quinta-feira, 14 de agosto de 2008
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
Estranhos corpos estranhos
Os miúdos são capazes de tudo pela emoção de experimentar algo novo. É a conclusão a que chego. E mais os miúdos, as miúdas têm mais tino e procuram aprender coisas sem se magoarem. É menos frequente, apesar de não ser raro, vermos uma menina com um bago de milho espetado no nariz.

O António tinha já 5 anos quando lhe apeteceu ver o que acontecia se um bago de milho das pipocas que comia ao lanche ficasse encravado na narina esquerda. O pai aflito levou-o à Urgência, depois de ele lhe explicar tranquilamente que, por nenhuma razão válida, tinha experimentado. Eu costumo perguntar "porquê", especialmente quando já têm idade para ter (um pouco mais de) juizo, mas nunca obtive mais que um encolher de ombros e um sorriso como resposta. Lá dentro daquelas cabeças deve haver uma explicação, alguma história mirabolante sobre um micro-submarino com micro-cientistas que entra pelos nosso orifícios para nos curar as maleitas mais ocultas (eu adorava filmes desses, ficava sempre fascinado com o aspecto do corpo humano por dentro - geralmente fruto de uma imaginação fértil e desprovida de qualquer ligação à realidade). No entanto essas histórias, como não fazem sentido no mundo dos adultos, ficam por contar e resumem-se num encolher de ombros envergonhado. Mas o António teve sorte. Pedi que se assoasse enquanto lhe tapava a narina direita e "POP", bago de milho cá fora. Pai envergonhado, "realmente não me lembrei dessa..."; miúdo repreendido, "nunca mais!"; pediatra discrente pensando que aquilo até não custou nada e o miúdo achou piada à cena.
A Maria era mais pequenina, tinha 2 anos. Foi com a mãe à Urgência porque tinha mau hálito. "Há vários dias, doutor, cada dia mais mal cheirosa. Tem que ser alguma coisa!". Conhecendo já bem a habitual tentação, espreitei pelo nariz. E lá ao fundo, bem lá ao fundo, qualquer coisa esbranquiçada com um ar esponjoso. Arranjei uma pinça bem comprida, própria para estas coisas, e apanhei-lhe uma pontinha. Devagarinho puxei, puxei (com os pais a agarrar muito bem na Maria - acho que até eu esperneava se me fizessem uma destas), e "POP", sai um pequeno cilindro de esponja branca. "Onde raio..." pergunta a mãe, mas mais um problema resolvido.
O Pedro teve menos sorte (mas a mesma dose de arrojo) quando tentou ver se uma peça de plástico que se tinha partido de um carrinho cabia no ouvido. O problema é que entrava mesmo à justinha. Saír é que nem por isso. De tal maneira que o Pedro, depois de uma pequena tourada para se deixar observar, teve que ser anestesiado no bloco operatório para a Otorrino lhe tirar o dito plástico. E quando depois de tudo isto lhe perguntei se tinha aprendido a lição disse-me "Não custou nada, estava a dormir...". Parece que a aprendizagem ficou para uma próxima.
A Olena tinha 8 meses quando a mãe lhe tentou dar pela primeira vez um feijão, descascando-o. No entanto ela não estava preparada para um alimento sólido tão precocemente na sua vida, e assim engasgou-se com o feijão, deixando a mãe de insistir com alimentos sólidos. Pareceria uma história simples, não fosse a Olena ter ficado, desde então, com dificuldade em respirar e com muita tosse. A minha observação da Olena não deixava dúvidas: ela tinha qualquer coisa, possivelmente o feijão, a obstruir um brônquio do pulmão direito. Algumas horas depois um Pneumologista com jeito para a pesca observava atentamente o dito feijão descascado na palma da sua mão, juntando-o à sua colecção de objectos retirados de brônquios mesmo ao lado do caracol.

