sábado, 11 de outubro de 2008
Mais uma vez, amor e disciplina
Era meio-dia quando recebemos um telefonema na Urgência. Uma Médica de Família de um Centro de Saúde da área de influência do Hospital estava a enviar-nos um adolescente com 13 anos. O José tinha, de acordo com o telefonema, ingerido uma quantidade desconhecida de um antipsicótico e de um antiepiléptico. Preparámo-nos para o pior e estudámos os efeitos adversos dos dois fármacos, tentando antever perante que tipo de quadros nos podíamos deparar, e a atitude terapêutica a tomar. Quando chegou, cerca de uma hora depois da toma, estava consciente e sentado na sala de triagem. Era um adolescente muito problemático, que tinha sido uma criança também muito problemática. Afirmava ter tomado quatro ou cinco comprimidos do antipsicótico, negava ter tomado o antiepiléptico. Não era a primeira vez que o fazia, afirmou. Tinha a certeza, aliás, que só lhe daria mais sono que o habitual, e que nenhum mal mais aquela dose poderia fazer. Não havia, aparentemente, qualquer intenção suicida: tinha-se zangado com a mãe e aquela era uma das muitas maneiras que tinha para a manipular a conseguir os seus intentos. Não perdi muito tempo a elucidar pormenorizadamente os porquês, tinha que supor que ele poderia estar a mentir e ter tomado muitos mais comprimidos. E assim sendo tinhamos que rapidamente lhe fazer uma lavagem gástrica (para remover a maior quantidade possível de fármacos do estômago) e administrar carvão activado (para tentar impedir que os fármacos que já tivessem passado o estômago fossem absorvidos). Isso implicava colocar-lhe uma sonda pelo nariz, até ao estômago, o que o José começou por recusar. Disse-lhe que ele não tinha ali alguma hipótese de negociação, e que a bem ou a mal nós íamos proceder à lavagem. Manteve-se a recusa em colaborar, e eu e um excelente (e corpulento) enfermeiro insistíamos que ou colaborava ou passava pela vergonha de ser agarrado como um bebé. Não nos olhava nos olhos, o olhar fugia entre o chão e as paredes tão evasivo como o seu discurso de negação. Algum tempo depois desistimos da via negocial, e pedimos-lhe "menos gentilmente" que se deitasse. Percebeu aí que não tinha hipótese, e optou por colaborar com os procedimentos. Só queria que lhe explicássemos tudo, e explicássemos se ía doer. Ficou sossegado durante todos os passos, e não voltou a esboçar resistência, mesmo durante a colheita de sangue e urina para análises toxicológicas, entre outras. Depois, enquanto aguardava as análises, ficou internado para vigilância. Deu tempo de perceber, então, todo o contexto que rodeava aquela atitude. Os pais estavam divorciados, e a toda a hora falavam ao José mal um do outro. O José vivia alternadamente com um e com outro, ao sabor das zangas com e pai e com a mãe e das ofertas que estes faziam para conseguirem o seu regresso. Portanto, o José estava habituadíssimo a manipular os pais para conseguir obter o que queria, enquanto gozava de uma liberdade perigosa alimentada pelo desejo de cada um dos pais de que ele, simplesmente, não os chateasse. Porque, palavras da mãe em frente a ele, "É tudo muito mais calmo quando ele não está por perto, não anda a bater no irmão e em mim.". O pai, carrancudo, perguntava - também perante o José - se não havia alguma hipótese de ficarmos com ele internado, ou de o transferirmos para um sítio onde ele ficasse a "recuperar". Claramente queria, também, livrar-se dele. Fosse para onde fosse. Dizia insistentemente a mãe, com um nada disfarçado orgulho - "O Doutor não me viu na televisão?!" -, que tinha já várias vezes sido entrevistada por programas daqueles que vivem da exposição da desgraça alheia, onde descrevia as agressões de que era alvo por parte do José. No meio de tudo isto o José, indiferente pelo hábito ao "jogo do empurra" e obnubilado pela dose excessiva de fármacos, acabou por adormecer depois de conversar com a pedopsiquiatra que o seguia já há uns anos e que o tinha medicado com os mesmos fármacos que ele acabou por tomar em excesso. Quando acordou já as análises mostravam que provavelmente ele dizia a verdade, que de resto tudo bem (excepto alguns sinais laboratoriais de lesão muscular - efeito descrito do antipsicótico), e já a pedopsiquiatra tinha dito que não via razões para que ele permanecesse internado. Dei-lhe então alta, orientado para a consulta de pedopsiquiatria. Procurou-me, no momento da saída, para se despedir de mim. E foi aí que ele mais me supreendeu: foi com sentimento, com um honesto "Obrigado" enquanto me apertava com força a mão e me olhava nos olhos, que ele seguiu o seu caminho. E tudo então ficou mais difícil para mim. Porque até aí ele tinha-se portado como um rufia, um marginal sem emenda, um miúdo estragado e condenado. E nesse momento tive a percepção de que ele era um miúdo com um fundo bom, que precisava de uma figura parental disciplinadora e carinhosa. E que seria sempre um rufia, um marginal sem emenda, um miúdo estragado e condenado, porque não tinha uma família que lhe desse o que ele precisava: amor e disciplina.
Por
JC
Etiquetas:
Hospital
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