sábado, 25 de junho de 2005

Um dia complicado

Esta quinta-feira o mundo esteve virado do avesso. De todos os casos que vi na Urgência, poucos foram os casos "normais"... Mas dois foram particularmente marcantes.

O Sr. Silva, de 60 anos, estava extraordinariamente triste quando se tentou matar. Afinal a mulher dele tinha saido de casa, levando consigo todo o dinheiro e pertences mais valiosos do casal. Esta foi, pelo menos, a história que contou. Mas se de facto foi ele próprio que inflingiu o golpe, foi concerteza num momento de desespero extremo. Afinal não é fácil tomar a decisão de espetar uma faca bem afiada em direcção ao coração. Mas as circunstâncias em que aconteceu não nos preocuparam muito. O que nos preocupou foi o facto de parecer haver lesão de um vaso importante, já que, no Raio X, onde devia estar o pulmão esquerdo estava muito, muito sangue. Depois de estabilizado ao máximo o doente, tentou-se perceber de facto que tipo de lesão havia. Não parecia ser extraordinariamente grave (como uma ruptura da parede do coração ou de um vaso grande como a aorta), mas após alguma discussão clínica e alguns exames decidiu-se avançar para o bloco operatório. Feita a toracotomia (abertura do tórax) confirmou-se a presença de muito sangue, mas felimente a lesão era simples de reparar. Era um vaso intercostal (vasos que "correm" entre as costelas) que estava lesado, e não havia lesão do pulmão, coração ou grandes vasos. Resolveu-se o problema, causado por uma pequena facada, com uma enorme facada.

O Sr. Josué, por seu lado, não via a mulher há muito tempo. Tinha falecido há alguns anos. Também não via há muito tempo a restante família, já que lhe restava apenas uma sobrinha a viver no estrangeiro. Talvez por isso, ou porque se lembrasse de tantas pessoas já falecidas, disparou. Encostou a arma ao ouvido direito e disparou. As funcionárias do lar onde o Sr. Josué vivia, assustadas pelo ruído e por encontrarem o Sr. Josué, o velhote do quarto 15 - de 83 anos -, a deitar sangue do ouvido com uma arma no chão ao seu lado - um revólver de calibre médio - chamaram os bombeiros. Os bombeiros vieram rapidamente, e levaram-no para o Serviço de Urgência.
O Sr. Josué vinha consciente. A única lesão que se podia observar era o sangue a escorrer do ouvido direito, em pequena quantidade. O doente estava consciente, as pupilas (a "parte preta" dos olhos) estavam simétricas e reactivas à luz, e não havia nenhuma evidência de lesão grave cerebral. Não tinhamos sequer a certeza de de facto a bala ter entrado (o estoiro do disparo ou uma queda a seguir ao disparo podiam ser suficientes para deitar sangue do ouvido) até observarmos com mais cuidado. Observava-se o orifício de entrada da bala, e restos de pólvora em torno do mesmo. Enquanto o observávamos olhou para nós e disse, com uma voz débil e tremida: "Acabem comigo, por favor...".
Fomos com ele ao Rx e à TAC, para percebermos onde estava a bala alojada. As imagens mostravam a bala fora da cavidade craneana, virada para baixo, perto de várias estruturas nobres do pescoço. A bala não tinha sido capaz de atravessar o osso temporal - nomeadamente uma parte do osso chamada rochedo (nunca esse nome tinha sido tão apropriado) - e tinha feito ricochete em direcção ao pescoço. Pouco depois a ORL (Otorrinolaringologia) levou o Sr. Josué para o Bloco Operatório e removeu a bala, depois de constatar que não havia lesões importantes para além do ouvido em si.

