O exame foi. Não foi facil, não foi dificil. Foi. Mas a recompensa de todo o estudo valeu a pena, a nota estimada (segundo a chave provisória de correcção) acabou por ser bastante boa, e deverá rondar os 17,5 valores. A minha cara-metade foi a minha nota-metade, e teve a mesmíssima nota que eu! Será portanto mais fácil decidir o futuro. A principal recompensa, essa, é regressar à vida como disse no post anterior.
O blog regressará agora, espero, à sua antiga forma. Tenho trabalhado que nem um doido (muito melhor do que estudar que nem um doido), e vou tendo muitas histórias para contar! A ressaca do exame já passou, o Natal já passou, e as festas estão a acabar. Podem, por isso, contar com mais posts (um por semana é uma vergonha...). Palavra de escuteiro!!
quinta-feira, 29 de dezembro de 2005
De regresso!
Finalmente de regresso à vida! De regresso aos jornais, de regresso aos livros, de regresso à família, de regresso ao trabalho duro, de regresso ao blog!
terça-feira, 20 de dezembro de 2005
quinta-feira, 15 de dezembro de 2005
Run, Forrest, Run!
Sinto-me um pouco como o Forrest Gump a tentar correr para a meta com aquele metal todo nas pernas... É que faltam só 5 dias para o fatídico dia em que todo o meu futuro se decide. O facto de já ter comemorado um aniversário da data em que comecei a estudar para este exame (vide aqui a primeira referência neste blog ao dito monstro) deixa-me um sabor amargo na boca, e a sensação de que é o mundo, e não o estudo, que vai acabar no dia 20... As minhas costas estão numa desgraça, estou cada vez mais pitosga, e as minhas olheiras aproximam-se perigosamente do pescoço. Acham que 8 cafés por dia são demais? O médico diz-me que sim, mas o que sabe essa gente dessas coisas? ;)
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The Long Way
terça-feira, 6 de dezembro de 2005
Pedro (2)
Não poderia, infelizmente, ter vindo mais a propósito. No dia 1 de Dezembro, dia mundial da luta contra a SIDA, reencontrei o Pedro. Contei-vos em Abril deste ano o dia em que o conheci.
Estagiava na altura no Centro de Saúde, mais precisamente no CDP (Centro de Doenças Pulmonares). Durante o estágio em Medicina Interna (que iniciei em Setembro deste ano) encontrei-o por várias vezes internado no serviço de Infecciologia. Tinha por hábito fumar nas escadas de acesso ao serviço, onde o encontrava muitas vezes com alguns outros doentes. Vi-o também algumas vezes a jogar às cartas e a beber café com o Sergei. Manteve sempre a aparência de criança doente que vos descrevi em Abril, mas conseguia a cada encontro estar mais magro, com as feições mais angulosas. A doença que injectou para dentro de si parecia consumi-lo dia a dia. Umas atrás das outras, as infecções oportunistas que a SIDA faz surgir pareciam consumi-lo com a mesma voracidade com que ele fumava os seus cigarros no corredor.
Mas na quinta-feira passada, dia mundial da luta contra a SIDA, encontrei o Pedro no SO do Serviço de Urgência. Estava magro como não se imagina ser possível, sem músculos que lhe permitissem andar. As pernas e os braços encarquilhados, querendo retomar a posição fetal. A respiração ofegante, o olhar incerto, a linguagem quase imperceptível. Pedia por água, debatia-se com as secreções para conseguir falar. A fralda ajudava a reduzi-lo ao mínimo que pode ser considerado um ser humano. Já tinha por várias vezes arrancado os soros, e tinha por isso as mãos amarradas. Alarguei um pouco as cordas, o suficiente para ele tomar uma posição um pouco mais confortável, mas que não lhe permitisse voltar a arrancar os soros. O Pedro espera pela morte. Oito meses depois de ter ido pelo seu pé à consulta do CDP, poucos meses depois de o ver deambular pelo corredor agarrado ao suporte do soro, o Pedro espera agora pela morte no SO. A SIDA estava a ganhar a luta, no dia mundial da luta contra a SIDA.
Estagiava na altura no Centro de Saúde, mais precisamente no CDP (Centro de Doenças Pulmonares). Durante o estágio em Medicina Interna (que iniciei em Setembro deste ano) encontrei-o por várias vezes internado no serviço de Infecciologia. Tinha por hábito fumar nas escadas de acesso ao serviço, onde o encontrava muitas vezes com alguns outros doentes. Vi-o também algumas vezes a jogar às cartas e a beber café com o Sergei. Manteve sempre a aparência de criança doente que vos descrevi em Abril, mas conseguia a cada encontro estar mais magro, com as feições mais angulosas. A doença que injectou para dentro de si parecia consumi-lo dia a dia. Umas atrás das outras, as infecções oportunistas que a SIDA faz surgir pareciam consumi-lo com a mesma voracidade com que ele fumava os seus cigarros no corredor.
Mas na quinta-feira passada, dia mundial da luta contra a SIDA, encontrei o Pedro no SO do Serviço de Urgência. Estava magro como não se imagina ser possível, sem músculos que lhe permitissem andar. As pernas e os braços encarquilhados, querendo retomar a posição fetal. A respiração ofegante, o olhar incerto, a linguagem quase imperceptível. Pedia por água, debatia-se com as secreções para conseguir falar. A fralda ajudava a reduzi-lo ao mínimo que pode ser considerado um ser humano. Já tinha por várias vezes arrancado os soros, e tinha por isso as mãos amarradas. Alarguei um pouco as cordas, o suficiente para ele tomar uma posição um pouco mais confortável, mas que não lhe permitisse voltar a arrancar os soros. O Pedro espera pela morte. Oito meses depois de ter ido pelo seu pé à consulta do CDP, poucos meses depois de o ver deambular pelo corredor agarrado ao suporte do soro, o Pedro espera agora pela morte no SO. A SIDA estava a ganhar a luta, no dia mundial da luta contra a SIDA.
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Hospital
sexta-feira, 2 de dezembro de 2005
Insónias
Há coisas que não se esquecem. E a situação que vivi ontem é uma delas. Daquelas que nos fazem custar a adormecer.
Pelas 12h00 de ontem, no Serviço de Urgência, um "triiiiim!" fez médicos, enfermeiros e auxiliares levantarem-se das cadeiras. Era a campainha da reanimação, que avisa da chegada de um doente grave. Tratava-se de uma mulher jovem, com 30 anos, que dizia, com as poucas forças que lhe restavam, que tinha uma falta de ar imensa. Conseguiu contar aos médicos que a falta de ar tinha começado de forma súbita, e conseguiu ainda responder a algumas perguntas relativas a factores de risco para algumas doenças que podem ser responsáveis por um quadro assim. Tentava, desesperada, respirar o mais profundamente possível, e quando percebeu que o mundo em seu redor lhe fugia disse "Vou Morrer". A tensão arterial descia a pique, o coração batia muito depressa, e ela rapidamente perdeu os sentidos. De seu redor, os auxiliares despiam-na, os enfermeiros tentavam desesperadamente canalizar uma veia, um médico fazia-lhe um ECG e um outro fazia intubação orotraqueal (colocação de um tubo na traqueia para conexão a um ventilador). O Cardiologista de urgência rapidamente chegou com o aparelho de ecocardiografia, e as peças do puzzle começavam a organizar-se: tratava-se provavelmente de um tromboembolismo pulmonar maçiço (um coágulo de grandes dimensões - formado na corrente sanguínea, geralmente nas grandes veias dos membros inferiores - desloca-se e oclui os grandes vasos que entram nos pulmões). O ecocardiograma mostrava várias alterações compatíveis com esse diagnóstico, e mostrava - segundo a segundo - um agravamento progressivo da função cardíaca. Rapidamente os pulsos deixaram de se sentir (um sinal claro que a função do coração era já muito baixa), e um médico iniciou massagem cardíaca. O monitor cardíaco mostrava agora que o coração batia cada vez mais devagar, e o ecocardiograma mostrou que batia cada vez pior. No meio de todos estes passos iam sendo administrados vários fármacos que tinham como objectivo melhorar a função do coração, e assim que o diagnóstico se tornou claro foi pedido ao enfermeiro que preparasse a trombólise. A trombólise consiste num farmaco capaz de destruir o coágulo que obstruia as artérias pulmonares, de forma a corrigir o problema que estava na base de todo aquele quadro catastrófico. Estava já a trombólise pronta para a administração quando uma enfermeira diz "esperem!!"... Tinha acabado de fazer a intubação naso-gástrica (colocação de um tubo até ao estômago para esvazia-lo do seu conteúdo), e esta drenava o que parecia ser sangue vivo. Em poucos segundos a incerteza esbateu-se: era sangue vivo que saía do estômago, e em quantidade significativa. Um frio gélido percorreu a sala. O problema não era o sangue em si, mas o facto de a hemorragia activa ser uma contraindicação absoluta para a trombólise. Ou seja, aquele achado tinha acabado de contraindicar a única coisa que poderia reverter aquele quadro gravíssimo, e que aguardava apenas o carregar de um botão para ser iniciada... As manobras de reanimação continuavam, entre a colocação de um catéter venoso central na veia femural (um acesso venoso para a administração de fármacos e soros) e uma gasimetria arterial na artéria femural. Rendi o colega que estava a fazer massagem cardíaca, e subi para cima do estrado. Entre algumas dezenas de compressões o Cardiologista fazia ecocardiograma, que mostrava que o coração já não era capaz de contrair. O monitor mostrava ainda complexos (que denotam a actividade eléctrica do coração), mas já muito espaçados. Tinham já passado 45 minutos desde a entrada da rapariga no Serviço de Urgência. Em poucos segundos surgiu a linha isoeléctrica (a linha plana que mostra a inexistência de actividade eléctrica), e o médico mais velho disse o que todos pensámos: "Acabou". Eu tinha ainda as mãos colocadas sobre o peito da rapariga, de pé em cima do estrado. Perguntei, pura retórica, "acabou?". "Sim, acabou" responderam-me. Uma dezena de profissionais de saúde baixavam os braços, em silêncio. Um silêncio aterrador, cortado apenas pelo barulho que alguns pares de luvas faziam ao serem tirados e deitados para o lixo. Não o "piiiiiii" constante que nos habituamos a ver nos filmes, mas em sua substituição um silêncio enorme. Desci do estrado, endireitei as costas, e tirei também eu as luvas. Em silêncio.