O António tinha já 5 anos quando lhe apeteceu ver o que acontecia se um bago de milho das pipocas que comia ao lanche ficasse encravado na narina esquerda. O pai aflito levou-o à Urgência, depois de ele lhe explicar tranquilamente que, por nenhuma razão válida, tinha experimentado. Eu costumo perguntar "porquê", especialmente quando já têm idade para ter (um pouco mais de) juizo, mas nunca obtive mais que um encolher de ombros e um sorriso como resposta. Lá dentro daquelas cabeças deve haver uma explicação, alguma história mirabolante sobre um micro-submarino com micro-cientistas que entra pelos nosso orifícios para nos curar as maleitas mais ocultas (eu adorava filmes desses, ficava sempre fascinado com o aspecto do corpo humano por dentro - geralmente fruto de uma imaginação fértil e desprovida de qualquer ligação à realidade). No entanto essas histórias, como não fazem sentido no mundo dos adultos, ficam por contar e resumem-se num encolher de ombros envergonhado. Mas o António teve sorte. Pedi que se assoasse enquanto lhe tapava a narina direita e "POP", bago de milho cá fora. Pai envergonhado, "realmente não me lembrei dessa..."; miúdo repreendido, "nunca mais!"; pediatra discrente pensando que aquilo até não custou nada e o miúdo achou piada à cena.
A Maria era mais pequenina, tinha 2 anos. Foi com a mãe à Urgência porque tinha mau hálito. "Há vários dias, doutor, cada dia mais mal cheirosa. Tem que ser alguma coisa!". Conhecendo já bem a habitual tentação, espreitei pelo nariz. E lá ao fundo, bem lá ao fundo, qualquer coisa esbranquiçada com um ar esponjoso. Arranjei uma pinça bem comprida, própria para estas coisas, e apanhei-lhe uma pontinha. Devagarinho puxei, puxei (com os pais a agarrar muito bem na Maria - acho que até eu esperneava se me fizessem uma destas), e "POP", sai um pequeno cilindro de esponja branca. "Onde raio..." pergunta a mãe, mas mais um problema resolvido.
O Pedro teve menos sorte (mas a mesma dose de arrojo) quando tentou ver se uma peça de plástico que se tinha partido de um carrinho cabia no ouvido. O problema é que entrava mesmo à justinha. Saír é que nem por isso. De tal maneira que o Pedro, depois de uma pequena tourada para se deixar observar, teve que ser anestesiado no bloco operatório para a Otorrino lhe tirar o dito plástico. E quando depois de tudo isto lhe perguntei se tinha aprendido a lição disse-me "Não custou nada, estava a dormir...". Parece que a aprendizagem ficou para uma próxima.
A Olena tinha 8 meses quando a mãe lhe tentou dar pela primeira vez um feijão, descascando-o. No entanto ela não estava preparada para um alimento sólido tão precocemente na sua vida, e assim engasgou-se com o feijão, deixando a mãe de insistir com alimentos sólidos. Pareceria uma história simples, não fosse a Olena ter ficado, desde então, com dificuldade em respirar e com muita tosse. A minha observação da Olena não deixava dúvidas: ela tinha qualquer coisa, possivelmente o feijão, a obstruir um brônquio do pulmão direito. Algumas horas depois um Pneumologista com jeito para a pesca observava atentamente o dito feijão descascado na palma da sua mão, juntando-o à sua colecção de objectos retirados de brônquios mesmo ao lado do caracol.
Etiquetas:
Hospital
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
O cheiro
Descrever cheiros é difícil. Os outros sentidos são mais fáceis, racionalizam-se mais. Os cheiros estão lá, e se podemos achar que nos são indiferentes, na verdade tocam-nos em zonas que não controlamos tão bem como a razão - as emoções. Parece bizarro, apesar de cientificamente correcto, mas o olfacto é o único sentido que tem uma ligação directa (anatomica e funcionalmente falando) com os centros da emoção no nosso cérebro. Por isso tocam-nos mais fundo, e de forma menos consciente.
Reentrar no bloco de partos, ou no berçário, dá-me sempre um baque. Cheira a recém-nascido. Não cheira a bebé, isso vem depois. É diferente. E todos os recém-nascidos cheiram mais ou menos ao mesmo, como cheirava o meu. E então quando posso viajo ao dia em que o vi pela primeira vez, de olhos negros bem abertos. "Então és assim, o meu filho", pensei. Estava à espera de amar perdidamente aquele bebé no instante em que ele saíu. Mas na verdade era um desconhecido que ali estava, que eu vi saír da barriga da mãe, que tinha ainda que conhecer. Depois, enquanto ele estudava atentamente as mãos apresentei-me formalmente. "Olá filho. Eu sou o teu pai. Benvindo." Nessa noite deixei-os na maternidade, e em casa demorei a adormecer, imaginando como estaria ele, e como seria o futuro a três. Mas foi só alguns dias depois que realmente caíu a moeda, e que me apercebi que era mesmo pai. E depois foi cada dia melhor, um amar enorme e transbordante, incapaz de estar contido em qualquer conjunto de palavras.
