esteve ausente da consulta (apesar de plenamente ciente da gravidade da sua patologia). Aborrecida com a medicina dita "convencional", tinha frequentado durante o último ano as "consultas" de um indivíduo que acreditava (?) que determinados venenos naturais seriam capazes de debelar o cancro. A doente tinha passado um ano a levar picadas semanais de escorpião... Infelizmente tinha surgido novamente uma lesão polipóide, que tinha sido intensivamente "tratada" com as picadas de escorpião (alguma teoria de oposição entre os trópicos de "cancer" e "scorpio"?!).
O motivo do seu regresso à consulta era simples de compreender: a lesão tinha aumentado progressivamente de dimensões ao longo desse ano, e agora, estranhamente, parecia ter aparecido um sintoma novo - um dos olhos parecia mais saliente que o outro. Feitos os adequados exames imagiológicos (TAC) apercebemo-nos que a lesão tinha progredido de uma forma absolutamente irreversível: havia invasão das fossas nasais, dos maxilares superiores bilateralmente e também de uma das cavidades orbitárias (por trás do olho mais saliente). Havia metástases nos gânglios do pescoço, e provavelmente também distantes do local de origem do tumor. Havia muito pouco que se pudesse fazer por ela, além de oferecer terapêutica paliativa... e esperar pela morte...

domingo, 12 de dezembro de 2004

Um pouco de ciência e de açorda de marisco

Vejam isto e isto, ambos tirados daqui.

Só um cheirinho:
"A doente seguinte irrompe pelo consultório e mostra triunfante o historial irrepreensível da sua tensão arterial dos últimos 3 meses (tudo à custa da toma escrupulosa dos 4 anti-hipertensores e “da conversinha que tive com a doutora”)."

Por vezes temos dias em que tudo corre bem e toda a gente elogia o nosso trabalho... Vemos os resultados práticos das nossas "sendas terapêuticas" traduzidos em satisfação e reconhecimento dos nossos doentes! Caramba, sabem mesmo bem, esses dias...

O Clínico Geral (2)

A D. Deolinda e o Sr. José iam à consulta todos os meses. Muitas das vezes não tinham nenhuma queixa nova, mas era para eles imperativo ir ao seu Médico de Família pelo menos uma vez por mês.
A maior parte das vezes ia a D. Deolinda sozinha. Quando ela lá ia sozinha fazia o seu rol de queixumes habituais das doenças e adicionava-lhes os queixumes em relação ao seu marido. "Doem-me os ossos, sôtor, da cabeça aos pés! E a cabeça?! Nem faz ideia, os medicamentos do costume já não fazem nada! O homem moe-me o juizo, sôtor, está velho! Não faz nada certo! Sabe o copinho de vinho que o sôtor lhe disse que podia beber em cada refeição? Pois já é quase uma jarra cheia! Ele não lhe diz nada, esconde tudo! E ainda ontem se pôs a comer jaquinzinhos fritos de petisco no café da Almerinda, e o sôtor que lhe tinha dito que não podia por causa do Castrol... Faz tudo trocado!". Então e hoje vem cá por quê, D. Deolinda? "Preciso que me passe aqui as coisinhas do costume... Este, da caixa verde, é para a tensão. Faz-me azia, sôtor, não há um mais fraquinho? A tensão tem andado tão boa, aí nos 15/9, que eu vou à farmácia dia sim dia não. Depois este da cabeça... Dá-me conta dos rins, acho que foi desde que comecei a tomar este que me doem mais as costas!". Mas D. Deolinda, a senhora toma esse há dois meses e doem-lhe as costas há mais de dez anos! Além disso essas dores não são dos rins... "Não me diga isso sôtor, são os rins que eu sinto-os! Doi-me aqui mesmo... Aqui! O que me faz bem é aquela injecção do rémos ou lá o que é que me deu aí há uns tempos!".
Quando ia lá com o Sr. José as coisas eram diferentes mas não muito... Então Sr. José, vamos fazer umas análises? Nem o Sr. José acabou de abrir a boca é atropelado: "Estás a ver? Agora é que são elas! Deve estar tudo uma desgraça! Sôtor, ele não faz nada do que é suposto! Conta lá ao sôtor o que é que comeste ao almoço? Eu fiz batatinhas fritas para a minha neta olhe, comeu-as todas! Carregadinhas de sal, veja lá, achei que o homem me morria na sala quando se começou a agarrar ao peito!". "Pudera, mulher, e és tu que me matas!". Seguia-se uma pequena discussão a que o "sôtor" tratava de cobrar termo, depois da qual vinha um pouco mais do mesmo. E o Sr. José e o médico entreolhavam-se, enquanto a D. Deolinda continuava a sua lista infindável de queixumes relativos às doenças, às curas e ao Sr. José...

Pode parecer maldade, mas lembrei-me de descrever estes "doentes tipo" da Clinica Geral depois de ouvir a minha mãe a queixar-se da falta de cumprimento do meu pai em relação às alterações alimentares que as doenças impõem... Quantos de vocês se lembraram automaticamente dos "velhotes" que conhecem por aí? Espero pelos comentários ansiosamente!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Urgências Hospitalares

Por vezes as pessoas vão tão de pé atrás para as Urgências Hospitalares que acabam por perverter o sistema de uma forma que não faz sentido. Ainda estão fora do hospital e já estão a falar mal de tudo o que podem...
Eu estava a estagiar nas Urgências Pediátricas de um grande hospital lisboeta. Quando chega uma criança, por ordem de chegada a menos que seja uma situação emergente, ela é encaminhada para a triagem. Na triagem é feita uma observação muito sumária com o único objectivo de definir a sua prioridade, ou seja, entender o grau de urgência que aquela situação representa. A triagem ali é frequentemente feita por enfermeiros. No caso de ser uma situação emergente, são imediatamente chamados os médicos. Os restantes casos são colocados em duas "prateleiras", uma de alta prioridade e outra de menor prioridade, para depois serem chamados pelos médicos para os gabinetes de observação. É um sistema que, pelo menos ali, funciona muito bem e não deixa casos em que é preciso actuar rapidamente à espera por tempo demasiado.Num dia de trabalho como tantos outros chega uma ambulância do INEM com uma criança. Ela é atendida prioritariamente (ou seja à frente das pessoas que vieram em viaturas próprias) na triagem, onde a enfermeira percebe que não se trata de uma situação emergente, nem mesmo de uma situação de alta prioridade. No entanto, e por uma questão de coerência com a chegada aparentemente emergente da criança, colocou a ficha na "prateleira" de alta prioridade, onde havia duas outras fichas. Essas duas outras fichas foram atendidas primeiro, por outros dois colegas meus, e quando acabo de ver o doente que estava a ver chamo a criança pelo intercomunicador. Espero um minuto, não aparece ninguém, volto a chamar pelo intercomunicador. Estranhei a situação, visto tratar-se de uma ficha de alta prioridade com horário de entrada marcado na ficha de há quinze minutos atrás, e fui chamar pessoalmente a criança à sala de espera. Quando me dirigia à sala de espera o segurança dirige-se a mim para me informar do sucedido. A mãe da criança, que a acompanhava, tinha armado um escândalo na sala de espera por estar 10 minutos à espera (segundo ela "nem a ambulância tinha demorado 10 minutos a chegar!") e tinha-se ido embora "para o médico particular" de taxi. Ou seja: usou os recursos de saúde do INEM (que pelos vistos foram bastante eficazes), foi atendida prioritariamente na triagem, foi indevidamente triada a ficha como de alta prioridade, foi chamada 10 minutos depois da sua chegada (não sendo uma situação emergente), arma um escândalo e mete-se num táxi com a criança para o médico particular onde esperará pacientemente na sala de espera... E concerteza terá depois chocado as suas amigas com as descrições horrendas sobre a forma indecorosa como havia sido tratada no "público".