Pelas 12h00 de ontem, no Serviço de Urgência, um "triiiiim!" fez médicos, enfermeiros e auxiliares levantarem-se das cadeiras. Era a campainha da reanimação, que avisa da chegada de um doente grave. Tratava-se de uma mulher jovem, com 30 anos, que dizia, com as poucas forças que lhe restavam, que tinha uma falta de ar imensa. Conseguiu contar aos médicos que a falta de ar tinha começado de forma súbita, e conseguiu ainda responder a algumas perguntas relativas a factores de risco para algumas doenças que podem ser responsáveis por um quadro assim. Tentava, desesperada, respirar o mais profundamente possível, e quando percebeu que o mundo em seu redor lhe fugia disse "Vou Morrer". A tensão arterial descia a pique, o coração batia muito depressa, e ela rapidamente perdeu os sentidos. De seu redor, os auxiliares despiam-na, os enfermeiros tentavam desesperadamente canalizar uma veia, um médico fazia-lhe um ECG e um outro fazia intubação orotraqueal (colocação de um tubo na traqueia para conexão a um ventilador). O Cardiologista de urgência rapidamente chegou com o aparelho de ecocardiografia, e as peças do puzzle começavam a organizar-se: tratava-se provavelmente de um tromboembolismo pulmonar maçiço (um coágulo de grandes dimensões - formado na corrente sanguínea, geralmente nas grandes veias dos membros inferiores - desloca-se e oclui os grandes vasos que entram nos pulmões). O ecocardiograma mostrava várias alterações compatíveis com esse diagnóstico, e mostrava - segundo a segundo - um agravamento progressivo da função cardíaca. Rapidamente os pulsos deixaram de se sentir (um sinal claro que a função do coração era já muito baixa), e um médico iniciou massagem cardíaca. O monitor cardíaco mostrava agora que o coração batia cada vez mais devagar, e o ecocardiograma mostrou que batia cada vez pior. No meio de todos estes passos iam sendo administrados vários fármacos que tinham como objectivo melhorar a função do coração, e assim que o diagnóstico se tornou claro foi pedido ao enfermeiro que preparasse a trombólise. A trombólise consiste num farmaco capaz de destruir o coágulo que obstruia as artérias pulmonares, de forma a corrigir o problema que estava na base de todo aquele quadro catastrófico. Estava já a trombólise pronta para a administração quando uma enfermeira diz "esperem!!"... Tinha acabado de fazer a intubação naso-gástrica (colocação de um tubo até ao estômago para esvazia-lo do seu conteúdo), e esta drenava o que parecia ser sangue vivo. Em poucos segundos a incerteza esbateu-se: era sangue vivo que saía do estômago, e em quantidade significativa. Um frio gélido percorreu a sala. O problema não era o sangue em si, mas o facto de a hemorragia activa ser uma contraindicação absoluta para a trombólise. Ou seja, aquele achado tinha acabado de contraindicar a única coisa que poderia reverter aquele quadro gravíssimo, e que aguardava apenas o carregar de um botão para ser iniciada... As manobras de reanimação continuavam, entre a colocação de um catéter venoso central na veia femural (um acesso venoso para a administração de fármacos e soros) e uma gasimetria arterial na artéria femural. Rendi o colega que estava a fazer massagem cardíaca, e subi para cima do estrado. Entre algumas dezenas de compressões o Cardiologista fazia ecocardiograma, que mostrava que o coração já não era capaz de contrair. O monitor mostrava ainda complexos (que denotam a actividade eléctrica do coração), mas já muito espaçados. Tinham já passado 45 minutos desde a entrada da rapariga no Serviço de Urgência. Em poucos segundos surgiu a linha isoeléctrica (a linha plana que mostra a inexistência de actividade eléctrica), e o médico mais velho disse o que todos pensámos: "Acabou". Eu tinha ainda as mãos colocadas sobre o peito da rapariga, de pé em cima do estrado. Perguntei, pura retórica, "acabou?". "Sim, acabou" responderam-me. Uma dezena de profissionais de saúde baixavam os braços, em silêncio. Um silêncio aterrador, cortado apenas pelo barulho que alguns pares de luvas faziam ao serem tirados e deitados para o lixo. Não o "piiiiiii" constante que nos habituamos a ver nos filmes, mas em sua substituição um silêncio enorme. Desci do estrado, endireitei as costas, e tirei também eu as luvas. Em silêncio.
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Hospital
segunda-feira, 7 de novembro de 2005
Um momento como este...
... e eu a estudar... Vida de cão.
(A foto perde pela dimensão reduzida, se clicarem nela vêm-na um bocadinho melhor)
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Fotos,
The Long Way
domingo, 6 de novembro de 2005
Outra visita obrigatória
Tem estado ali a repousar na lista de blogs... Quietinho, silencioso. Quem se atreveu a carregar no link ter-se-á certamente assustado, com o barulho que vem do lado de lá. Eu gosto, gosto muito. E por isso merece destaque:
Ai-Dia
Ai-Dia
sábado, 29 de outubro de 2005
segunda-feira, 24 de outubro de 2005
Amigos!
É tão bom descobrir amigos na Internet! Uma grande, grande amiga, está em Paris com outro grande amigo, e decidiu contar-nos as suas peripécias de nouvelle-emigrant (escrever-se-á assim?)...
Visita obrigatória, e já agora fica ali ao lado em destaque!
Visita obrigatória, e já agora fica ali ao lado em destaque!
sexta-feira, 21 de outubro de 2005
Um ano
Um ano de blog já lá vai! Pelo meio 127 posts, muitos doentes, 6 estágios, muitos comentadores e um casamento!
Foi assim o primeiro post, quando ainda não fazia ideia no que isto iria dar! Devo dizer que estou satisfeito com os resultados, e acima de tudo com a envolvência que se tem criado com os "comentadores"! Afinal, sem vocês isto não tinha graça nenhuma...
Muito Obrigado!!
Foi assim o primeiro post, quando ainda não fazia ideia no que isto iria dar! Devo dizer que estou satisfeito com os resultados, e acima de tudo com a envolvência que se tem criado com os "comentadores"! Afinal, sem vocês isto não tinha graça nenhuma...
Muito Obrigado!!
sexta-feira, 14 de outubro de 2005
Sergei
Estou vivo eu, ainda. "Barely" (Como traduzir? Estudar em inglês dá conta do vocabulário...). O Dirty Harry suga-me aos poucos o juízo, mas estou, ainda, vivo.