Assim, quando posso, revivo pelo cheiro dos bebés dos outros todos aqueles momentos estranhos, e no entanto tão grandes.
Reentrar no bloco de partos, ou no berçário, dá-me sempre um baque. Cheira a recém-nascido. Não cheira a bebé, isso vem depois. É diferente. E todos os recém-nascidos cheiram mais ou menos ao mesmo, como cheirava o meu. E então quando posso viajo ao dia em que o vi pela primeira vez, de olhos negros bem abertos. "Então és assim, o meu filho", pensei. Estava à espera de amar perdidamente aquele bebé no instante em que ele saíu. Mas na verdade era um desconhecido que ali estava, que eu vi saír da barriga da mãe, que tinha ainda que conhecer. Depois, enquanto ele estudava atentamente as mãos apresentei-me formalmente. "Olá filho. Eu sou o teu pai. Benvindo." Nessa noite deixei-os na maternidade, e em casa demorei a adormecer, imaginando como estaria ele, e como seria o futuro a três. Mas foi só alguns dias depois que realmente caíu a moeda, e que me apercebi que era mesmo pai. E depois foi cada dia melhor, um amar enorme e transbordante, incapaz de estar contido em qualquer conjunto de palavras.
Assim, quando posso, revivo pelo cheiro dos bebés dos outros todos aqueles momentos estranhos, e no entanto tão grandes.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
Um acidente terrível

O corpo humano é capaz de coisas extraordinárias. E o de uma criança é ainda mais fabuloso.
A Margarida, uma pequena de 2 anos, estava a brincar num baloiço quando por acidente caíu. Teve um enorme azar, que se veio depois a verificar estar revestido de muita sorte.
Chegou à Urgência Pediátrica rodeada de um enorme aparato, e todos correram para a sala de reanimação. Cada um que se aproximava, fosse médico, enfermeira ou auxiliar, punha no rosto uma enorme tensão, denotando a angústia que causava a cena a que se assistia. Contavam os bombeiros, com o terror espelhado nos olhos, que no local a menina ainda falava. Foi já no caminho para o Hospital que se foi apagado aos poucos, chegando já inconsciente.
Baloiçava com um lápis na mão, quando caíu. O lápis penetrou o canto interno do olho, ficando apenas alguns centímetros de fora. A TAC, feita no hospital, mostrava todo o trajecto do lápis. Milagrosamente não tinha atingido o olho, passando rente ao mesmo, e furando a órbita para o interior do crânio. Tinha cerca de 10 centímetros de lápis, completamente inteiro, perfurando o cérebro. Várias funções neurológicas estavam afectadas, prevendo-se um desfecho trágico.
Mas o tempo veio trazendo, devagar, uma discreta esperança. Foi operada de urgência, removendo-se o lápis, e depois veio gradualmente a recuperar as funções que tinha perdido. Ao fim de um prolongado internamento estava já praticamente bem, sem aparentes sequelas deste horrível acidente. É de facto espantosa, quase sobrehumana, a capacidade de recuperação das crianças. E a Margarida é disso um exemplo cabal.
Etiquetas:
Hospital
quinta-feira, 7 de agosto de 2008
Insólito?
Pode chamar-se insólito quando nos acontece três vezes no mesmo dia? O que ando eu a dizer às mães dos recém-nascidos que ando a observar pelas manhãs, que as faz levar as mãos aos botões das camisas de noite? Certo é que digo "Vamos despir", mas tenho o cuidado de preceder por um "Bom dia, venho ver o seu bebé!". Bem sei que as hormonas nessa fase andam um bocado avariadas.