Esta é concerteza uma situação limite... O bom senso das pessoas que recorrem às urgências hospitalares não é, na maior parte das vezes, tão escasso... Mas ainda assim surgem situações semelhantes todos os dias! A classificação do grau de urgência de um caso, seja
por que método for, causa óbvias assimetrias! E ainda bem que assim é! Não se poderia admitir que um enfarte ou um AVC esperassem na sala de espera o mesmo tempo que uma dor de dentes ou uma dor na perna "que tenho há um mês"... Não quero dizer com isto que as urgências hospitalares funcionam bem: não funcionam. Não funcionam bem porque há pouco pessoal (médicos, enfermeiros, auxiliares), na maior parte dos sítios há insuficiente espaço físico, noutros locais há insuficientes meios complementares de diagnóstico, e uma boa parte do trabalho é desnecessário (não são situações que requiram cuidados médicos urgentes). Passamos 24 horas enfiados num buraco onde a velocidade de trabalho é sempre insuficiente, onde lidamos com situações stressantes e angustiantes e com outras que não são minimamente urgentes, e onde toda a gente encontra um motivo para refilar com o nosso trabalho... Pessoalmente, tento que esse ambiente não afecte a forma como falo com todos os que me rodeiam, mas nem sempre é fácil!...

quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

As "Cubas"

Correndo o risco de criar polémica, hoje venho falar do desespero.

Como médico tenho a perfeita noção que a o meu trabalho não é curar as pessoas. A maioria dos doentes têm doenças incuráveis. O que não quer dizer que não sejam tratáveis! Podemos minorar aspectos mais desagradáveis das doenças, podemos até faze-las passar despercebidas, mas a grande maioria das vezes não curamos.
Para além das doenças mais habituais como a hipertensão, a diabetes, a hipercolesterolémia, etc, que podemos medicar e controlar mas nunca curar, um dos melhores exemplos é "o cancro". Quando vejo na televisão, nos jornais ou na boca das pessoas a expressão "a cura para o cancro", não posso evitar um sorriso amarelo. É verdade que, através do diagnóstico precoce e terapêutica adequada, é possível que um indivíduo não volte a ter manifestações de uma neoplasia, não digo que não (e cada vez mais, felizmente, a ciência encontra modos de o fazer). Mas se medirmos a taxa de sucesso exclusivamente em termos de "curas" a longo prazo consideramo-nos muito pouco eficazes... Congratulamo-nos com a manutenção da qualidade de vida durante mais tempo, se possível durante vários anos, e com a manutenção da doença num estado controlado.
Outro exemplo é a tetraplegia ou a paraplegia. Quando há lesão da medula espinhal a um determinado nível deixa de haver comunicação entre o cérebro e as zonas inervadas pela medula abaixo dessa lesão. Esta lesão é (pelo menos no que a actual tecnologia permite) irreversível. É possível por vezes recuperar uma pequena função, mas nunca nada de extraordinário. Por muito que se trabalhem os músculos das pernas o cérebro nunca mais será capaz de ter controlo sobre o seu movimento porque, pura e simplesmente, não consegue fazer com que chegue lá informação. A "auto-estrada" está cortada e não há estradas alternativas...
A verdade é que passamos a vida a ouvir falar de tratamentos miraculosos quer para a tetraplegia quer para o cancro. Há sempre pessoas a ir para Cuba fazer tratamentos e para outras "Cubas" fazer terapêutica experimental. Ouvem-se frequentemente queixas de falta de apoios do Sistema Nacional de Saúde para que as pessoas se possam deslocar a essas "Clínicas"... Não se trata de ciúmes relativamente aos países que possuem essas tecnologias maravilhosas: é que quando nenhum benefício está demonstrado dessas terapêuticas não se podem investir milhares de euros... Porque a maior parte dessas situações são movidas pelo desespero. Atenção: esse desespero é perfeitamente legítimo, não me interpretem mal! É muito difícil para qualquer um ouvir a frase "não há nada que possamos fazer para além de tentar manter um nível adequado de qualidade de vida". Sabe a pouco, naturalmente... Mas a medicina não é perfeita...
Felizmente vivemos num país em que a saúde (pelo menos por enquanto) pretende chegar a todos de uma forma igual... Ninguém fica a morrer à porta de um Serviço de Urgência por não ter dinheiro para pagar tratamentos ou por não ter um seguro de saúde adequado! O que acontece, por exemplo, nos EUA. E nenhum tratamento com benefício comprovado é recusado, ponderados os riscos e benefícios da sua aplicação.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2004

1000!

Hoje foi um dia complicado, e por isso esta foi a única coisa que consegui postar:
O blog passou as 1.000 visitas! (é nesta altura que os bloggers dos tops se riem da minha singela felicidade...) Obrigado a todos os meus "leitores" e "comentadores", têm sido impressionantes!

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Esquizofrenia


Posted by Hello

Entre os vários estágios que fiz ao longo do curso, os de Psiquiatria foram os que mais me custaram... Confesso que não é uma especialidade da minha preferência... No entanto, como todos os médicos precisam de lidar com todas as pessoas, das mais às menos equilibradas, é necessária alguma experiência nessa área! Da psiquiatria mais ligeira à mais pesada, pelas mãos de todos os médicos passam doentes menos sãos do ponto de vista psicológico.