Um destes dias conheci um personagem do 007. Não seria bem o Goldfinger, seria mais adequado "Goldteeth". O Sergei é russo, da Sibéria mais propriamente. Os quatro dentes incisivos superiores reluzem à luz que passa pela janela da enfermaria. Ficou na cama junto à janela, infelimente os dois companheiros de quarto viajam mais por mundos interiores. O Sergei é um tipo novo, em redor dos 40 anos, não lhe apetecia estar internado. Aliás, acrescento, não lhe apetecia estar doente. Infelizmente, uma queda nas escadas do seu atelier de restauro levou-o ao hospital. O problema não foi a queda em si, mas as alterações da visão com que ficou após a queda impediram-no de continuar o seu delicado trabalho. No hospital, uma má notícia. As análises mostraram que os glóbulos vermelhos, os glóbulos brancos e as plaquetas (ou seja, todas as células do sangue) estavam todos em falta (situação chamada pancitopénia). A anemia grave (falta de glóbulos vermelhos) ter-lhe-ia provocado a queda, e a falta de plaquetas fez com que na sequência da queda surgissem várias hemorragias na retina (daí a visão turva). Não queria ficar internado, após as transfusões sanguíneas já se sentia melhor. No entanto as plaquetas continuavam muito baixas, e era necessário esclarecer a causa de toda aquela situação. Poderia ser uma aplasia medular (a medula óssea, "fábrica" do sangue, a funcionar pouco - provavelmente consequência de todos os produtos químicos com que trabalha diariamente), mas poderia entre outras coisas ser uma leucémia/linfoma... O Sergei recusou inicialmente a biópsia óssea, mas após dois dias de internamento e alguma insistência nossa acabou por aceder. Foi nesta altura que eu agradeci não saber falar russo: após pedir autorização para falar durante a biópsia, iniciou uma verborreia em russo, agressiva e claramente ofensiva. Felizmente, aos meus ouvidos, imperceptível.
Enquanto aguardava os resultados dos vários exames efectuados, o Sergei trouxe um toque "diferente" à enfermaria. Um dia encontrei-o pendurado na ombreira da porta todo vestido com roupa justa preta enquanto uma linda melodia de Bach ecoava a bom som pela enfermaria. Por vários dias dei com ele vestido com roupa de passeio para ir beber café à máquina do piso de baixo, onde aproveitava para socializar com os doentes da Infecciologia (prática muito pouco aconselhável a quem tem o sistema imunitário nas lonas como ele...). Todos os dias as enfermeiras se queixavam de assédio da parte do Sergei. Um outro dia, o Sergei queixou-se de dor na região anal. Não só impediu as enfermeiras de estarem na sala enquanto nos mostrava o que parecia ser um abcesso peri-anal, como recusou ser observado pela cirurgiã de serviço. Vimo-nos obrigados a pedir a um cirurgião que não estava de urgência para vir espreitar o abcesso do Sergei...
No meio de todas estas peripécias, foram chegando os resultados dos vários exames efectuados. Tratava-se de facto muito provavelmente de uma aplasia medular. Factores de risco não lhe faltavam: além de trabalhar diariamente com dezenas de químicos diferentes tinha sido submetido a doses elevadas de radiação aquando da sua participação numa qualquer guerra como soldado ao serviço da Rússia. Além da radiação, tinha também sido submetido a injecções múltiplas de anabolizantes para ser capaz de correr várias horas sem se cansar. Um qualquer destes factores seria provavelmente o responsável pelo "esgotamento" da medula óssea do Sergei. O afastamento dos químicos não parecia estar a ajudar muito, e a "fábrica" não parecia ter vontade de retomar a sua actividade. Neste momento o Sergei aguarda transplante de medula óssea, mais propriamente um dador compatível. Não tem familiares directos contactáveis, o que dificulta o processo. Está dependente de transfusões sanguíneas, mas várias complicações podem surgir entretanto... Não está já na nossa enfermaria de Medicina Interna, foi transferido entretanto para um serviço de Hematologia noutro hospital. E a nossa enfermaria retomou o seu rumo normal, infelizmente sem Bach...
Um destes dias conheci um personagem do 007. Não seria bem o Goldfinger, seria mais adequado "Goldteeth". O Sergei é russo, da Sibéria mais propriamente. Os quatro dentes incisivos superiores reluzem à luz que passa pela janela da enfermaria. Ficou na cama junto à janela, infelimente os dois companheiros de quarto viajam mais por mundos interiores. O Sergei é um tipo novo, em redor dos 40 anos, não lhe apetecia estar internado. Aliás, acrescento, não lhe apetecia estar doente. Infelizmente, uma queda nas escadas do seu atelier de restauro levou-o ao hospital. O problema não foi a queda em si, mas as alterações da visão com que ficou após a queda impediram-no de continuar o seu delicado trabalho. No hospital, uma má notícia. As análises mostraram que os glóbulos vermelhos, os glóbulos brancos e as plaquetas (ou seja, todas as células do sangue) estavam todos em falta (situação chamada pancitopénia). A anemia grave (falta de glóbulos vermelhos) ter-lhe-ia provocado a queda, e a falta de plaquetas fez com que na sequência da queda surgissem várias hemorragias na retina (daí a visão turva). Não queria ficar internado, após as transfusões sanguíneas já se sentia melhor. No entanto as plaquetas continuavam muito baixas, e era necessário esclarecer a causa de toda aquela situação. Poderia ser uma aplasia medular (a medula óssea, "fábrica" do sangue, a funcionar pouco - provavelmente consequência de todos os produtos químicos com que trabalha diariamente), mas poderia entre outras coisas ser uma leucémia/linfoma... O Sergei recusou inicialmente a biópsia óssea, mas após dois dias de internamento e alguma insistência nossa acabou por aceder. Foi nesta altura que eu agradeci não saber falar russo: após pedir autorização para falar durante a biópsia, iniciou uma verborreia em russo, agressiva e claramente ofensiva. Felizmente, aos meus ouvidos, imperceptível.
Enquanto aguardava os resultados dos vários exames efectuados, o Sergei trouxe um toque "diferente" à enfermaria. Um dia encontrei-o pendurado na ombreira da porta todo vestido com roupa justa preta enquanto uma linda melodia de Bach ecoava a bom som pela enfermaria. Por vários dias dei com ele vestido com roupa de passeio para ir beber café à máquina do piso de baixo, onde aproveitava para socializar com os doentes da Infecciologia (prática muito pouco aconselhável a quem tem o sistema imunitário nas lonas como ele...). Todos os dias as enfermeiras se queixavam de assédio da parte do Sergei. Um outro dia, o Sergei queixou-se de dor na região anal. Não só impediu as enfermeiras de estarem na sala enquanto nos mostrava o que parecia ser um abcesso peri-anal, como recusou ser observado pela cirurgiã de serviço. Vimo-nos obrigados a pedir a um cirurgião que não estava de urgência para vir espreitar o abcesso do Sergei...
No meio de todas estas peripécias, foram chegando os resultados dos vários exames efectuados. Tratava-se de facto muito provavelmente de uma aplasia medular. Factores de risco não lhe faltavam: além de trabalhar diariamente com dezenas de químicos diferentes tinha sido submetido a doses elevadas de radiação aquando da sua participação numa qualquer guerra como soldado ao serviço da Rússia. Além da radiação, tinha também sido submetido a injecções múltiplas de anabolizantes para ser capaz de correr várias horas sem se cansar. Um qualquer destes factores seria provavelmente o responsável pelo "esgotamento" da medula óssea do Sergei. O afastamento dos químicos não parecia estar a ajudar muito, e a "fábrica" não parecia ter vontade de retomar a sua actividade. Neste momento o Sergei aguarda transplante de medula óssea, mais propriamente um dador compatível. Não tem familiares directos contactáveis, o que dificulta o processo. Está dependente de transfusões sanguíneas, mas várias complicações podem surgir entretanto... Não está já na nossa enfermaria de Medicina Interna, foi transferido entretanto para um serviço de Hematologia noutro hospital. E a nossa enfermaria retomou o seu rumo normal, infelizmente sem Bach...