Bem sei, digo, porque já pari. E porque não há regras, ou se há aqui mando eu, aproveito para contar que este longo silêncio deu para crescer(mos), engravidar(mos), e deixar crescer até aos 15 meses essa coisa boa que fiz(emos), entre as cerca de dois milhões de urgências. Continuo na minha Pediatria, a minha mariamadalena* em Ginecologia-Obstetrícia, cansados mas felizes. Quem sabe, a convença a desabafar por aqui um dia, ela que tem tantas histórias para contar.
Mas isto para dizer que vou passar a dizer, porque entendo, "Vamos despir o bebé!". Porque é capaz de não valer como insólito, se me vai acontecendo. Deve ser culpa minha.
* Sabes que escrevo para ti. Já tinha saudades. Obrigado!
Bem sei, digo, porque já pari. E porque não há regras, ou se há aqui mando eu, aproveito para contar que este longo silêncio deu para crescer(mos), engravidar(mos), e deixar crescer até aos 15 meses essa coisa boa que fiz(emos), entre as cerca de dois milhões de urgências. Continuo na minha Pediatria, a minha mariamadalena* em Ginecologia-Obstetrícia, cansados mas felizes. Quem sabe, a convença a desabafar por aqui um dia, ela que tem tantas histórias para contar.
Mas isto para dizer que vou passar a dizer, porque entendo, "Vamos despir o bebé!". Porque é capaz de não valer como insólito, se me vai acontecendo. Deve ser culpa minha.
* Sabes que escrevo para ti. Já tinha saudades. Obrigado!
Etiquetas:
Hospital
terça-feira, 5 de agosto de 2008
domingo, 15 de outubro de 2006
The End
Devo grandes desculpas a todos os que por aqui passam para ler novidades no blog... A promessa que fiz está a ser quebrada, e tenho-vos frustrado com o meu silêncio.
Diz-se que, imediatamente depois da morte, um último suspiro de vida abandona os lábios daqueles que partem. Como se a alma se escapasse, naquele momento, para ir para outro lugar. Foi talvez isso que aconteceu ao blog. Era honesto o meu suspiro, pensava que continha a vida que o blog precisava para reviver. Mas possivelmente tinha já morrido.
Tenho pena. Tenho pena de já não ser capaz de vir aqui partilhar os momentos de alegria e os momentos de tristeza que vivo no diário exercício da minha profissão. Vários motivos contribuem para o meu silêncio. Por um lado a preguiça, o cansaço, porque não gosto de escrever uma coisa qualquer, só para dizer que não estou calado. Gosto de ter disponibilidade, de tempo e alma, para escrever. E a falta de tempo, o cansaço do dia a dia, e alguma preguiça têm anulado essa disponibilidade. Por outro lado vêm os meus doentes. Trabalho num hospital central, onde muitas das coisas que vejo, em especial aquelas que me marcam ao ponto de querer escrever sobre elas, são raras ou especiais. E por isso não posso partilha-las sem correr o risco de os expor, de quebrar o fulcral sigilo que jurei.
E assim acaba o blog. Mal. Com uma agonia prolongada, uma luta interior longa entre a vontade genuína de partilhar e a vontade contida de acabar. Porque gostei muito de o escrever, porque gosto de o reler, porque deixei aqui uma parte de mim, e especialmente porque comunguei com milhares de desconhecidos esse pedaço de mim, fazendo de todos vós parte da minha família. E custa ver um familiar partir para outro lugar.
Hesitei muito antes de escrever tudo isto. Hesito no ponto final. O título deste post, colocado no fim, anuncia a vontade que tenho de não vos frustrar mais. De colocar o definitivo ponto final nas expectativas que criei. Por isso escrevo, num gesto suicida, O Fim.
Obrigado
Diz-se que, imediatamente depois da morte, um último suspiro de vida abandona os lábios daqueles que partem. Como se a alma se escapasse, naquele momento, para ir para outro lugar. Foi talvez isso que aconteceu ao blog. Era honesto o meu suspiro, pensava que continha a vida que o blog precisava para reviver. Mas possivelmente tinha já morrido.