O Luís, de 44 anos, estava internado no H. Júlio de Matos porque tinha, um dia, ficado muito agitado, com um discurso ininteligível e mostrando agressividade para com o seu irmão. Quando comecei o estágio tinha sido internado há duas semanas.
A minha presença na sala, juntamente com a sua psiquiatra, não o deixara muito à vontade. Já estava calmo, e apesar de uma aparência bastante desmazelada tinha um discurso aparentemente coerente. Aos poucos começou a ficar mais relaxado na minha presença, e a falar mais descontraidamente. Contava como fazia as suas pequenas esculturas em madeira "eu faço coisas na madeira que as pessoas não percebem. Não são só pessoas que eu faço, faço mais coisas. É que não decido faze-las sozinho, está a compreender?". Não, ele teria que me explicar. "Quando estou deitado, às vezes sinto uma luz... Assim (gesticulava muito) por cima da minha cabeça. O que é essa luz? Disso não posso falar, é o meu segredo.". Mas aos poucos ia contando: "Essa luz tem muitos volts, mas é uma luz suave. É o Espírito Santo, sinto um arrepio quando ela me entra no corpo. E eu sou o segundo grande herói. O primeiro foi Jesus Cristo." Contou-me como estimava todas as formas de vida, como tinha salvo uma formiga da morte colocado-a em cima de uma folha. "Eu sou o ser humano perfeito, entende? E sou um magnata, um milionário.".
Depois, quando a conversa se afastava um pouco dos assuntos religiosos, contou que nos dias que se antecederam o internamento se sentia muito estranho. Era capaz, afirmava, de decorar as matrículas de todos os carros quando eles passavam, e sentia-se muito confuso, via "o mundo todo ao mesmo tempo". Contou também que se tinha divorciado há alguns anos, e que tudo se tinha precipitado aí. Recusava terminantemente falar sobre a ex-mulher e os motivos do divórcio, mas desde então tinha começado a guardar as suas "relíquias". Acumulava no seu quintal todo o tipo de material, ferros, madeiras, partes de carros, objectos que "para as pessoas não têm valor, mas as pessoas não percebem nada...". E sim, tinha sido mais ou menos desde então que o Espírito Santo lhe tinha começado a entrar no quarto e atravessar o seu corpo. Quando lhe perguntei se Deus falava com ele disse-me: "Não posso falar sobre isso, é o meu segredo, já te disse!".
E assim tinha ido ali parar. Não sabíamos se era uma esquizofrenia simples ou se estava associada a uma componente afectiva (já que assediava todas as enfermeiras e doentes internadas e os seus delírios eram muito megalómanos). Mas o Luís tinha um problema grave do foro psiquiátrico, certamente "esquizofreniforme". Com a idade que tinha, o longo tempo de evolução e várias outras características, o prognóstico era bastante mau. Estava já sob terapêutica agressiva, mas mantinha-se um quadro delirante marcado. Estaria, talvez, condenado a ser um doente psiquiátrico para o resto da sua vida...

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Vida!

Para variar um bocadinho, e porque os últimos posts foram um pouco "on the down side" - os títulos atestam-no - vim falar-vos da vida.

Foi no 4º ano da faculdade que eu assisti pela primeira vez a um parto. Diziam-me que o primeiro parto a que se assiste é inesquecível, e eu subscrevo a afirmação na totalidade. Na cadeira de Pediatria foi-nos "encomendado" um trabalho: tinhamos que assistir a um parto, observar a prestação de cuidados ao recém-nascido e seguir o primeiro mês de vida do bebé.
Foi nesse contexto que entrei no bloco de partos do Hospital de Santa Maria. Falei com uma parturiente, que aceitou colaborar comigo no trabalho (naquele momento estava tão aflita com as contracções que dizia que sim a tudo). Tinha recusado epidural, pelo que o espectáculo prometia ser agreste...
O trabalho de parto foi relativamente longo, afinal era um primeiro filho. Deu tempo de tomar um café, um lanche, outro café e quase começar a pensar em jantar... e já tinha entrado durante a noite anterior! Aos poucos a dilatação do colo ia-se fazendo e a cabeça aproximava-se da "saída" sem problemas, até que chegou o período expulsivo. A "mãe" foi levada para a sala de expulsão, colocada na posição adequada, e instruída para fazer força apenas quando surgisse uma contracção. O marido estava ao lado dela, branco como a cal da parede e a respirar mais depressa que ela. Para um aluno de 4º ano aquela posição era um bocadinho constrangedora, a espreitar para o meio das pernas de uma grávida, e o que se seguiu deixou-me um pouco chocado. Ao fazer força para expulsar o bebé as hemorróidas (muito frequentes nas grávidas) inchavam, e por entre os gritos ásperos e rugidos enraivecidos (gritava, tarde demais, pela epidural que tinha rejeitado...) saíam involuntariamente fezes. Comecei a suar instantaneamente, e dei por mim a fazer força juntamente com a mãe (de vez em quando apercebia-me que EU não estava a respirar durante as contracções e sentia-me bastante idiota...). Aos poucos a cabeça foi aparecendo e descendo, enquanto a parteira quase saltava em cima da vagina para que os movimentos que a cabeça tem que fazer para atravessar o canal de parto se fizessem adequadamente. Depois veio a episiotomia (para quem desconhece o termo, trata-se de um corte oblíquo na vagina e períneo que permite que essas estruturas alarguem sem "rasgar" os músculos de forma irreversível.)... Aos gritos agudos da anestesia local seguiu-se um grito imenso quando (durante uma contracção) a enorme tesoura de episiotomia cortou pele, gordura e músculo com um som dilacerante horrendo semelhante ao som feito por uma tesoura a trinchar frango. O sangue começou a escorrer, o bebé começou a saír. E assim que saíu a cabeça jorrou um mar de líquido amniótico e sangue que encheu a sala com um cheiro metálico. Ao mesmo tempo, por absolutamente paradoxal que possa parecer, arrepiei-me da cabeça aos pés, dei um sorriso enorme e os meus olhos encheram-se de lágrimas. Um som novo, um fraco gemido zangado (ainda esperava o choro agudo que vemos nos filmes...), solto pela criatura minúscula e suja que acabara de nascer, fez a mãe e o pai sorrirem e os seus olhos brilhar. Cortaram o cordão umbilical, mostraram o bebé à mãe, e depois, enquanto se dava a dequitadura (saída do resto do cordão e da placenta) e a episiorrafia (sutura da episiotomia), fui assistir aos cuidados ao recém-nascido. O turbilhão tinha passado, e agora tudo estava mais calmo. E apesar de ser até então o momento mais horrível e cruento a que tinha assistido, foi sem dúvida dos mais extraordinários: a natureza no seu auge, a criação de vida no seu expoente mais rude e simultaneamente mais belo. Autêntica poesia.

domingo, 5 de dezembro de 2004

No leito da morte

Os cuidados paliativos são os cuidados de saúde (médicos e de enfermagem) que se cedem às pessoas por quem a medicina dita "curativa" (se isso existe) já nada pode fazer. Alivia-se a dor e o sofrimento, acompanha-se a mais ou menos lenta progressão para a morte, mas nada se evita, muito pouco se adia.
Não é nada fácil decidir quando é que um doente deve ser alvo de cuidados paliativos... A linha decisória não é fácil de definir: quando é que desistimos de tratar? Quando é que temos a certeza que não há regressão possível da doença, e que a inevitabilidade da morte chega? Muitas vezes investimos demais, e isso é prejudicial porque sujeitamos as pessoas a tratamentos que causam mais mal que bem... Por outro lado se deixamos de investir pensamos: e se tivesse feito mais?
Quem trabalha com cuidados paliativos trabalha um passo à frente deste. Lida com pessoas cuja vida é apenas um caminho para a morte. A dor, um dos enormes adversários nos cuidados paliativos, não é o único. Há outros problemas físicos a aliviar, e há ainda a depressão, a sensação de impotência perante a inevitabilidade da morte e da sua proximidade. Não é simples saber o que dizer a uma pessoa que tem motivos para querer desistir da vida só um pouqunho mais cedo... Será lícito obrigar a vida a terminar mais cedo? Sempre? Independentemente disso a decisão está para nós facilitada - não o podemos fazer. Mas há uma decisão igualmente difícil a tomar: quando alguma coisa acontece que precipita a morte, devemos impedi-la? Será também isso lícito?
No dia a dia das pessoas que se dedicam aos cuidados paliativos sucedem-se estas decisões difíceis, mas tratam-se também de pessoas com experiência... No entanto os cuidados paliativos no domicílio em Portugal estão ainda no início... Continuamos a ver os doentes terminais a ser internados nos hospitais para morrer, onde morrem sozinhos, são cobertos por um lençol branco e entram nas "estatísticas"... É preciso que em todo o país (os nossos (des?)governantes, os "manda-chuva" da saúde, cada um dos médicos, toda a sociedade) se perceba a importância do trabalho de quem lida com os cuidados paliativos todos os dias, e transformar isso num fenómeno nacional e global...