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Hospital
segunda-feira, 19 de setembro de 2005
SO
12 horas apenas. São suficientes para muita água correr debaixo da ponte. E muitos doentes passarem pelo Serviço de Observação (vulgo SO). Fora as 8 altas que conseguimos dar (que rapidamente serviram para internar mais doentes), fizemos duas transferências para o serviço. Outra vaga surgiu de uma forma mais triste, um velhote muito velhinho despediu-se do mundo em silêncio. Uma senhora com 100 anos (que não tomava um único medicamento!!!) faleceu alguns dias após um AVC extenso. Numa sala mais escondida estavam dois homens que a sociedade deitou fora (ou que deitaram fora a sociedade?). Com SIDA, e com todas e mais algumas das suas complicações, decorrentes principalmente do facto de ignorarem as medicações prescritas e continuarem a utilizar drogas endovenosas (ao fim e ao cabo escolhem as drogas deles sobre as nossas...). Uns casos são simples (de diagnosticar, não de tratar), como o AVCs e as Pneumonias, e outros mais complexos. Alguns baralham-nos os diagnósticos, deixando-nos por vezes às voltas. Tentando ajudar e lidar com as situações o melhor possível.
No meio do rebuliço chegou um homem com um provável enfarte. A confirmar-se o enfarte, era o terceiro... Estava consciente, mas muito queixoso. Estava a entrar em choque (o coração já não é capaz, no choque, de bombear o sangue adequadamente), e as medidas para equilibrar a delicada balança onde o homem se encontrava não iriam durar para sempre. Entretanto, enquanto os meus colegas administravam fármacos e mais fármacos, eu fiz-lhe um ECG. Tinha de facto um enfarte, e parecia ser extenso. Rapidamente foi colocado na ambulância, para ser transferido para um local com uma unidade de angiografia (para "desobstruir" a artéria lesada) a funcionar, da qual precisava. Com ele foi um colega meu e uma enfermeira. Acabei por não saber o que lhe aconteceu, mas suspeito que o desfecho não tenha sido feliz...
A chegada do "directo" (falamos assim dos casos emergentes, pela entrada "directa" no hospital) com o enfarte interrompeu o trabalho do SO, que logo retomou o seu rumo à saida da ambulância. Um outro enfarte, esse já com alguns dias de evolução, estava a recuperar no SO. Um desfecho provavelmente diferente, felizmente, do anterior.
No meio do rebuliço chegou um homem com um provável enfarte. A confirmar-se o enfarte, era o terceiro... Estava consciente, mas muito queixoso. Estava a entrar em choque (o coração já não é capaz, no choque, de bombear o sangue adequadamente), e as medidas para equilibrar a delicada balança onde o homem se encontrava não iriam durar para sempre. Entretanto, enquanto os meus colegas administravam fármacos e mais fármacos, eu fiz-lhe um ECG. Tinha de facto um enfarte, e parecia ser extenso. Rapidamente foi colocado na ambulância, para ser transferido para um local com uma unidade de angiografia (para "desobstruir" a artéria lesada) a funcionar, da qual precisava. Com ele foi um colega meu e uma enfermeira. Acabei por não saber o que lhe aconteceu, mas suspeito que o desfecho não tenha sido feliz...
A chegada do "directo" (falamos assim dos casos emergentes, pela entrada "directa" no hospital) com o enfarte interrompeu o trabalho do SO, que logo retomou o seu rumo à saida da ambulância. Um outro enfarte, esse já com alguns dias de evolução, estava a recuperar no SO. Um desfecho provavelmente diferente, felizmente, do anterior.
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Hospital
domingo, 11 de setembro de 2005
Medicina Interna
Começa um novo ciclo... Acaba-se a Pediatria e inicia-se o estágio na Medicina Interna. A mãe de todas as especialidades médicas hospitalares, aquela que exige os conhecimentos mais abrangentes, uma das mais maltratadas especialidades.
A Medicina Interna é uma especialidade pesada, mas muito aliciante. Lida-se diariamente com o instável equilíbrio em que vão vivendo os idosos com multipatologia, lida-se com os casos mais desafiantes do ponto de vista do diagnóstico e da terapêutica. Pensa-se muito, cada caso (do jovem ao idoso) é um desafio. Por outro lado lida-se muito com a morte, isso acontece quando a média de idades dos doentes internados ronda os 80 anos*. Lida-se com a morte num dia como um insucesso, no outro como um desfecho esperado. Por vezes com a aparente frieza de quem lida muito com ela.
Doutro ponto de vista, foi um choque voltar a observar um adulto depois de tanta criançada: mas que grandes barrigas têm os adultos!! A questão que se me colocou: "Por onde começo?!".
* Não, não é uma piada política referente às Presidenciais... Mas podia ser.
A Medicina Interna é uma especialidade pesada, mas muito aliciante. Lida-se diariamente com o instável equilíbrio em que vão vivendo os idosos com multipatologia, lida-se com os casos mais desafiantes do ponto de vista do diagnóstico e da terapêutica. Pensa-se muito, cada caso (do jovem ao idoso) é um desafio. Por outro lado lida-se muito com a morte, isso acontece quando a média de idades dos doentes internados ronda os 80 anos*. Lida-se com a morte num dia como um insucesso, no outro como um desfecho esperado. Por vezes com a aparente frieza de quem lida muito com ela.
Doutro ponto de vista, foi um choque voltar a observar um adulto depois de tanta criançada: mas que grandes barrigas têm os adultos!! A questão que se me colocou: "Por onde começo?!".
* Não, não é uma piada política referente às Presidenciais... Mas podia ser.
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Hospital
sexta-feira, 2 de setembro de 2005
Pediatria - o outro lado
Antes das mini-férias fiz um banco de Pediatria que me marcou. O primeiro bebé que vi nessa manhã tinha 2 meses de idade, o Daniel. Estava com dificuldade respiratória marcada, parecia um autêntico peixinho fora de água... A cada inspiração notava-se o esforço respiratório que ele fazia, e a cada expiração emitia um gemido (mais um sinal de dificuldade respiratória). O esforço respiratório era já prolongado, e o Daniel estava a ficar esgotado. O mais impressionante no Daniel eram os olhos, fixos no infinito. Ele estava inteiramente dedicado ao esforço respiratório, parecia absolutamente alheio a tudo o que o rodeava. A mãe do Daniel estava muito silenciosa, com os olhos húmidos e um ar apreensivo. Disse-nos que o Daniel já tinha estado com dificuldade respiratória antes, uma bronquilolite que se havia tratado algumas semanas antes com sucesso.
A auscultação pulmonar denotava também a gravidade do quadro, já practicamente que não se ouvia o ar a entrar nos pulmões do Daniel. O quadro não era para brincadeiras, e iniciámos imediatamente terapêutica pesada para reverter aquela situação. Mas rapidamente percebemos que não o Daniel não melhorava e transferimo-lo para um hospital com Unidade Pediátrica de Cuidados Intensivos. Quando a colega que o acompanhou no transporte voltou contou-nos que tiveram que o intubar e conectar ao ventilador para conseguir respirar.
Não soube nada do Daniel enquanto estive de férias, naturalmente. Quando voltei lembrei-me de perguntar o que tinha então acontecido ao menino. A minha colega fez um ar gravoso e explicou-me que o Daniel não tinha sobrevivido. Recebi a notícia com espanto, a insuficiência respiratória dele não parecia justificar tamanho desfecho, especialmente sabendo que estava já ventilado... Parece que tinha uma infecção viral grave, com atingimento do coração também, atingimento esse que acabou por ser fatal... Recebi esta notícia quando estava de urgência. Por muito que doesse, tinha dezenas de meninos doentes para ver. Tive naturalmente que seguir em frente, e agir como se nada fosse. Frieza? Não, não... O que custou foi dormir, nessa noite... Este é o lado negro da Pediatria...
A auscultação pulmonar denotava também a gravidade do quadro, já practicamente que não se ouvia o ar a entrar nos pulmões do Daniel. O quadro não era para brincadeiras, e iniciámos imediatamente terapêutica pesada para reverter aquela situação. Mas rapidamente percebemos que não o Daniel não melhorava e transferimo-lo para um hospital com Unidade Pediátrica de Cuidados Intensivos. Quando a colega que o acompanhou no transporte voltou contou-nos que tiveram que o intubar e conectar ao ventilador para conseguir respirar.
Não soube nada do Daniel enquanto estive de férias, naturalmente. Quando voltei lembrei-me de perguntar o que tinha então acontecido ao menino. A minha colega fez um ar gravoso e explicou-me que o Daniel não tinha sobrevivido. Recebi a notícia com espanto, a insuficiência respiratória dele não parecia justificar tamanho desfecho, especialmente sabendo que estava já ventilado... Parece que tinha uma infecção viral grave, com atingimento do coração também, atingimento esse que acabou por ser fatal... Recebi esta notícia quando estava de urgência. Por muito que doesse, tinha dezenas de meninos doentes para ver. Tive naturalmente que seguir em frente, e agir como se nada fosse. Frieza? Não, não... O que custou foi dormir, nessa noite... Este é o lado negro da Pediatria...