É difícil saber dizer se o que fizémos por estas pessoas foi bom ou mau... Até certo ponto, a nossa tarefa é lutar pela vida, mas por outro lado não é difícil entender o desespero das pessoas que cometem estes actos... Podemos sempre acreditar que seremos capazes de as convencer a posteriori a lutar pela vida... Mas será sempre assim? Nao há regras, não há duas histórias iguais. Mas o nosso papel não é avaliar justeza daquela decisão. Cabe-nos somente lutar para dar uma segunda oportunidade a quem quis morrer. Se fazemos bem ou mal, enfim, não nos cabe a nós decidir.

terça-feira, 21 de junho de 2005

Um mês depois

Venho-vos contar o que se seguiu a este e este posts. A D. Otília está, caramba, ainda internada no meu serviço. passou-se um mês e 10 dias desde que vos falei nela.

A decisão que estava pendente foi tomada. Foi feita uma cirurgia complicadíssima - ressecção do bloco duodenopancreático (retira-se o duodeno e o pâncreas na totalidade, que são órgãos de difícil acesso e manejo). A cirurgia correu bem. Não houve complicações de maior durante a cirurgia, e toda a complicada reconstrução do trânsito do intestino e da bílis ficou aparentemente funcionante.
No entanto, depois da cirurgia as coisas complicaram-se bastante. A anastomose gastro-jejunal feita (ligação do estômago ao intestino) não deixava aparentemente passar o conteúdo do estômago para baixo. Assumiu-se que se tratava de edema ("inchaço") naquela região da anastomose, e aguardou-se a resolução por si do problema (quando "desinchasse"). Entretanto ficou a ser alimentada por um catéter central ("ligação directa" às grandes veias), aguardando a evolução da situação. No entanto, e passado algum tempo, a situação parecia não se ter resolvido, e muito pouco do conteúdo do estômago passava para baixo. Vários exames e tentativas de solução do problema por endoscopia foram feitas, e nada. Entretanto, e fruto do internamento prolongado e das manobras invasivas feitas, surgiram mais complicações: infecção respiratória, infecção do catéter central, etc... O tempo ia passando, e nada se resolvia, só complicava. Passado um mês da primeira cirurgia, a D. Otília regressou ao Bloco Operatório. Desta vez para fazer uma jejunostomia - ligação do intestino à pele, para poder dar os alimentos por esse orifício...

Neste momento a D. Otília não levanta os olhos do chão. Está deprimidíssima, e com razões para isso... Ontem dizia-me: "Na véspera de ser internada fui sozinha á praça, andei quatro quilómetros a pé. Hoje não consegui ir á casa de banho sozinha... Maldita doença.". Vou-lhe dando os sorrisos que tenho para ela, mas pouco posso dizer que a anime. Ontem começou com falta de ar, os exames mostram que provavelmente terá um abcesso junto ao fígado que dificulta os movimentos respiratórios. Mais uma complicação das cirurgias... Será esta a última complicação? Poderá a D. Otília voltar a alimentar-se pela boca, para se fechar a jejunostomia? O tempo o dirá. Dirá mais ainda: será que toda a cirurgia valeu a pena e que depois de todo este sofrimento o cancro do pâncreas que gerou todo este caos não volta a dar sinais de "vida"? O tempo o dirá... Mas eu é que já não sei o que hei-de dizer à D. Otília...

sábado, 18 de junho de 2005

A Peste Amarela


Esta pestinha tem-me impedido de namorar, estudar, comer, dormir, escrever no blog, etc... A sorte destes bichos é que um tipo se afeiçoa a eles!! ;-) Posted by Hello