Escrevo isto depois de ter visto na RTP uma reportagem sobre os cuidados paliativos com a Dra. Isabel Neto, a quem espero estar a dar um pequeno contributo para mudar mentalidades...

sábado, 4 de dezembro de 2004

Haloscan

Infelizmente, enquanto actualizava a área de comentários com o Haloscan todos os comentários feitos previamente desapareceram... Peço desculpa aos seus autores, e martirizo-me pelo sucedido: eles enriqueciam o blog. Peço encarecidamente a todos os leitores que continuem a enriquecer o meu blog com os seus comentários! Sem vocês este blog não faria sentido, desabafava com o espelho!

A morte

No nosso dia a dia lidamos com a morte de variadíssimas formas... Morte dos nossos familiares, amigos, conhecidos e mesmo dos desconhecidos, que através da televisão nos chegam a casa.
A perspectiva da morte em Medicina é bastante diferente, simultaneamente por ser bastante frequente e porque envolve responsabilidade profissional. Obviamente que com a experiência se aprende a lidar com a situação, mas uma morte nunca é vivida com indiferença.

O senhor José* tinha já 80 anos. Tinha sido engenheiro electrotécnico, mas as suas doenças tinham-no impedido de continuar a trabalhar. Sim, as doenças, porque a idade só por si nunca o iria parar. Estava internado num Serviço de Medicina Interna onde tive aulas práticas de Medicina Interna no 4º ano. Como aluno do 4º ano claro que não estava sozinho: em torno da cama do doente constituíamos um pequeno rebanho de 4 alunos. Tinha-nos sido pedido que observássemos o Sr. José durante uma semana, para na sexta-feira discutirmos o caso dele com o Assistente e os restantes 20 alunos da turma. Ao longo dessa semana tivemos longas conversas com o Sr. José, que tinha sempre histórias para contar, das quais se lembrava perfeitamente apesar de não ser capaz de nos contar os detalhes das suas doenças. Por esse mesmo motivo tivemos também longas conversas com a sua mulher, 20 anos mais nova, no sentido de entendermos melhor as patologias que o afectavam. A mulher era-lhe muito dedicada e, naturalmente preocupada, contava os pormenores detalhadamente para que não nos escapasse nada que pudesse ser importante no seu tratamento. Mas o estado do Sr. José, apesar da idade e das múltiplas patologias, não era nada mau, e esperávamos uma alta relativamente próxima. Quando na sexta-feira me dirigia para a faculdade para a dita reunião, levando no meu carro uma das minhas colegas de grupo, avistámos a esposa do Sr. José à porta da morgue do hospital. Sobressaltados aproximámo-nos. Ela estava agitadíssima, falava muito depressa, e no meio de toda a agitação entendemos "Ele faleceu esta noite!". Estava preocupada com o paradeiro do corpo, justificando desse modo a agitação - na verdade a preocupação servia-lhe naquele momento para esconder a tristeza de si própria, porque quanto ao paradeiro do corpo não havia dúvidas: estava na morgue do hospital. Ainda meio aturdidos, e também atrasados para a reunião, despedimo-nos. Ela agradeceu-nos toda a atenção que tinhamos dado ao Sr. José, e também a companhia que tínhamos feito naquela última semana.
Levávamos nas mãos a história clínica redigida. Encontrámos à porta da sala onde ía decorrer a reunião as outras duas colegas que connosco tinham trabalhado. Conversavam, entretidas, mudando instantaneamente a expressão facial ao verem as nossas caras desoladas. Assim que souberam da notícia entrámos na sala, para apresentar a história. Toda a história clínica estava escrita no presente: "o doente apresenta uma...", e em cada tempo verbal a colega que estava a ler via-se obrigada a corrigir: "o doente apresentava uma...". A relação desenvolvida ao longo da semana com o doente, e a proximidade entre o choque da notícia e a apresentação da história fundiram-se e, a meio da leitura, começou a chorar. Explicámos o sucedido aos restantes colegas e ao Professor, que compreendeu a reacção apesar de recomendar maior prudência no estabelecimento de laços afectivos com os doentes no futuro...

Foi o primeiro contacto com a morte nos Hospitais para todos os membros do grupo, e talvez por isso marcou-nos mais. O calo emocional vai-se desenvolvendo, e ajuda-nos a lidar melhor com a morte. Mas não é nunca suficiente para nos impedir de pensar nisso quando nos deitamos à noite...

*mais uma vez recordo que os nomes usados neste blog não correspondem aos reais

sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

Uma outra "velhota"

Vão aqui ler sobre uma experiência parecida com a minha da "velhota"! Está num blog muito interessante, feito por colegas meus, onde entre desabafos mais irados e histórias mais comoventes podemos ver mais ainda sobre a experiência dos médicos no contacto diário com os doentes!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Uma partida didáctica...

Andava eu no meio de um rebanho de alunos do 4º ano de Medicina (rebanho do qual eu era um membro na altura) pelo serviço de Pediatria, mais precisamente no "Puerpério". O Puerpério é onde ficam as "recém-mamãs" com os seus recém-nascidos. Tinha-nos sido pedido pela nossa Assistente de Pediatria que fossemos falar com a mãe de uma criança, no sentido de fazermos uma recolha de todos os dados importantes acerca da saúde da mãe e do bebé.
Era uma mãe adolescente de 16 anos, Moçambicana, que tinha engravidado do seu primeiro e único namorado. A gravidez não era planeada, e ao engravidar veio para Portugal (por motivos que não entendemos muito bem no início da entrevista). Não tinham surgido quaisquer intercorrências durante a gravidez e o parto foi de cesariana, por motivos que a mãe não soube explicar. Perguntámos variadíssimas coisas acerca dos antecedentes pessoais da mãe, acerca da gravidez, acerca do parto, observámos o bebé, e como éramos muitos a fazer a entrevista ao mesmo tempo as coisas prolongaram-se durante uns 45 minutos. Já no fim da história clínica, em jeito de despedida, perguntei "Bom, não há então mais doença nenhuma que se lembre de ter tido, não?". Com uma descontracção assustadora disse "Ah, sim, já me esquecia, sou seropositiva!". Um gelo silencioso percorreu toda a sala. Contou depois o resto da história: tinha nascido seropositiva, por transmissão vertical (mãe para filha). Estava tão habituada à ideia, disse, que nem se tinha lembrado de nos dizer antes. Ao fim e ao cabo isso fazia parte da sua vida como a cor do cabelo ou dos olhos: sempre lá tinha estado. A ideia de que o seu filho pudesse ser também seropositivo não a assustava, seria como ela. Herdaria dela o vírus, como herdou dela a cor do cabelo e da pele. Ela sabia que havia a hipótese do filho "negativizar" passado seis meses, mas não lhe parecia fazer qualquer diferença. Falou dessa possibilidade com a mesma naturalidade com que nos contou o seu nome...
Saímos aturdidos da sala, num silêncio sepulcral, enquanto ela dava o biberon ao bebé com um sorriso nos lábios. A nossa Assistente de Pediatria tinha-nos pregado uma partida didáctica...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