Tenho pena. Tenho pena de já não ser capaz de vir aqui partilhar os momentos de alegria e os momentos de tristeza que vivo no diário exercício da minha profissão. Vários motivos contribuem para o meu silêncio. Por um lado a preguiça, o cansaço, porque não gosto de escrever uma coisa qualquer, só para dizer que não estou calado. Gosto de ter disponibilidade, de tempo e alma, para escrever. E a falta de tempo, o cansaço do dia a dia, e alguma preguiça têm anulado essa disponibilidade. Por outro lado vêm os meus doentes. Trabalho num hospital central, onde muitas das coisas que vejo, em especial aquelas que me marcam ao ponto de querer escrever sobre elas, são raras ou especiais. E por isso não posso partilha-las sem correr o risco de os expor, de quebrar o fulcral sigilo que jurei.
E assim acaba o blog. Mal. Com uma agonia prolongada, uma luta interior longa entre a vontade genuína de partilhar e a vontade contida de acabar. Porque gostei muito de o escrever, porque gosto de o reler, porque deixei aqui uma parte de mim, e especialmente porque comunguei com milhares de desconhecidos esse pedaço de mim, fazendo de todos vós parte da minha família. E custa ver um familiar partir para outro lugar.
Hesitei muito antes de escrever tudo isto. Hesito no ponto final. O título deste post, colocado no fim, anuncia a vontade que tenho de não vos frustrar mais. De colocar o definitivo ponto final nas expectativas que criei. Por isso escrevo, num gesto suicida, O Fim.
Obrigado
segunda-feira, 24 de julho de 2006
Quando a vida não faz sentido...?!
A Luísa deu entrada no Serviço de Urgência Pediátrica num fim de tarde. Foi trazida pela mãe, que a tinha encontrado inconsciente no quarto com comprimidos vários em cima da cama e uma garrafa de whiskey ao lado da cama. A Luísa tinha 9 anos.
Chegada ao SU a Luísa estava muito difícil de despertar, mas respirava bem e o coração batia de forma adequada. Relatada a história da mãe, tomaram-se as medidas adequadas perante uma intoxicação medicamentosa e alcoólica. Os comprimidos em questão pertenciam à mãe, antidepressivos de várias classes, ansiolíticos e sedativos. Os doseamentos de sedativos na urina e álcool no sangue eram positivos, mas aos poucos a Luísa parecia começar a despertar. E ao longo das horas que passou internada foi sempre melhorando o seu estado de consciência.
Passado o pior, e uma série de horas depois, a Luísa estava já recuperada, e pronta para tentar explicar o sucedido:
- "Tomaste alguns comprimidos?", perguntámos
- "Sim, tomei o diazepam.", respondeu prontamente, surpreendendo os presentes.
- "Por acaso sabes-nos dizer que número estava escrito na caixa?"
- "Era o diazepam de 5 miligramas, tomei 3!", disse sem hesitar, com uma tranquilidade assombrosa.
- "E tomaste mais algum comprimido?"
- "Não, o X e o Y não tomei!". Sabia os nomes comerciais de dois antidepressivos...
Inevitavelmente perguntámos "E porquê?". Respondeu (com um inapropriado sorriso nos lábios):
- "Porque a vida não faz sentido!"...
Uma avaliação psiquiátrica e social depois tudo se tornou mais claro (perspectivando-se naturalmente bastante sombrio...). A mãe, abandonada pelo marido, bebia e abusava dos antidepressivos e sedativos. Por várias vezes tinha tentado o suicídio, com medicamentos e bebidas alcoólicas. Por várias vezes em frente à Luísa. E a Luísa, tranquilamente, imitou todos os comportamentos da mãe. Estava perfeitamente familiarizada com os nomes dos medicamentos, com a sua localização, e com a frase que, tão inocentemente, papagueou. "Porque a vida não faz sentido!"... Com um sorriso nos lábios.
Chegada ao SU a Luísa estava muito difícil de despertar, mas respirava bem e o coração batia de forma adequada. Relatada a história da mãe, tomaram-se as medidas adequadas perante uma intoxicação medicamentosa e alcoólica. Os comprimidos em questão pertenciam à mãe, antidepressivos de várias classes, ansiolíticos e sedativos. Os doseamentos de sedativos na urina e álcool no sangue eram positivos, mas aos poucos a Luísa parecia começar a despertar. E ao longo das horas que passou internada foi sempre melhorando o seu estado de consciência.
Passado o pior, e uma série de horas depois, a Luísa estava já recuperada, e pronta para tentar explicar o sucedido:
- "Tomaste alguns comprimidos?", perguntámos
- "Sim, tomei o diazepam.", respondeu prontamente, surpreendendo os presentes.