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sábado, 27 de agosto de 2005
Verde?!
O Gonçalo tem 5 anos, e está farto de médicos até à raiz dos cabelos. Conhece demasiado bem os corredores do hospital, desde a Urgência Pediátrica até ao IPO de Lisboa. Felizmente esta é uma história feliz, tanto quanto se pode dizer até agora. O Gonçalo teve um linfoma, um cancro dos órgãos linfóides (gânglios linfáticos, baço...), há cerca de um ano, e fez umas valentes doses de quimioterapia. Entrou naquilo que chamamos remissão completa, ou seja, deixou de ter evidência clínica e laboratorial da existência da neoplasia. Este termo, apesar de injectar de esperança quem o ouve, não quer dizer que é garantido que a doença não volte a aparecer. E a mãe do Gonçalo sabe bem disso. Por isso, ao mínimo sinal de alarme, leva-o à Urgência Pediátrica.
Foi na Urgencia Pediátrica que eu conheci o Gonçalo. Nesse dia vinha, como ele disse, vestido "à Sportinguista". Trazia o equipamento completo do Sporting, do boné até às meias. A mãe tinha-o trazido por ter encontrado algumas "nódoas negras" nos ombros do Gonçalo. Ela sabe que isso pode ser um sinal de que as plaquetas estão baixas, o que no caso do Gonçalo pode avisar para uma recidiva da neoplasia. No entanto um problema surgiu: o Gonçalo recusava-se a despir o equipamento do Sporting para mostrar as "manchinhas" à minha colega. Ninguém queria ter de o despir à força, mas as falinhas mansas não estavam a resultar. Foi neste momento que me lembrei de uma coisa, absolutamente infantil, mas que acabou por resultar... Entrei na brincadeira com ele por estar verde da cabeça aos pés, e insinuei que teria também a barriga verde. Desatou-se a rir de mim, como quem diz "mas olha lá este palerma que diz que a minha barriga é verde!!", e mostrou-me, orgulhoso, a sua barriga branquinha. A seguir eu fui dizendo que as costas estavam verdes, que os pés estavam verdes, que o rabo estava verde, e em menos de um minuto tinha o Gonçalo completamente despido a rir à gargalhada daquele médico tão palerma. Assim conseguimos ver-lhe todas as lesões, procurar mais algumas, e palpar-lhe a barriga, ausculta-lo (tinha também, segundo eu, o coração verde - tinha que ver se rugia como o leão) e procurar gânglios aumentados de volume. Felizmente não tinha nada de especial clinicamente, e as análises revelaram-se perfeitamente normais. As "nódoas negras" eram provavelmente, como as de todas as outras crianças, resultado das brincadeiras próprias de uma criança daquela idade. Todos ficámos mais descansados, e o Gonçalo foi com a mãe e com a mana para casa, brincar "aos Sportinguistas"!...
Foi na Urgencia Pediátrica que eu conheci o Gonçalo. Nesse dia vinha, como ele disse, vestido "à Sportinguista". Trazia o equipamento completo do Sporting, do boné até às meias. A mãe tinha-o trazido por ter encontrado algumas "nódoas negras" nos ombros do Gonçalo. Ela sabe que isso pode ser um sinal de que as plaquetas estão baixas, o que no caso do Gonçalo pode avisar para uma recidiva da neoplasia. No entanto um problema surgiu: o Gonçalo recusava-se a despir o equipamento do Sporting para mostrar as "manchinhas" à minha colega. Ninguém queria ter de o despir à força, mas as falinhas mansas não estavam a resultar. Foi neste momento que me lembrei de uma coisa, absolutamente infantil, mas que acabou por resultar... Entrei na brincadeira com ele por estar verde da cabeça aos pés, e insinuei que teria também a barriga verde. Desatou-se a rir de mim, como quem diz "mas olha lá este palerma que diz que a minha barriga é verde!!", e mostrou-me, orgulhoso, a sua barriga branquinha. A seguir eu fui dizendo que as costas estavam verdes, que os pés estavam verdes, que o rabo estava verde, e em menos de um minuto tinha o Gonçalo completamente despido a rir à gargalhada daquele médico tão palerma. Assim conseguimos ver-lhe todas as lesões, procurar mais algumas, e palpar-lhe a barriga, ausculta-lo (tinha também, segundo eu, o coração verde - tinha que ver se rugia como o leão) e procurar gânglios aumentados de volume. Felizmente não tinha nada de especial clinicamente, e as análises revelaram-se perfeitamente normais. As "nódoas negras" eram provavelmente, como as de todas as outras crianças, resultado das brincadeiras próprias de uma criança daquela idade. Todos ficámos mais descansados, e o Gonçalo foi com a mãe e com a mana para casa, brincar "aos Sportinguistas"!...
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quarta-feira, 17 de agosto de 2005
sábado, 13 de agosto de 2005
sexta-feira, 29 de julho de 2005
Contrastes II
Em extremos opostos da mesma enfermaria, dois casos nos extremos opostos do espectro possível no Puerpério.
Na cama 1 está a Vanessa. Acabou de ter um filho com o qual provavelmente não contava. A Vanessa tem 15 anos de idade, e acabou agora de ser mãe de um pequeno boneco, o seu primeiro filho. Como é alta conseguiu esconder a gravidez do mundo durante bastante tempo. Apenas no terceiro trimestre da gravidez a situação se tornou excessivamente evidente para que a família desse pelo sucedido. Assim, teve duas consultas médicas, fez apenas uma ecografia, e fez uma vez só as análises laboratoriais de rotina da gravidez. Felizmente nada de especial aconteceu. O bebé nasceu bem, está perfeitamente saudável, e toda a embrulhada acabou por se resolver da melhor maneira. A embrulhada que se segue é saber se a Vanessa, que ganhou o epíteto de mãe-adolescente, é capaz de educar convenientemente o bebé... Felizmente para os dois, a Vanessa estabeleceu uma boa relação com ele. Sorri, deliciada, quando lhe mostro que o seu bebé já sabe "andar". Pode ser que os instintos lhe incutam a responsabilidade que ela precisa de ter... Oxalá!
Na cama 4 está a Luísa. Tem o dobro da idade da Vanessa, mas uma experiência "gestacional" semelhante. O bebé que, atrapalhado, tenta perceber como se mama, é o primeiro filho da Luísa. É um bebé de ouro, ou seja, é o resultado de vários anos de tratamentos para a infertilidade. Provavelmente poucos filhos são tão desejados como os "bebés de ouro". A mãe sorri, quando uso a expressão, diz-me que de facto vale o seu peso em ouro. Teve 10 consultas médicas da gravidez, fez 8 ecografias e fez as análises de rotina dos três trimestres da gravidez. Felizmente teve a mesma sorte da Vanessa, tudo correu bem na gravidez e o bebé está óptimo. A Luísa sorri, aliviada, quando lho digo depois de "virar a criança do avesso".
Deixei a Luísa e a Vanessa entretidas a dar de mamar aos seus rebentos, ambos "trapalhões" na altura de mamar.
E assim acabei o meu estágio no Puerpério, na próxima segunda-feira vou para a Enfermaria de Pediatria. Não sem antes fazer um "banquinho" de Domingo... Ah, como vai ser bom estar fora das filas para o Algarve... Ou não?...
Na cama 1 está a Vanessa. Acabou de ter um filho com o qual provavelmente não contava. A Vanessa tem 15 anos de idade, e acabou agora de ser mãe de um pequeno boneco, o seu primeiro filho. Como é alta conseguiu esconder a gravidez do mundo durante bastante tempo. Apenas no terceiro trimestre da gravidez a situação se tornou excessivamente evidente para que a família desse pelo sucedido. Assim, teve duas consultas médicas, fez apenas uma ecografia, e fez uma vez só as análises laboratoriais de rotina da gravidez. Felizmente nada de especial aconteceu. O bebé nasceu bem, está perfeitamente saudável, e toda a embrulhada acabou por se resolver da melhor maneira. A embrulhada que se segue é saber se a Vanessa, que ganhou o epíteto de mãe-adolescente, é capaz de educar convenientemente o bebé... Felizmente para os dois, a Vanessa estabeleceu uma boa relação com ele. Sorri, deliciada, quando lhe mostro que o seu bebé já sabe "andar". Pode ser que os instintos lhe incutam a responsabilidade que ela precisa de ter... Oxalá!