A velhota

Eu estava no 3º ano da Faculdade quando me pediram para fazer a minha primeira "História Clínica". Já tinha contactado com doentes antes, nomeadamente nas férias do 2º para o 3º ano com uma assistente do 2º ano, mas nunca tinha feito uma história clínica completa. Numa história clínica colhemos todos os dados da pessoa, relativos ao passado clínico e à doença actual, e fazemos o Exame Objectivo completo (observar a pessoa da cabeça aos pés). Estava com outra colega minha, e juntos fomos colher a história.

"Bom dia D. Maria!". Estava internada num serviço de Cardiologia, e o nosso Assistente tinha-nos recusado qualquer informação prévia, para descobrirmos tudo o que pudéssemos por nós. Era uma senhora de 90 anos muito simpática, que sofria do coração - esta foi a conclusão brilhante da nossa primeira meia hora de conversa... Aliada à nossa inexperiência, a capacidade de "botar discurso" da D. Maria resultou numa conversa amena durante aproximadamente 3 (!!) horas, da qual muito pouca informação clínica surgiu. Falámos da sua doença, também, mas a D. Maria preferia falar do quintal onde tem os seus cãezinhos. "As minhas vizinhas, Deus as tenha, tratam-me dos cãezinhos enquanto estou internada...". Tratou-nos a entrevista toda carinhosamente por "meninos" (e tinha razão...), e dizia-nos a cada 5 minutos "São tão novinhos! Deus os tenha, são tão amorosos!". E nós sorríamos, entredentes pensando se alguma vez alguém nos levaria a sério, mas ao mesmo tempo deliciados com a velhota. O exame objectivo foi uma sombra daquilo que deveria ser, não porque a D. Maria tivesse pudor de se despir, mas porque nós tinhamos vergonha de a observar a ela... Ela dizia "Não tenham vergonha! Alguém tem que fazer isto para que vocês aprendam, não é?", mas nós, apesar de cientes da verdade proferida, continuámos a achar desnecessária a exposição da intimidade. No final já nos convidava para irmos a casa dela "É em Belas, eu mostro-vos o meu quintal e faço-vos um cházinho!". Com um sorriso não fomos capazes de recusar formalmente (mais um fruto da inexperiência), mas "ficou para depois". Beijou-nos a ambos, os seus "queridos", e nós mais uma vez não fomos capazes de negar.
Escusado será dizer que a primeira história clínica, como primeira que foi, foi a mais incompleta de sempre... Assim que virámos costas e nos socorremos dos nossos "manuais" de história clínica apercebemo-nos da imensidade de coisas importantes que nos esquecemos de perguntar. Claro que esta história não só foi interessante, como foi também importante! Não só passámos a esquecermo-nos cada vez de menos coisas, como a fazer as histórias clínicas progressivamente em menos tempo. Aprendemos também que a proximidade e a distância emocional devem coexistir, não só porque não há tempo para estar 3 horas à cabeceira de um doente, mas também para nos protegermos a nós próprios das emoções excessivas.
Mas ali era diferente... Saímos os dois do quarto com um sorriso enorme, e a dizer um para o outro "nunca mais podemos deixar isto acontecer desta maneira!"... e aprendemos um pouco naquela manhã.

terça-feira, 30 de novembro de 2004

Era apenas uma criança...

Eu expliquei bem o que ía fazer... "Tens que te portar bem! Não te vai doer nada, não te assustes... Vou-te por um pano verde na cara, mas a mãe não vai a lado nenhum, fica aí ao teu lado a dar-te a mão!" (e a segurar-te com força, espero).

A Joana tinha caído em casa, onde acontecem a maior parte dos acidentes. A força com que a sua sobrancelha direita tinha batido na esquina da mesa tinha sido suficiente para fazer um golpe com aproximadamente 2 centímetros. Embrulhada em panos sangrentos tinha sido trazida para o hospital, para as Urgências de Pediatria, de onde a referenciaram para a sala de Pequena Cirurgia. Aí estava eu, entre um corte na mão feito por uma serra de peixe e um abcesso malcheiroso para drenar.
Quando entrou já não sangrava activamente, e não se queixava de dores. Mas a sala fria e branca da Pequena Cirurgia, e o meu fato de bloco verde doeram-lhe bastante à entrada, e desatou logo numa berraria (esta vai dar luta). Falei com ela com o meu sorriso 31, dei-lhe a mão, e pouco depois estava mais silenciosa, fungando deitada na maca (isto não vai ser nada fácil...). "Quantos anos tens? Três?" (a pior idade possível...).
Depois de montado o campo esterilizado com todo o material de sutura coloquei o dito pano verde sobre a cara da Joana, com o buraco sobre a ferida. Imediatamente desatou a espernear e a gritar em plenos pulmões. Dois auxiliares de acção médica, um enfermeiro e um colega meu, que já estavam avisados da provável necessidade do uso da "força" seguraram as pernas, os braços e a cabeça, tentando que o meu "campo de trabalho" se mantivesse o mais imóvel possível. A mãe da Joana sentou-se no banco a chorar, largando-lhe a mão, o que só fez com que a Joana se sacudisse com mais força e gritasse mais alto... Tremendo como varas verdes (quem é que gosta de fazer estas coisas às crianças??) dei os dois pontos necessários, entre rugidos, gritos agudos e bastantes safanões (não, nem quatro homens seguram quieta uma criança de 3 anos, desde que ela não queira MESMO ser agarrada...).
Quando acabei, suado como se tivesse estado a pegar um touro, parecia que tinha passado um furacão pela sala de Pequena Cirurgia... Os auxiliares, o enfermeiro e o meu colega, tão suados como eu, massajavam os braços entorpecidos de fazerem tanta força e a mãe da Joana chorava, agora abraçada à filha. Passado algum tempo, enquanto eu preenchia papeladas, as coisas estavam já mais calmas, e a Joana tinha percebido que o fim da tortura tinha chegado. Com o sorriso 32 voltei a falar com a Joana, autora do cenário dantesco que me rodeava, como que fazendo as pazes com ela... Expliquei-lhe que tinha mesmo que fazer aquilo, e ela acabou por perceber. Não se foi embora sem antes me dar um beijinho. Afinal eu tinha parado com as maldades, tinha doido mais no orgulho do que na pele, e eu até lhe fiz um balão giro com uma luva...
E a Joana, afinal, era apenas a primeira criança daquele dia...