- "Por acaso sabes-nos dizer que número estava escrito na caixa?"
- "Era o diazepam de 5 miligramas, tomei 3!", disse sem hesitar, com uma tranquilidade assombrosa.
- "E tomaste mais algum comprimido?"
- "Não, o X e o Y não tomei!". Sabia os nomes comerciais de dois antidepressivos...
Inevitavelmente perguntámos "E porquê?". Respondeu (com um inapropriado sorriso nos lábios):
- "Porque a vida não faz sentido!"...
Uma avaliação psiquiátrica e social depois tudo se tornou mais claro (perspectivando-se naturalmente bastante sombrio...). A mãe, abandonada pelo marido, bebia e abusava dos antidepressivos e sedativos. Por várias vezes tinha tentado o suicídio, com medicamentos e bebidas alcoólicas. Por várias vezes em frente à Luísa. E a Luísa, tranquilamente, imitou todos os comportamentos da mãe. Estava perfeitamente familiarizada com os nomes dos medicamentos, com a sua localização, e com a frase que, tão inocentemente, papagueou. "Porque a vida não faz sentido!"... Com um sorriso nos lábios.
Etiquetas:
Hospital
segunda-feira, 17 de julho de 2006
A menina ruiva
A menina ruiva tinha batido com a cabeça no chão, fruto das brincadeiras típicas de uma criança de (quase) 2 anos. Por ter um "galo" na testa, e porque a mãe a achou um tudo ou nada sonolenta, a menina ruiva foi ao Hospital.
No altifalante da sala de espera a minha voz soou, anunciada por um horrendo "jingle" metálico, chamando a Carolina ao meu gabinete. Entrou pela mão da avó, pelo próprio pé, com ar sereno. Era a menina mais ruiva que eu tinha visto, de olhos grandes e claros. Dizem as lendas pagãs que os de cabelos ruivos são mágicos, resultado talvez do facto de ser uma cor de cabelo razoavelmente invulgar.
Perguntei à avó o que se tinha passado e depois, ainda sentado no banco, pedi à Carolina para se chegar mais perto de mim, estendendo-lhe os braços. Manteve o mesmo ar sereno, não disse uma palavra, e correu para mim, saltando imediatamente para o meu colo. Fiquei, naturalmente, supreendido por aquela atitude, tão rara em crianças daquela idade, pelo que consegui apenas sorrir, atrapalhado, enquanto observava o resultado da queda. Deixou-se observar sem um queixume, ajudando em todas as partes do exame objectivo, mas estranhamente nunca sorriu ou disse uma única palavra...
A queda não tinha provocado danos preocupantes, e portanto a Carolina iria para casa acompanhada pela mãe e pela avó, que vigiariam atentamente o seu estado durante os próximos 2 dias. Ao despedir-me da avó e dela voltei a ver no olhar dela uma expressão pacífica e satisfeita, e embora o seu rosto não sorrisse e a sua boca não se abrisse, acenou-me com um simpático adeus...
E assim, com este encontro "mágico", fiquei mais bem disposto para as longas horas de Urgência que me esperavam ainda.
No altifalante da sala de espera a minha voz soou, anunciada por um horrendo "jingle" metálico, chamando a Carolina ao meu gabinete. Entrou pela mão da avó, pelo próprio pé, com ar sereno. Era a menina mais ruiva que eu tinha visto, de olhos grandes e claros. Dizem as lendas pagãs que os de cabelos ruivos são mágicos, resultado talvez do facto de ser uma cor de cabelo razoavelmente invulgar.
Perguntei à avó o que se tinha passado e depois, ainda sentado no banco, pedi à Carolina para se chegar mais perto de mim, estendendo-lhe os braços. Manteve o mesmo ar sereno, não disse uma palavra, e correu para mim, saltando imediatamente para o meu colo. Fiquei, naturalmente, supreendido por aquela atitude, tão rara em crianças daquela idade, pelo que consegui apenas sorrir, atrapalhado, enquanto observava o resultado da queda. Deixou-se observar sem um queixume, ajudando em todas as partes do exame objectivo, mas estranhamente nunca sorriu ou disse uma única palavra...