Na cama 4 está a Luísa. Tem o dobro da idade da Vanessa, mas uma experiência "gestacional" semelhante. O bebé que, atrapalhado, tenta perceber como se mama, é o primeiro filho da Luísa. É um bebé de ouro, ou seja, é o resultado de vários anos de tratamentos para a infertilidade. Provavelmente poucos filhos são tão desejados como os "bebés de ouro". A mãe sorri, quando uso a expressão, diz-me que de facto vale o seu peso em ouro. Teve 10 consultas médicas da gravidez, fez 8 ecografias e fez as análises de rotina dos três trimestres da gravidez. Felizmente teve a mesma sorte da Vanessa, tudo correu bem na gravidez e o bebé está óptimo. A Luísa sorri, aliviada, quando lho digo depois de "virar a criança do avesso".
Deixei a Luísa e a Vanessa entretidas a dar de mamar aos seus rebentos, ambos "trapalhões" na altura de mamar.
E assim acabei o meu estágio no Puerpério, na próxima segunda-feira vou para a Enfermaria de Pediatria. Não sem antes fazer um "banquinho" de Domingo... Ah, como vai ser bom estar fora das filas para o Algarve... Ou não?...
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Hospital
segunda-feira, 25 de julho de 2005
Maldades
Tenho estado a trabalhar no Puerpério. O Puerpério é o serviço onde são internadas as recém-mamãs e os seus recém-nascidos antes de terem alta do hospital. E, uma vez que estou a estagiar na Pediatria, o meu trabalho consiste em observar recém-nascidos. Aquelas que já são mães sabem bem do que falo... Eu sou aquele que diz "Bom dia mãe" e depois desata a virar o crianço do avesso, a faz berrar em plenos pulmões, ausculta, vira, palpa, vira, tira a fralda, estica as pernas, encolhe as pernas, põe a fralda, senta, deita, vira... Enfim... O objectivo é saber se está tudo bem (dentro de certos limites, claro) com o bebé. E depois, quando algo não está perfeito, tenho feito algo que julgei nunca vir a ser capaz: tirar sangue a recém-nascidos... De facto não é nada fácil, não só em termos emocionais mas especialmente do ponto de vista técnico. Naturalmente, as veias das criaturas são à sua medida: minúsculas. Mas enfim, com prática tudo se faz.
Daqui se explica o meu silêncio nos últimos tempos: tenho apanhado quase só crianças saudáveis - uma excelente vertente da Pediatria. E ainda bem que é assim...
Daqui se explica o meu silêncio nos últimos tempos: tenho apanhado quase só crianças saudáveis - uma excelente vertente da Pediatria. E ainda bem que é assim...
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Hospital
terça-feira, 19 de julho de 2005
Gatos e Melancias
Como já devem ter percebido, isto tem andado um bocado parado por estas bandas... Enfim, alturas complicadas! Mas eu volto já...
Fiquem com o (único?) gato que gosta de mordiscar melancia. Será que lhe devia chamar Magali?
Fiquem com o (único?) gato que gosta de mordiscar melancia. Será que lhe devia chamar Magali?
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Fotos
sábado, 9 de julho de 2005
Viroses
Em resposta a um desafio da Sílvia na última caixa de comentários, decidi comentar o seu post "Lá vai uma, lá vão duas, três viroses a voar...". Mas, e porque acho que esta resposta é capaz de ser útil a muita gente, decidi comenta-la em forma de post. E também porque isto faz parte do dia a dia da Urgência de Pediatria, onde estive anteontem a diagnosticar viroses.
As crianças infectam-se muitas vezes. Que o digam os pais das crianças, que passam a vida a correr para o médico (nos consultórios, SAPs e Urgências Hospitalares) com as "espirrantes" e "tossidoras" crianças. Essas infecções ocorrem mais frequentemente quando a criança anda no infantário, na ama, ou simplesmente está frequentemente em contacto com irmãos ou primos em idade escolar.
Está, hoje em dia, generalizado na sociedade portuguesa que os antibióticos são a panaceia de todas as infecções. No entanto, convém explicar que os antibióticos só resolvem as infecções bacterianas, e aos vírus não fazem nem cócegas. Mais importante ainda do que explicar isto, é essencial que se perceba que a grande maioria das infecções nas crianças (e é de facto uma GRANDE maioria) são infecções virais. Os vírus que as provocam são vários: o Vírus Sincicial Respiratório, o Echovírus, Vírus Coxsackie de várias estirpes, Enterovírus, Adenovírus, etc, etc... Por outro lado, é importante também perceber que a ENORME maioria destas infecções virais são infecções sem quaisquer repercussões graves e autolimitadas (o que quer dizer que não há nada que possamos fazer para diminuir a duração da doença, podemos apenas diminuir os seus sintomas com anti-inflamatórios, anti-histamínicos, etc, quando justificável). E por esse motivo, não nos interessa saber qual é o vírus que provoca a infecção: qualquer que ele seja, há uma muito grande probabilidade que não tenha repercussões importantes que necessitemos de controlar de outra forma (desde aerossóis a intubação - mas não antibióticos).
Não se interprete do texto acima que os antibióticos nunca devem ser usados... Devem ser usados, sim, mas nas infecções bacterianas! E há muitos sintomas contados pelos pais e pelas crianças, e sinais obtidos na observação da criança que mostram se a infecção é viral ou bacteriana... Dessa forma, é possível com segurança decidir quando dar ou não um antibiótico. Naturalmente, há infecções bacterianas que nas fases mais precoces da sua apresentação parecem muito semelhantes às infecções virais. E são diagnosticadas, numa primeira observação, como tal. E é por isso que os médicos avisam que, caso a criança não melhore em 4/5 dias ou apresente algum dos sinais de alarme (que dependem da localização da infecção) a devem levar novamente ao médico. E aí, talvez as evidências da infecção bacteriana estejam presentes (ou uma infecção previamente viral sobre-infecte com uma bactéria) e seja necessário o antibiótico.
Por outro lado, há também infecções virais graves, mas que são em regra tão raras que costumam aparecer na televisão... Essas sim, podem justificar a identificação do vírus.
Por isso, um conselho a todos os pais que me lêem: não corram de médico em médico à procura daquele que "pelo sim pelo não" receita antibiótico (e, mais grave ainda, não peçam antibióticos na farmácia sem receita...). Os antibióticos não são livres de efeitos adversos, não são fármacos que se dêem de ânimo leve a uma criança pelas consequências nefastas que podem trazer. E, já agora, aquele que receita/cede o antibiótico sem indicação para tal está a cometer um erro, seja o médico ou o farmacêutico/técnico de farmácia...
As crianças infectam-se muitas vezes. Que o digam os pais das crianças, que passam a vida a correr para o médico (nos consultórios, SAPs e Urgências Hospitalares) com as "espirrantes" e "tossidoras" crianças. Essas infecções ocorrem mais frequentemente quando a criança anda no infantário, na ama, ou simplesmente está frequentemente em contacto com irmãos ou primos em idade escolar.
Está, hoje em dia, generalizado na sociedade portuguesa que os antibióticos são a panaceia de todas as infecções. No entanto, convém explicar que os antibióticos só resolvem as infecções bacterianas, e aos vírus não fazem nem cócegas. Mais importante ainda do que explicar isto, é essencial que se perceba que a grande maioria das infecções nas crianças (e é de facto uma GRANDE maioria) são infecções virais. Os vírus que as provocam são vários: o Vírus Sincicial Respiratório, o Echovírus, Vírus Coxsackie de várias estirpes, Enterovírus, Adenovírus, etc, etc... Por outro lado, é importante também perceber que a ENORME maioria destas infecções virais são infecções sem quaisquer repercussões graves e autolimitadas (o que quer dizer que não há nada que possamos fazer para diminuir a duração da doença, podemos apenas diminuir os seus sintomas com anti-inflamatórios, anti-histamínicos, etc, quando justificável). E por esse motivo, não nos interessa saber qual é o vírus que provoca a infecção: qualquer que ele seja, há uma muito grande probabilidade que não tenha repercussões importantes que necessitemos de controlar de outra forma (desde aerossóis a intubação - mas não antibióticos).