O Clínico Geral (1)

O Clínico Geral, esse tão incompreendido pela sociedade em geral e pelas restantes especialidades médicas, é o mais importante médico para qualquer sistema de saúde (seja o SNS o melhor exemplo). Por isso lhe dedicarei concerteza vários posts, e por isso numero este post como "o primeiro".

Começo por explicar, porque assim é devido, que o Clínico Geral é o Médico de Família. Essa é a designação mais correcta. Porque, se de facto aborda o doente em todas as suas vertentes e toda a sua multipatologia, aborda o doente inserido num grupo familiar, com toda a carga social que tem a família. A especialidade designa-se "Medicina Geral e Familiar" (MGF).

O segundo ponto a sublinhar é que sim, a MGF é uma especialidade! Criada no início dos anos 80 em Portugal, há muito que a Clínica Geral deixou de ser o "saco" para os médicos que não tiravam especialidade! Hoje em dia a formação específica da MGF é de 4 anos. Por isso nunca mais perguntem aos vossos amigos "jovens médicos": "Vais tirar uma especialidade ou vais para Clínica Geral?!"

O Médico de Família é de todos o que trabalha mais perto da população, nos Centros de Saúde, e é capaz de responder por si a 90% (!!!) dos problemas de saúde apresentados pelas pessoas! Os restantes 10% são referenciados às especialidades hospitalares. Muitos desses problemas não são verdadeiros problemas de saúde (no sentido mais estricto do termo), mas sim problemas sociais, problemas de relacionamento familiar, problemas psicológicos, etc... E o Médico de Família tem que ser capaz de abordar o doente como "portador de doença", como indivíduo, como membro de uma família, como elemento da sociedade!

No entanto a sociedade e as restantes especialidades médicas continuam a encarar a MGF como a medicina "menor" e mais ignorante...

segunda-feira, 29 de novembro de 2004

"Inexperiência de médicos"

Encontrei aqui o seguinte:

Degradação das urgências ligada à inexperiência de médicos
in Diário Digital, 22 de Novembro de 2004

Os utentes que recorrem às urgências têm vindo a ser penalizados com a degradação dos serviços, admitiu o presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Manuel Delgado.
A mesma ideia tinha sido já apontada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Germano de Sousa, no início dos trabalhos. De acordo com o clínico, espanhóis recém-formados exercem funções nas urgências dos hospitais nacionais, muitas vezes sem muita preparação. Manuel Delgado partilha destas preocupações, e explicou ao congresso que a contratação de clínico espanhóis é uma solução de recurso, sendo uma segunda escolha. «São profissionais que são colocados nos hospitais sem qualquer ligação com o funcionamento dos hospitais, com a sua estrutura, com os outros colegas que ali trabalham. Não acompanham os doentes», avançou.
Delgado admite mesmo que, neste aspecto, «estamos a repetir um pouco o modelo brasileiro que já provou que não funciona e os doentes que vão às urgências são os mais penalizados com certeza». Como consequência, a qualidade do serviço tem vindo claramente a degradar-se.
____________________

Hum... Eu vivo de perto a situação do Serviço de Urgência, e a minha opinião é bem diferente da do Sr. Bastonário. Trabalhei já com muitos colegas espanhóis, e se concordo que a formação médica deles é um pouco inferior à nossa (especialmente a formação orientada para a prática clínica, situação que se ultrapassa com algum tempo de prática), acho que não é aí que reside o grande problema das nossas urgências!
Na minha opinião, se algum componente de "inexperiência" há no mau funcionamento das Urgências, ele prende-se com a baixa profissionalização dos médicos que asseguram a maior parte dos "balcões" generalistas das urgências: médicos provenientes dos PALOP com baixo grau de diferenciação de conhecimentos médicos (atenção que não pretendo generalizar nem estabelecer uma correlação directa entre competência médica e nacionalidade/etnia...) - única e exclusivamente a licenciatura, tirada nos países de origem. São os chamados "médicos multibanco", por terem como único exercício da profissão fazerem bancos (Urgências) em vários hospitais diferentes.
Mas teremos outra solução no presente? Temos que esperar que as grandes "golfadas" de alunos que entraram para Medicina nos últimos anos lá cheguem para compensar o défice numérico! Isto claro está se não se agravar a tendência política presente de encarar os médicos como mão-de-obra fácil... Porque se assim for, estes "médicos multibanco" serão sempre mão-de-obra mais barata e portanto preferencial do ponto de vista da gestão empresarial dos hospitais...

Já agora aproveito para censurar fortemente o título sensacionalista e deletério da imagem dos médicos em geral usado pelo "Diário Digital" neste artigo!

domingo, 28 de novembro de 2004

O erro médico

Nos arquivos d'O Gin Tónico encontrei um texto intitulado "Erro médico", muito interessante!

Podem encontra-lo aqui.

A estrada

Fala-se muito sobre as estradas em Portugal, sobre a morte nas estradas, sobre o modo de condução dos portugueses (blog.liberal-social.org). Agora há anúncios na televisão que têm por objectivo chocar, levar aos portugueses um pouco do horror, fazer entrar na casa de cada um o drama vivido na estrada. Não concordo com o formato, mas é uma maneira de fazer as coisas...

Nos hospitais esse drama é vivido de uma forma um pouco diferente, mas igualmente dramática... (sem o piano de fundo)
"Vai chegar um acidentado da Ponte Vasco da Gama!", informa o chefe de equipe. Acorda-se quem fica a assegurar as urgências, quem vai para a "sala de directos" (para onde entram os doentes verdadeiramente emergentes). Felizmente avisaram com alguma antecedência, quase parecia um filme. O mais frequente é simplesmente tocar a campainha dos directos e segue-se a debandada geral. Prepara-se tudo para um acidentado, porque apesar de virem dois um deles entrou cadáver. O "directo" é o "innocent by-stander", regressava a casa depois do turno quando os "Streetracers" o apanharam desprevenido e provavelmente sonolento... À chegada do doente a ansiedade é enorme, e todos os procedimentos necessários se colocam em marcha. Um aluno de Medicina olha de longe, encostado à parede para não atrapalhar, com todos os sentidos alerta. Algumas manobras de reanimação depois e o doente está estabilizado o suficiente para seguir para o bloco operatório. Dois cirurgiões "sénior" e um médico interno, três intensas horas depois, saem enraivecidos e desiludidos (o calo não impede a frustração) por não terem sido capazes de modificar o destino daquele homem. Entraram à partida cientes da baixa probabilidade de sucesso, mas ainda assim investiram tudo o que podiam, porque acreditaram. Mas ao contrário dos filmes acreditar não chega... "Doutor, tem ali a esposa do senhor..." avisa uma auxiliar apreensiva. Dez segundos de conversa acabam num grito agudo que preenche o corredor deserto de acesso ao Bloco Operatório. As Urgências não esperam, e há um baleado a entrar. Parece que foi uma rixa entre traficantes. 24 horas podem ser muito, muito longas...

