sexta-feira, 14 de outubro de 2005

Sergei

Estou vivo eu, ainda. "Barely" (Como traduzir? Estudar em inglês dá conta do vocabulário...). O Dirty Harry suga-me aos poucos o juízo, mas estou, ainda, vivo.

Um destes dias conheci um personagem do 007. Não seria bem o Goldfinger, seria mais adequado "Goldteeth". O Sergei é russo, da Sibéria mais propriamente. Os quatro dentes incisivos superiores reluzem à luz que passa pela janela da enfermaria. Ficou na cama junto à janela, infelimente os dois companheiros de quarto viajam mais por mundos interiores. O Sergei é um tipo novo, em redor dos 40 anos, não lhe apetecia estar internado. Aliás, acrescento, não lhe apetecia estar doente. Infelizmente, uma queda nas escadas do seu atelier de restauro levou-o ao hospital. O problema não foi a queda em si, mas as alterações da visão com que ficou após a queda impediram-no de continuar o seu delicado trabalho. No hospital, uma má notícia. As análises mostraram que os glóbulos vermelhos, os glóbulos brancos e as plaquetas (ou seja, todas as células do sangue) estavam todos em falta (situação chamada pancitopénia). A anemia grave (falta de glóbulos vermelhos) ter-lhe-ia provocado a queda, e a falta de plaquetas fez com que na sequência da queda surgissem várias hemorragias na retina (daí a visão turva). Não queria ficar internado, após as transfusões sanguíneas já se sentia melhor. No entanto as plaquetas continuavam muito baixas, e era necessário esclarecer a causa de toda aquela situação. Poderia ser uma aplasia medular (a medula óssea, "fábrica" do sangue, a funcionar pouco - provavelmente consequência de todos os produtos químicos com que trabalha diariamente), mas poderia entre outras coisas ser uma leucémia/linfoma... O Sergei recusou inicialmente a biópsia óssea, mas após dois dias de internamento e alguma insistência nossa acabou por aceder. Foi nesta altura que eu agradeci não saber falar russo: após pedir autorização para falar durante a biópsia, iniciou uma verborreia em russo, agressiva e claramente ofensiva. Felizmente, aos meus ouvidos, imperceptível.
Enquanto aguardava os resultados dos vários exames efectuados, o Sergei trouxe um toque "diferente" à enfermaria. Um dia encontrei-o pendurado na ombreira da porta todo vestido com roupa justa preta enquanto uma linda melodia de Bach ecoava a bom som pela enfermaria. Por vários dias dei com ele vestido com roupa de passeio para ir beber café à máquina do piso de baixo, onde aproveitava para socializar com os doentes da Infecciologia (prática muito pouco aconselhável a quem tem o sistema imunitário nas lonas como ele...). Todos os dias as enfermeiras se queixavam de assédio da parte do Sergei. Um outro dia, o Sergei queixou-se de dor na região anal. Não só impediu as enfermeiras de estarem na sala enquanto nos mostrava o que parecia ser um abcesso peri-anal, como recusou ser observado pela cirurgiã de serviço. Vimo-nos obrigados a pedir a um cirurgião que não estava de urgência para vir espreitar o abcesso do Sergei...
No meio de todas estas peripécias, foram chegando os resultados dos vários exames efectuados. Tratava-se de facto muito provavelmente de uma aplasia medular. Factores de risco não lhe faltavam: além de trabalhar diariamente com dezenas de químicos diferentes tinha sido submetido a doses elevadas de radiação aquando da sua participação numa qualquer guerra como soldado ao serviço da Rússia. Além da radiação, tinha também sido submetido a injecções múltiplas de anabolizantes para ser capaz de correr várias horas sem se cansar. Um qualquer destes factores seria provavelmente o responsável pelo "esgotamento" da medula óssea do Sergei. O afastamento dos químicos não parecia estar a ajudar muito, e a "fábrica" não parecia ter vontade de retomar a sua actividade. Neste momento o Sergei aguarda transplante de medula óssea, mais propriamente um dador compatível. Não tem familiares directos contactáveis, o que dificulta o processo. Está dependente de transfusões sanguíneas, mas várias complicações podem surgir entretanto... Não está já na nossa enfermaria de Medicina Interna, foi transferido entretanto para um serviço de Hematologia noutro hospital. E a nossa enfermaria retomou o seu rumo normal, infelizmente sem Bach...