Não se interprete do texto acima que os antibióticos nunca devem ser usados... Devem ser usados, sim, mas nas infecções bacterianas! E há muitos sintomas contados pelos pais e pelas crianças, e sinais obtidos na observação da criança que mostram se a infecção é viral ou bacteriana... Dessa forma, é possível com segurança decidir quando dar ou não um antibiótico. Naturalmente, há infecções bacterianas que nas fases mais precoces da sua apresentação parecem muito semelhantes às infecções virais. E são diagnosticadas, numa primeira observação, como tal. E é por isso que os médicos avisam que, caso a criança não melhore em 4/5 dias ou apresente algum dos sinais de alarme (que dependem da localização da infecção) a devem levar novamente ao médico. E aí, talvez as evidências da infecção bacteriana estejam presentes (ou uma infecção previamente viral sobre-infecte com uma bactéria) e seja necessário o antibiótico.
Por outro lado, há também infecções virais graves, mas que são em regra tão raras que costumam aparecer na televisão... Essas sim, podem justificar a identificação do vírus.
Por isso, um conselho a todos os pais que me lêem: não corram de médico em médico à procura daquele que "pelo sim pelo não" receita antibiótico (e, mais grave ainda, não peçam antibióticos na farmácia sem receita...). Os antibióticos não são livres de efeitos adversos, não são fármacos que se dêem de ânimo leve a uma criança pelas consequências nefastas que podem trazer. E, já agora, aquele que receita/cede o antibiótico sem indicação para tal está a cometer um erro, seja o médico ou o farmacêutico/técnico de farmácia...
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terça-feira, 5 de julho de 2005
Pediatria
Comecei esta semana um novo estágio. Acabei o estágio de Cirurgia Geral, e iniciei o de Pediatria. Gosto muito de Pediatria (especialidade que aliás considero como uma opção a ponderar seriamente), mas Pediatria é uma especialidade muito complexa. Não se trata apenas de ver bebés bonitos e putos reguilas... A doença é, na criança, um evento terrível. Custa muito lidar com crianças doentes, especialmente quando estão doentes a sério. Não se trata apenas de ranhocas e vómitos (essa é a parte fácil), mas vê-los verdadeiramente doentes, a sofrer, não é para qualquer um. Será para mim? Não sei. O tempo o dirá.
O João é um miúdo muito bem disposto. Tem 10 anos, e veio hoje à Consulta de Pediatria do Hospital. Sorriu bastante ao longo da consulta, apercebe-se muito bem de tudo o que o rodeia. A avó, que cuida dele, é uma pessoa extremamente dedicada. Percebe-se, pela higiene e condição física do João. Conta-nos que (e não podemos deixar de sorrir destas pequenas coisas) o João se dá muito bem na escolinha dos "deficientes a motor". Tem aprendido, com a ajuda preciosa de um computador especial, muita coisa. Está no 5º ano de escolaridade, graças a esse computador. Apesar de todas as suas dificuldades, e o seu défice motor poderia ter comprometido seriamente a sua aprendizagem, conserva no interior daquele corpo deformado uma mente lúcida e brincalhona. Sorri de lado, com ar malandro, quando a avó conta que as "meninas lá da escola" se derretem todas com ele. O João tem Paralisia Cerebral. Trata-se de uma situação cujas causas nem sempre são aparentes, e podem ser diversas. No caso do João, compreende-se bem o que levou à sua situação. A mãe, toxicodependente heroinómana, consumiu drogas durante a gravidez. Isto levou a um atraso de crescimento intra-uterino e a outras complicações que, no final, resultaram na sua Paralisia Cerebral. Vale-lhe a avó. E entretanto vai crescendo, ajudado por homens e máquinas. Só se desvanece o seu sorriso quando a avó se pergunta, em voz alta, o que será dele quando ela morrer. Conta-nos ainda que o João encontrou a sua solução: irá com ela. Brincamos, dizendo que não é bem o mesmo que apanhar o autocarro... Mas o que o futuro trará para o João é incerto... No entretanto, vale-lhe a avó. E muito bem.
O João é um miúdo muito bem disposto. Tem 10 anos, e veio hoje à Consulta de Pediatria do Hospital. Sorriu bastante ao longo da consulta, apercebe-se muito bem de tudo o que o rodeia. A avó, que cuida dele, é uma pessoa extremamente dedicada. Percebe-se, pela higiene e condição física do João. Conta-nos que (e não podemos deixar de sorrir destas pequenas coisas) o João se dá muito bem na escolinha dos "deficientes a motor". Tem aprendido, com a ajuda preciosa de um computador especial, muita coisa. Está no 5º ano de escolaridade, graças a esse computador. Apesar de todas as suas dificuldades, e o seu défice motor poderia ter comprometido seriamente a sua aprendizagem, conserva no interior daquele corpo deformado uma mente lúcida e brincalhona. Sorri de lado, com ar malandro, quando a avó conta que as "meninas lá da escola" se derretem todas com ele. O João tem Paralisia Cerebral. Trata-se de uma situação cujas causas nem sempre são aparentes, e podem ser diversas. No caso do João, compreende-se bem o que levou à sua situação. A mãe, toxicodependente heroinómana, consumiu drogas durante a gravidez. Isto levou a um atraso de crescimento intra-uterino e a outras complicações que, no final, resultaram na sua Paralisia Cerebral. Vale-lhe a avó. E entretanto vai crescendo, ajudado por homens e máquinas. Só se desvanece o seu sorriso quando a avó se pergunta, em voz alta, o que será dele quando ela morrer. Conta-nos ainda que o João encontrou a sua solução: irá com ela. Brincamos, dizendo que não é bem o mesmo que apanhar o autocarro... Mas o que o futuro trará para o João é incerto... No entretanto, vale-lhe a avó. E muito bem.
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sexta-feira, 1 de julho de 2005
A cor das avestruzes modernas
É sempre bom descobrir amigos que andam a escrever pela blogosfera!
Apesar de eu não gostar de política, recomendo-vos uma visita a este meu amigo, que disserta sobre a cor dos vários animais (irracionais?) da política, e sobre outras coisas mais. Vão lá, nem que seja pelo seu excelente gosto musical.
Apesar de eu não gostar de política, recomendo-vos uma visita a este meu amigo, que disserta sobre a cor dos vários animais (irracionais?) da política, e sobre outras coisas mais. Vão lá, nem que seja pelo seu excelente gosto musical.
sábado, 25 de junho de 2005
Um dia complicado
Esta quinta-feira o mundo esteve virado do avesso. De todos os casos que vi na Urgência, poucos foram os casos "normais"... Mas dois foram particularmente marcantes.
O Sr. Silva, de 60 anos, estava extraordinariamente triste quando se tentou matar. Afinal a mulher dele tinha saido de casa, levando consigo todo o dinheiro e pertences mais valiosos do casal. Esta foi, pelo menos, a história que contou. Mas se de facto foi ele próprio que inflingiu o golpe, foi concerteza num momento de desespero extremo. Afinal não é fácil tomar a decisão de espetar uma faca bem afiada em direcção ao coração. Mas as circunstâncias em que aconteceu não nos preocuparam muito. O que nos preocupou foi o facto de parecer haver lesão de um vaso importante, já que, no Raio X, onde devia estar o pulmão esquerdo estava muito, muito sangue. Depois de estabilizado ao máximo o doente, tentou-se perceber de facto que tipo de lesão havia. Não parecia ser extraordinariamente grave (como uma ruptura da parede do coração ou de um vaso grande como a aorta), mas após alguma discussão clínica e alguns exames decidiu-se avançar para o bloco operatório. Feita a toracotomia (abertura do tórax) confirmou-se a presença de muito sangue, mas felimente a lesão era simples de reparar. Era um vaso intercostal (vasos que "correm" entre as costelas) que estava lesado, e não havia lesão do pulmão, coração ou grandes vasos. Resolveu-se o problema, causado por uma pequena facada, com uma enorme facada.
O Sr. Josué, por seu lado, não via a mulher há muito tempo. Tinha falecido há alguns anos. Também não via há muito tempo a restante família, já que lhe restava apenas uma sobrinha a viver no estrangeiro. Talvez por isso, ou porque se lembrasse de tantas pessoas já falecidas, disparou. Encostou a arma ao ouvido direito e disparou. As funcionárias do lar onde o Sr. Josué vivia, assustadas pelo ruído e por encontrarem o Sr. Josué, o velhote do quarto 15 - de 83 anos -, a deitar sangue do ouvido com uma arma no chão ao seu lado - um revólver de calibre médio - chamaram os bombeiros. Os bombeiros vieram rapidamente, e levaram-no para o Serviço de Urgência.