sábado, 27 de novembro de 2004

Violência

Quando estava no Centro de Saúde a fazer um estágio passou-me pelas mãos um caso verdadeiramente desagradável...
Telefonaram-nos para o gabinete a meio das consultas da manhã, era a Directora do Centro. Disse-nos que vinha uma criança da escola com as professoras. Explicou pouco, queria avisar que se tratava de uma situação delicada e que iria passar directamente para o gabinete médico sem espera.
Alguns minutos depois chegou ao Centro e entrou no gabinete um rapaz de 8 anos de raça negra, alto para a idade, um pouco magro, com um ar bastante indiferente, um pouco envergonhado. Duas professoras da escola primária vinham com ele, absolutamente em polvorosa. Começaram as duas a falar ao mesmo tempo, baralhando-se mutuamente, pelo que a nossa primeira reacção foi tirar a mais espalhafatosa delas da sala: "vá com a Directora tratar das papeladas necessárias...". Com mais calma perguntámos então o porquê de tanta agitação. As professoras tinham-se apercebido que a criança apresentava sinais de agressão física grave na face, situação de que já suspeitavam pelo enquadramento social e comportamental da família, e por esse motivo tinham imediatamente contactado o Centro de Saúde para avaliação médica e seguimento legal/social da situação.
Tinhamos que observar a criança dos pés à cabeça, e por isso pedimos à professora que restava para saír da sala. Aos poucos abordámos o rapaz para perceber o que lhe tinha acontecido. Enquanto se despia contou a história: a tia, com quem ficava sozinho durante a tarde, costumava castiga-lo pelos atrasos ao chegar da escola. Até esse dia os castigos tinham sido leves, apesar de físicos, mas no dia anterior as coisas tinham sido diferentes... (As marcas tornavam-se visíveis à medida que ele se despia) O fio do telemóvel, dobrado, serviu como chicote (nas costas e no peito as marcas em "laço" comprovavam), uma colher de pau tinha servido como bastão (as marcas eram nítidas na pele, e enormes hematomas nas coxas e antebraços atestavam o elevado grau de violência). Uma colher de pau tinha chegado a partir-se, pelo que a tia usou uma segunda colher de pau, até a partir também... Todo o corpo do rapaz tinha sido violentamente agredido, e um hematoma na face tinha denunciado a situação às professoras. Negou abuso sexual, com a mesma frieza gélida com que tinha admitido os espancamentos...
O simples olhar envergonhado para o chão era o único denunciador do desconforto interior que o miúdo sentia... Mas a frieza e naturalidade com que descrevia o episódio gelaram-me até aos ossos: o miúdo estava habituado àquilo...

Não sei o que aconteceu depois. A Assistente Social encarregou-se do caso, a Directora do Centro iria segui-lo de perto, e o meu estágio acabou pouco depois. Mas ainda hoje me arrepio ao lembrar a total ausência de brilho, a total ausência de esperança nos olhos daquele miúdo.

quinta-feira, 25 de novembro de 2004

O ódio aos médicos

in Jornal do Fundão, 17 de Setembro de 2004
por Artur Portela


É antigo esse ódio. E decorre, desde logo, das sombras mágicas de onde, histórica, miticamente, emergiram os médicos. E sobretudo do poder que, sobre o nosso corpo, sobre os nossos medos, sobre a nossa vida, lhes atribuímos. Não foram poucos os adversários dos médicos. Desde logo, os mágicos que persistiram como tal, em forma de loja, de cabala, de seita ou de igreja. Apanharam os médicos a boleia das revoluções burguesas. Instalaram-se. Estão naturalmente em todos os partidos. São blocos de pressão. São lobbies. Bastonarizaram-se. Ordenaram-se. Têm até, suplementar, a sua tradição cultural-humanística, literária. Passaram a supor-se, assim, seguros. Mas eis que ao caminho dos médicos sai, digamos, um novo adversário: tem vinte e alguns-trinta e poucos anos. São os jovens turcos dos engenheiros da banca e do empresariado tutelar. Passam de assessores a chefes de gabinete, primeiro dos engenheiros financeiros, depois dos políticos. Serão secretários de Estado. Isto é, futuros ministros. Os dentes aguçam-se-lhes e as gengivas são a cultura dos seus dentes. Quantificar, racionalizar, rentabilizar. Monetarizar sentimentos. Insensibilizar afectos. Desafectar e desafectivar. Associabilizar, dessolidarizar, desprovidencializar. Um banquete de bancos. Uma empresa de grandes empresas. Ora a Saúde, pelo seu dramatismo, pela sua emotividade, pela desorganização que a morte e o seu risco impõem, é uma oportunidade de ouro para estes jovens turcos. Mas aí estão os médicos. Aqueles que – embora marcados pela evolução, pelas glórias da burguesia – geriam, coutavam, a Saúde. O choque é tremendo. O ataque aos médicos é violento e generalizado. É o médico-barão. É o médico contribuinte faltoso. É o médico incompetente como gestor. É o médico medicamente incompetente. É o médico despromovido a “profissional de saúde”. É o médico submetido a gestores de aviário. É o médico inquirido, processado, culpado. É o médico-funcionário. É o médico-burocrata. É o médico que se insulta a ponto de se lhe acenar com mais salário para que ele se desvincule do Estado e opte pelo contrato individual. Ora, independentemente do óbvio que é ser, ter de ser, o médico, responsável pelos seus actos como médico e como cidadão, o que se passa aqui é o mais evidente dos analfabetismos culturais, humanísticos, do neo-conservadorismo. Não apenas por ser, digamos, um racismo-sócio-profissional. Mas sobretudo por – atingindo-se esta classe desta maneira – se atingir, e em todos nós, aquilo a que esta classe está indissociavelmente ligada, aquilo que ela, para nós, representa: a nossa confiança, a nossa saúde, a nossa vida, a nossa esperança. Claro que os trintanários dos engenheiros não percebem. Mas não o intuirá, ao menos, o instinto de sobrevivência do populismo?


Aqui vai um artigo de opinião tirado d"O Jornal do Fundão". Um pouco agressivo na forma, mas diz algumas coisas interessantes que nos fazem reflectir, mais uma vez, sobre o papel do médico na sociedade actual.
A verdade é que em geral, por muito descabido que possa parecer, o médico sente no "jovem empresário" simultaneamente um amigo e inimigo... Amigo porque está disposto a pagar bem pelos actos médicos, inimigo porque está disposto a cobrar bem pelo que considerar serem os erros médicos. Um reflexo interessante da nossa sociedade...

quarta-feira, 24 de novembro de 2004

Dá que pensar...