A queda não tinha provocado danos preocupantes, e portanto a Carolina iria para casa acompanhada pela mãe e pela avó, que vigiariam atentamente o seu estado durante os próximos 2 dias. Ao despedir-me da avó e dela voltei a ver no olhar dela uma expressão pacífica e satisfeita, e embora o seu rosto não sorrisse e a sua boca não se abrisse, acenou-me com um simpático adeus...
E assim, com este encontro "mágico", fiquei mais bem disposto para as longas horas de Urgência que me esperavam ainda.
Etiquetas:
Hospital
terça-feira, 11 de julho de 2006
O regresso

Com o amadurecimento vem um subtítulo para o blog, porque também a minha vida ganhou um subtítulo como aprendiz de pediatra.
Não prometo assiduidade, mas prometo certamente continuidade.
Naturalmente, manterei por completo o anonimato, pela essencial protecção dos meus doentes e das suas famílias, em absoluto respeito ao sigilo profissional a que estou obrigado.
Obrigado a todos pelas palavras de incentivo ao regresso, espero estar à altura das exigências!
Espero que, desse lado dos LCDs, continuem a participar com os vossos comentários que, como já antes afirmei, enriquecem e valorizam este blog!
"Stay tuned!"
segunda-feira, 17 de abril de 2006
...
Não será por falta de histórias para contar. Talvez sejam as ampliadas responsabilidades que me são impostas como interno da especialidade. Ou será simplesmente preguiça, e algum cansaço em relação ao formato, que me têm mantido longe do blog. Tudo isso, sim, e um dia a dia muito cheio, de trabalho, de dedicação, de aprendizagem. Mas não será concerteza por falta de histórias para contar.
Não sei ainda se é um adeus definitivo ao blog. Vou pensar nisso, deixar amadurecer em mim a nova vida, e decidir depois se volto. Talvez com outro formato, quem sabe se já não sozinho. Parece-me inevitável a mudança depois da pausa, sim, será provavelmente uma pausa. Deixa-me um pouco melancólico deixar um projecto que me é tão querido, onde por um lado tenho vindo expurgar a alma e por outro dar um pouco da "inside view" da vida de um médico. Mas juntamente com o final do Internato Geral, ao longo do qual partilhei com todos vocês as minhas experiências, acabou também o blog tal com era. Precisarei de me afastar um pouco. O que escrevi ficou, no etéreo mundo virtual, como uma colecção de histórias e desabafos que perdura.
Ao acabar de escrever estas linhas ganho a certeza de que será provavelmente um até já. Certamente a distância do blog despertará em mim novamente a vontade de partilhar, como sentimos falta apenas das coisas que perdemos ou deixamos para trás. Talvez a pausa revigore, e volte às letras com cara nova mais brevemente do que penso. Mas deixarei o tempo fazer o seu efeito, e por enquanto despeço-me de todos os que me têm acompanhado nesta aventura em jeito de diário de bordo. Obrigado. Virá provavelmente um novo barco.
Não sei ainda se é um adeus definitivo ao blog. Vou pensar nisso, deixar amadurecer em mim a nova vida, e decidir depois se volto. Talvez com outro formato, quem sabe se já não sozinho. Parece-me inevitável a mudança depois da pausa, sim, será provavelmente uma pausa. Deixa-me um pouco melancólico deixar um projecto que me é tão querido, onde por um lado tenho vindo expurgar a alma e por outro dar um pouco da "inside view" da vida de um médico. Mas juntamente com o final do Internato Geral, ao longo do qual partilhei com todos vocês as minhas experiências, acabou também o blog tal com era. Precisarei de me afastar um pouco. O que escrevi ficou, no etéreo mundo virtual, como uma colecção de histórias e desabafos que perdura.
Ao acabar de escrever estas linhas ganho a certeza de que será provavelmente um até já. Certamente a distância do blog despertará em mim novamente a vontade de partilhar, como sentimos falta apenas das coisas que perdemos ou deixamos para trás. Talvez a pausa revigore, e volte às letras com cara nova mais brevemente do que penso. Mas deixarei o tempo fazer o seu efeito, e por enquanto despeço-me de todos os que me têm acompanhado nesta aventura em jeito de diário de bordo. Obrigado. Virá provavelmente um novo barco.
Subscrever:
Comment Feed (RSS)