Mais uma do Gil. Posted by Hello

sábado, 11 de junho de 2005

Visita médica

A visita médica é uma coisa muito importante: consiste num grupo de médicos (todos da mesma equipa, desde o chefe até ao interno ou aluno de medicina) a passar revista a todos os doentes internados ao cargo dessa equipa. Discutem-se os casos, analisam-se os exames complementares de diagnóstico, programam-se acções diagnósticas e terapêuticas, etc. No fundo, o médico que está mais próximo desse doente apresenta e discute o caso com os restantes colegas, que - e como 6 ou 7 cabeças funcionam melhor que uma - ajudam a colocar hipóteses e sugerem linhas de actuação. Há várias modalidades de visita, há quem a faça à cabeceira dos doentes (o grupo desloca-se em massa de cama em cama e discute os casos em frente ao doente, havendo oportunidade para os re-observar e fazer perguntas aos doentes) e há a visita em estilo de reunião (todos sentados em volta de uma mesa com os processos clínicos na mão).
Há vantagens e desvantagens em ambos os métodos... Se por um lado a visita à cabeceira tem a vantagem de poder fornecer dados novos da observação e conversa com o doente, por outro lado é uma situação de grande ansiedade para o doente. O jargão médico acentua-se, se as situações ainda não estão bem esclarecidas usam-se termos evasivos, e o doente perscruta as palavras e os olhares dos médicos tentando entender alguma coisa - já que estão, caramba, a falar dele. Usam-se frases como "O Sr. José tem uma lesão OE no lobo hepático esquerdo, secundária a uma neoformação da pequena curvatura estadiada localmente em T4", que significa que o Sr. José tem um cancro do estômago gravíssimo com metástases no fígado que já não se pode operar. Se, por outro lado, na visita em estilo de reunião não existe este componente de ansiedade para o doente, por outro lado os casos podem não ser tão bem explorados e discutidos...
Enfim, com as vantagens e desvantagens inerentes a cada um dos métodos, a visita médica é importantíssima. Para quem assiste do outro lado deve ser, imagino, uma situação aterradora... Ver um bando de batas brancas em "rebanho" passeando-se em bloco pelo serviço - e por vezes com algumas conversas paralelas pelo meio, enfim - falando dos nossos próprios casos clínicos... Mas é por isso mesmo que falo dela aqui. Para a tentar desmitificar.

quarta-feira, 8 de junho de 2005

Fármacos milagrosos

O Sr. José foi submetido uma cirurgia complicada. Não que uma colecistectomia (retirar a vesícula biliar) seja à partida uma cirurgia difícil, não o é. Mas naquele caso as múltiplas colecistites (infecções da vesícula) tinham lesado os tecidos circundantes de tal maneira que tinham imensas aderências e fibroses que dificultaram o acesso aos cirurgiões. Depois de muito batalhar contra todas as dificuldades que se colocaram, finalmente conseguiram remover a vesícula biliar. Estava cheia de cálculos ("pedras").
Foi para uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), não só pelas complicações da cirurgia mas também porque tinha muitas doenças de base que o tornavam num doente instável. Tinha uma fibrilhação auricular (doença em que as aurículas do coração batem descoordenadamente e sem eficácia), já tinha tido um enfarte, tinha DPOC (doença pulmonar obstructiva crónica, uma doença em que os pulmões não funcionam tão bem como deviam, muitas vezes por causa do tabaco), era diabético, etc... Na Unidade de Cuidados Intensivos, e no dia seguinte à cirurgia, começou a "cair". A tensão arterial baixou, perdeu os sentidos, e as análises pedidas de urgência mostraram que estava a perder sangue. Foi novamente "a voar" para o Bloco Operatório, onde se observou que um pequeno vaso no local onde antes tinha estado a vesícula tinha começado a sangrar abundantemente. Reparou-se o dito vaso, e reenviou-se o Sr. José para a UCI.
Oito dias passados estava finalmente estável o suficiente para ser transferido para a enfermaria de Cirurgia Geral, nomeadamente para a Unidade de Cuidados Intermédios. Pouco depois de ter chegado aos Intermédios e ser ligado aos monitores começou a aumentar a frequência cardíaca. As enfermeiras chamaram-nos, a mim e a uma outra médica. Verificámos que o coração batia cada vez mais depressa e de forma completamente irregular (característico da fibrilhação auricular), com batimentos anormais (extrassístoles ventriculares) pelo meio. O Sr. José estava a suar muito, e queixava-se de dor no peito. Podia tratar-se de muita coisa, entre as quais um enfarte, um tromboembolismo pulmonar ou simplesmente uma desregulação da resposta dos ventrículos à fibrilhação auricular. Feitas meia dúzia de manobras e administrados os fármacos correctos, a situação não parecia melhorar. Aliás, piorou um pouco quando a tensão arterial começou a descer... No entanto, e pedidos exames laboratoriais vários no sentido de entender o que se estava a passar, aos poucos a frequência começou a voltar ao normal (acção dos fármacos administrados), a tensão arterial regressou ao normal, e a dor desapareceu. Tinhamos conseguido reverter aquela situação. O que a nossa intuição nos disse os exames laboratoriais confirmaram: não se tratava de nenhuma situação muito grave.
Cinco minutos depois o Sr. José entrou num estado um pouco curioso. Exclamava alto e a bom som como se sentia bem, esbracejava agradecimentos a todos os que tinham presenciado aquela situação, e começou a contar histórias do seu passado... De cinco em cinco segundos exclamava que se sentia "porreiro", que nós eramos fabulosos, e que a vida era bela. Na manhã seguinte, quando cheguei ao serviço, o Sr. José continuava a dissertar sobre a vida com um sorriso nos lábios. Falava sobre tudo com todas as pessoas que passavam, e destilava bom humor. Curioso observar como a proximidade da morte dá a algumas pessoas tanta vontade de viver!