OS ATESTADOS MÉDICOS
in O Primeiro de Janeiro7 de Outubro de 2004
Paulo Mendo*

Primeiro caso: Justificando a sua não comparência a um exame cerca de 1200 alunos apresentaram atestado médico.
Estranhando a estranha epidemia que no mesmo dia afectou tão grande número de jovens foi ordenado um inquérito com suspeita de os atestados terem sido leviana ou fraudulentamente passados por médicos desonestos. Em resultado dessa investigação vários alunos e médicos vão começar a ser julgados, arguidos desta então chamada epidemia de Guimarães.
Segundo caso: A última colocação de professores, além de todos os desaires que sofreu, veio ainda mostrar que uma enorme percentagem de candidatos apresentou atestados para beneficiar da colocação em escolas próximas da residência, ultrapassando colegas mais antigos e melhor classificados. A quantidade desses atestados é tal que há fundadas suspeitas de muitos deles terem sido fraudulentamente obtidos com a cumplicidade e conivência de médicos.
Vale a pena debruçarmo-nos sobre este assunto. Seguramente que há médicos desonestos que a troco de pagamentos ou de favores passam conscientemente atestados que sabem falsos. Em todos as profissões há desonestos e numa classe de trinta mil profissionais ninguém se admirará de que nem todos sejam santos!
Por isso é natural e desejável que a justiça investigue e castigue se for caso disso, não só quem corrompeu como quem se deixou conscientemente corromper.
Mas não será que o próprio atestado faz parte do problema? Julgo que sim. Grande parte da responsabilidade do que sucede reside no facto de a sociedade ter feito do atestado médico e, portanto, do médico, a única justificação válida e insubstituível de faltas ao trabalho, de afirmações de robustez, de necessidade de acompanhamento de familiares doentes, de afirmações de doenças crónicas ou deficiências para atribuição de benefícios sociais e fiscais e por aí fora.
Para tudo a sociedade requer a afirmação peremptória, sim ou não, de um médico. E é aqui que se situa o péssimo nó górdio desta prática social.
Por várias razões: A primeira, mais imediata e indiscutível, é que devendo o médico orientar a sua consulta baseado nas queixas que o doente refere, porque elas são a base e razão do pedido de ajuda do paciente, não pode partir do princípio que o seu doente lhe está a mentir. Mesmo quando, após exame, não encontra razão para as queixas não pode delas duvidar.
Se o doente se queixa de cefaleias intensas e o médico nada encontra que as justifiquem, pode tranquilizar o doente, afirmar-lhe a normalidade do exame, mas não pode dizer que as cefaleias não existem.
E se este lhe pede um atestado porque não aguenta ir trabalhar nesse dia? Vai recusá-lo porque, como se fazia, dizem, na antiga tropa, não tem febre logo não tem doença? Vai destruir a confiança entre si e o doente, princípio essencial do acto médico, dizendo-lhe que não acredita nele?
E qualquer clínico sabe que uma enorme percentagem dos doentes que diariamente vê não tem sinais objectivos detectados no exame que justifiquem as queixas que, no entanto, são reais e indiscutíveis.
Mas outra razão que dá mais valor ainda à anterior é a posição filosófica das sociedades modernas face à saúde e à doença. Porque se por um lado os Estados modernos colocam os médicos como os grandes decisores legais da doença e da saúde dos cidadãos, por outro lado, ultrapassaram toda a humana e limitada capacidade do médico, afirmando que a saúde “ é a completa sensação de bem estar físico moral e social do indivíduo”, tal como o afirma a Organização Mundial da Saúde.
O que, levado ao exagero, mas não muito, serve para justificar como doente e merecedor de atestado aquele que nos vem dizer que não lhe apetece ir ao emprego porque está aborrecido!!!
Por estas razões é muito difícil concluir da falsidade dos atestados médicos, exceptuando-se, apenas, aqueles em que se demonstra terem sido passados, com conhecimento da sua falsidade. E mesmo aqui, há um factor a ter em conta: a banalização e burocratização do atestado.
Necessário para tudo, em nenhuma circunstância sendo substituído pela palavra de honra do interessado, tornou-se um papel inócuo e insignificante que serve para validar tudo. Já a mim, há anos, não podendo comparecer num julgamento porque, como director de um hospital, tinha sido convocado para uma reunião no Ministério e disso tendo informado o Juiz, este me aconselhou a… “meter um atestado”!!
Tendo a sociedade banalizado até ao limite da insignificância o atestado médico para tudo necessário e sendo o acto médico uma ajuda e não um inquérito administrativo, não é de estranhar que os clínicos ajudem o seu paciente, acreditando nele e passando, quando necessário o desacreditado, mas indispensável papel.
O problema não é resolvido pela exigência aos médicos de rígido rigor e precisão científica no atestado que passam, mas na modificação das exigências sociais, aceitando a palavra de honra do cidadão e a responsabilidade de testemunhos, com severo castigo aos mentirosos e tornando os atestados médicos, verdadeiros relatórios, sujeitos a sigilo, necessários apenas em casos especiais em que a gravidade da doença ou a sua duração os torne indispensáveis.
Seguramente que os médicos agradecerão.

*Médico, ex-Ministro da Saúde


A burocratização da profissão médica é um problema sério, que prejudica médicos, doentes, estado, e a própria sociedade... São necessários atestados para tudo e nada, desde o simples gesto de ir para o ginásio até ao mais complexo de faltar ao emprego... São linhas difíceis de traçar as que estabelecem o limite entre o aceitável e o inaceitável, o correcto e o incorrecto, o legal e o ilegal...
Quanto à história da "palavra de honra" cá tenho as minhas reservas, mas a responsabilização do cidadão é de momento mínima...
Enfim, dá que pensar...

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Outro mundo

O meu silêncio dos últimos dias prende-se com uma viagem a outro mundo. Um mundo de contrastes entre o que se quer deixar ver ao turista e o que o turista por vezes consegue ver por entre as frestas da fachada.

Estive no Brasil. Entrevi a pobreza numa escala assustadora, a pobreza económica e a pobreza social, a menos falada. Não se trata só de pessoas com poucas posses económicas a tentar lutar pela vida... Apercebi-me de um enorme vazio cultural e de valores criado por uma ainda maior descaracterização cultural. Falo, claro de uma grande cidade. Bastante grande mesmo, pelos padrões a que estamos habituados na nossa santa terrinha! Passeando em autocarros turísticos, por detrás do vidro, apresentaram-nos as caras sorridentes, os pontos turísticos bonitos, a cara lavada de Salvador da Bahia. Nas entrelinhas li fome, pobreza, favelas a perder de vista (tapadas pelo barulho do guia entre dois pontos turísticos), e uma cultura vazia de valores, em que o próximo é amado só para lhe tirar umas notas de Real do bolso. E depois há a cultura religiosa, onde o Orixá dá a mão a Deus numa contradição que surge com uma espantosa indiferença. São as histórias que se contam, a realidade é outra.

Mas confesso que foram as semelhanças com algumas vertentes mais recentes do nosso próprio país que me assustaram, mais que as diferenças. Saberemos nós fazer diferente?