segunda-feira, 24 de julho de 2006

Quando a vida não faz sentido...?!

A Luísa deu entrada no Serviço de Urgência Pediátrica num fim de tarde. Foi trazida pela mãe, que a tinha encontrado inconsciente no quarto com comprimidos vários em cima da cama e uma garrafa de whiskey ao lado da cama. A Luísa tinha 9 anos.
Chegada ao SU a Luísa estava muito difícil de despertar, mas respirava bem e o coração batia de forma adequada. Relatada a história da mãe, tomaram-se as medidas adequadas perante uma intoxicação medicamentosa e alcoólica. Os comprimidos em questão pertenciam à mãe, antidepressivos de várias classes, ansiolíticos e sedativos. Os doseamentos de sedativos na urina e álcool no sangue eram positivos, mas aos poucos a Luísa parecia começar a despertar. E ao longo das horas que passou internada foi sempre melhorando o seu estado de consciência.

Passado o pior, e uma série de horas depois, a Luísa estava já recuperada, e pronta para tentar explicar o sucedido:
- "Tomaste alguns comprimidos?", perguntámos
- "Sim, tomei o diazepam.", respondeu prontamente, surpreendendo os presentes.
- "Por acaso sabes-nos dizer que número estava escrito na caixa?"
- "Era o diazepam de 5 miligramas, tomei 3!", disse sem hesitar, com uma tranquilidade assombrosa.
- "E tomaste mais algum comprimido?"
- "Não, o X e o Y não tomei!". Sabia os nomes comerciais de dois antidepressivos...
Inevitavelmente perguntámos "E porquê?". Respondeu (com um inapropriado sorriso nos lábios):
- "Porque a vida não faz sentido!"...

Uma avaliação psiquiátrica e social depois tudo se tornou mais claro (perspectivando-se naturalmente bastante sombrio...). A mãe, abandonada pelo marido, bebia e abusava dos antidepressivos e sedativos. Por várias vezes tinha tentado o suicídio, com medicamentos e bebidas alcoólicas. Por várias vezes em frente à Luísa. E a Luísa, tranquilamente, imitou todos os comportamentos da mãe. Estava perfeitamente familiarizada com os nomes dos medicamentos, com a sua localização, e com a frase que, tão inocentemente, papagueou. "Porque a vida não faz sentido!"... Com um sorriso nos lábios.

segunda-feira, 17 de julho de 2006

A menina ruiva

A menina ruiva tinha batido com a cabeça no chão, fruto das brincadeiras típicas de uma criança de (quase) 2 anos. Por ter um "galo" na testa, e porque a mãe a achou um tudo ou nada sonolenta, a menina ruiva foi ao Hospital.
No altifalante da sala de espera a minha voz soou, anunciada por um horrendo "jingle" metálico, chamando a Carolina ao meu gabinete. Entrou pela mão da avó, pelo próprio pé, com ar sereno. Era a menina mais ruiva que eu tinha visto, de olhos grandes e claros. Dizem as lendas pagãs que os de cabelos ruivos são mágicos, resultado talvez do facto de ser uma cor de cabelo razoavelmente invulgar.
Perguntei à avó o que se tinha passado e depois, ainda sentado no banco, pedi à Carolina para se chegar mais perto de mim, estendendo-lhe os braços. Manteve o mesmo ar sereno, não disse uma palavra, e correu para mim, saltando imediatamente para o meu colo. Fiquei, naturalmente, supreendido por aquela atitude, tão rara em crianças daquela idade, pelo que consegui apenas sorrir, atrapalhado, enquanto observava o resultado da queda. Deixou-se observar sem um queixume, ajudando em todas as partes do exame objectivo, mas estranhamente nunca sorriu ou disse uma única palavra...
A queda não tinha provocado danos preocupantes, e portanto a Carolina iria para casa acompanhada pela mãe e pela avó, que vigiariam atentamente o seu estado durante os próximos 2 dias. Ao despedir-me da avó e dela voltei a ver no olhar dela uma expressão pacífica e satisfeita, e embora o seu rosto não sorrisse e a sua boca não se abrisse, acenou-me com um simpático adeus...
E assim, com este encontro "mágico", fiquei mais bem disposto para as longas horas de Urgência que me esperavam ainda.

terça-feira, 11 de julho de 2006

O regresso

Três meses depois, voltei a ter vontade de partilhar. Muitas histórias me têm passado pelos olhos, muitas crianças me têm passado pelas mãos. Volto ao blog, com cabeçalho novo e nova vontade de desabafar.
Com o amadurecimento vem um subtítulo para o blog, porque também a minha vida ganhou um subtítulo como aprendiz de pediatra.
Não prometo assiduidade, mas prometo certamente continuidade.
Naturalmente, manterei por completo o anonimato, pela essencial protecção dos meus doentes e das suas famílias, em absoluto respeito ao sigilo profissional a que estou obrigado.

Obrigado a todos pelas palavras de incentivo ao regresso, espero estar à altura das exigências!
Espero que, desse lado dos LCDs, continuem a participar com os vossos comentários que, como já antes afirmei, enriquecem e valorizam este blog!

"Stay tuned!"