segunda-feira, 6 de junho de 2005

25.000

Xiii, já lá vão 25.000 visitas!

Obrigado a todos!!!!

sábado, 4 de junho de 2005

Carlos

"O Carlos é um menino de 10 anos que está aqui na Urgência Pediátrica. Tem uma ferida na mão que precisa de ser suturada". Foi mais ou menos assim que do outro lado do telefone pediram a ajuda da Cirurgia para suturar uma ferida numa criança. Como a Urgência de Pediatria tem a sua própria sala de Pequena Cirurgia, respondi: "Vamos para aí assim que despacharmos um doente que temos aqui".
Despachado o doente fomos para a Urgência Pediátrica. O Carlos estava com uma Auxiliar da escola, por quem tinha sido trazido, e tinha a mão toda entrapada. Meio na brincadeira fomos perguntando o que se tinha passado. O Carlos tinha tentado cortar umas canas no recreio da escola com um x-acto (é assim que se escreve?), e acabou por fazer um corte no dorso da mão. Estava bem disposto, e colaborava muito bem connosco. A ferida precisava de sutura, mas felizmente não tinha lesado nenhum tendão ou estrutura nobre. Discretas, cerca de quatro Auxiliares de Acção Médica aguardavam perto da porta para a eventualidade de ter que segurar nele para fazermos a sutura necessária. No entanto, em face da excelente colaboração do Carlos, não foi preciso. Fomos explicando todos os passos, especialmente avisando da picada da anestesia, e o Carlos ouvia todas as explicações com atenção. Assim que dissémos que já estavamos a acabar, o Carlos mudou de expressão. Ficou com um olhar mais assustado, e deixou escapar, envergonhado de morte, uma lágrima. Disse-lhe, com carinho, que chorasse, que diabo, se era de chorar que ele precisava! O alívio que sentiu pela aproximação do fim fez com que libertasse toda a tensão que estava a disfarçar, e deixou correr lágrimas que nem uma Madalena durante quinze segundos. Depois riu-se, comprometido, porque o apanhámos numa pequena "fraqueza" que só têm os valentes. Pouco depois levantou-se, novamente bem disposto, olhando para a ferida suturada com curiosidade. Deu-nos um sorriso enorme, e voltámos para o "mundo dos grandes".
Esta história simples deixou-me bem disposto, vá-se lá perceber!