O Sr. Josué vinha consciente. A única lesão que se podia observar era o sangue a escorrer do ouvido direito, em pequena quantidade. O doente estava consciente, as pupilas (a "parte preta" dos olhos) estavam simétricas e reactivas à luz, e não havia nenhuma evidência de lesão grave cerebral. Não tinhamos sequer a certeza de de facto a bala ter entrado (o estoiro do disparo ou uma queda a seguir ao disparo podiam ser suficientes para deitar sangue do ouvido) até observarmos com mais cuidado. Observava-se o orifício de entrada da bala, e restos de pólvora em torno do mesmo. Enquanto o observávamos olhou para nós e disse, com uma voz débil e tremida: "Acabem comigo, por favor...".
Fomos com ele ao Rx e à TAC, para percebermos onde estava a bala alojada. As imagens mostravam a bala fora da cavidade craneana, virada para baixo, perto de várias estruturas nobres do pescoço. A bala não tinha sido capaz de atravessar o osso temporal - nomeadamente uma parte do osso chamada rochedo (nunca esse nome tinha sido tão apropriado) - e tinha feito ricochete em direcção ao pescoço. Pouco depois a ORL (Otorrinolaringologia) levou o Sr. Josué para o Bloco Operatório e removeu a bala, depois de constatar que não havia lesões importantes para além do ouvido em si.
É difícil saber dizer se o que fizémos por estas pessoas foi bom ou mau... Até certo ponto, a nossa tarefa é lutar pela vida, mas por outro lado não é difícil entender o desespero das pessoas que cometem estes actos... Podemos sempre acreditar que seremos capazes de as convencer a posteriori a lutar pela vida... Mas será sempre assim? Nao há regras, não há duas histórias iguais. Mas o nosso papel não é avaliar justeza daquela decisão. Cabe-nos somente lutar para dar uma segunda oportunidade a quem quis morrer. Se fazemos bem ou mal, enfim, não nos cabe a nós decidir.
O Sr. Silva, de 60 anos, estava extraordinariamente triste quando se tentou matar. Afinal a mulher dele tinha saido de casa, levando consigo todo o dinheiro e pertences mais valiosos do casal. Esta foi, pelo menos, a história que contou. Mas se de facto foi ele próprio que inflingiu o golpe, foi concerteza num momento de desespero extremo. Afinal não é fácil tomar a decisão de espetar uma faca bem afiada em direcção ao coração. Mas as circunstâncias em que aconteceu não nos preocuparam muito. O que nos preocupou foi o facto de parecer haver lesão de um vaso importante, já que, no Raio X, onde devia estar o pulmão esquerdo estava muito, muito sangue. Depois de estabilizado ao máximo o doente, tentou-se perceber de facto que tipo de lesão havia. Não parecia ser extraordinariamente grave (como uma ruptura da parede do coração ou de um vaso grande como a aorta), mas após alguma discussão clínica e alguns exames decidiu-se avançar para o bloco operatório. Feita a toracotomia (abertura do tórax) confirmou-se a presença de muito sangue, mas felimente a lesão era simples de reparar. Era um vaso intercostal (vasos que "correm" entre as costelas) que estava lesado, e não havia lesão do pulmão, coração ou grandes vasos. Resolveu-se o problema, causado por uma pequena facada, com uma enorme facada.
O Sr. Josué, por seu lado, não via a mulher há muito tempo. Tinha falecido há alguns anos. Também não via há muito tempo a restante família, já que lhe restava apenas uma sobrinha a viver no estrangeiro. Talvez por isso, ou porque se lembrasse de tantas pessoas já falecidas, disparou. Encostou a arma ao ouvido direito e disparou. As funcionárias do lar onde o Sr. Josué vivia, assustadas pelo ruído e por encontrarem o Sr. Josué, o velhote do quarto 15 - de 83 anos -, a deitar sangue do ouvido com uma arma no chão ao seu lado - um revólver de calibre médio - chamaram os bombeiros. Os bombeiros vieram rapidamente, e levaram-no para o Serviço de Urgência.
O Sr. Josué vinha consciente. A única lesão que se podia observar era o sangue a escorrer do ouvido direito, em pequena quantidade. O doente estava consciente, as pupilas (a "parte preta" dos olhos) estavam simétricas e reactivas à luz, e não havia nenhuma evidência de lesão grave cerebral. Não tinhamos sequer a certeza de de facto a bala ter entrado (o estoiro do disparo ou uma queda a seguir ao disparo podiam ser suficientes para deitar sangue do ouvido) até observarmos com mais cuidado. Observava-se o orifício de entrada da bala, e restos de pólvora em torno do mesmo. Enquanto o observávamos olhou para nós e disse, com uma voz débil e tremida: "Acabem comigo, por favor...".
Fomos com ele ao Rx e à TAC, para percebermos onde estava a bala alojada. As imagens mostravam a bala fora da cavidade craneana, virada para baixo, perto de várias estruturas nobres do pescoço. A bala não tinha sido capaz de atravessar o osso temporal - nomeadamente uma parte do osso chamada rochedo (nunca esse nome tinha sido tão apropriado) - e tinha feito ricochete em direcção ao pescoço. Pouco depois a ORL (Otorrinolaringologia) levou o Sr. Josué para o Bloco Operatório e removeu a bala, depois de constatar que não havia lesões importantes para além do ouvido em si.
É difícil saber dizer se o que fizémos por estas pessoas foi bom ou mau... Até certo ponto, a nossa tarefa é lutar pela vida, mas por outro lado não é difícil entender o desespero das pessoas que cometem estes actos... Podemos sempre acreditar que seremos capazes de as convencer a posteriori a lutar pela vida... Mas será sempre assim? Nao há regras, não há duas histórias iguais. Mas o nosso papel não é avaliar justeza daquela decisão. Cabe-nos somente lutar para dar uma segunda oportunidade a quem quis morrer. Se fazemos bem ou mal, enfim, não nos cabe a nós decidir.
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terça-feira, 21 de junho de 2005
Um mês depois
Venho-vos contar o que se seguiu a este e este posts. A D. Otília está, caramba, ainda internada no meu serviço. passou-se um mês e 10 dias desde que vos falei nela.
A decisão que estava pendente foi tomada. Foi feita uma cirurgia complicadíssima - ressecção do bloco duodenopancreático (retira-se o duodeno e o pâncreas na totalidade, que são órgãos de difícil acesso e manejo). A cirurgia correu bem. Não houve complicações de maior durante a cirurgia, e toda a complicada reconstrução do trânsito do intestino e da bílis ficou aparentemente funcionante.
No entanto, depois da cirurgia as coisas complicaram-se bastante. A anastomose gastro-jejunal feita (ligação do estômago ao intestino) não deixava aparentemente passar o conteúdo do estômago para baixo. Assumiu-se que se tratava de edema ("inchaço") naquela região da anastomose, e aguardou-se a resolução por si do problema (quando "desinchasse"). Entretanto ficou a ser alimentada por um catéter central ("ligação directa" às grandes veias), aguardando a evolução da situação. No entanto, e passado algum tempo, a situação parecia não se ter resolvido, e muito pouco do conteúdo do estômago passava para baixo. Vários exames e tentativas de solução do problema por endoscopia foram feitas, e nada. Entretanto, e fruto do internamento prolongado e das manobras invasivas feitas, surgiram mais complicações: infecção respiratória, infecção do catéter central, etc... O tempo ia passando, e nada se resolvia, só complicava. Passado um mês da primeira cirurgia, a D. Otília regressou ao Bloco Operatório. Desta vez para fazer uma jejunostomia - ligação do intestino à pele, para poder dar os alimentos por esse orifício...
Neste momento a D. Otília não levanta os olhos do chão. Está deprimidíssima, e com razões para isso... Ontem dizia-me: "Na véspera de ser internada fui sozinha á praça, andei quatro quilómetros a pé. Hoje não consegui ir á casa de banho sozinha... Maldita doença.". Vou-lhe dando os sorrisos que tenho para ela, mas pouco posso dizer que a anime. Ontem começou com falta de ar, os exames mostram que provavelmente terá um abcesso junto ao fígado que dificulta os movimentos respiratórios. Mais uma complicação das cirurgias... Será esta a última complicação? Poderá a D. Otília voltar a alimentar-se pela boca, para se fechar a jejunostomia? O tempo o dirá. Dirá mais ainda: será que toda a cirurgia valeu a pena e que depois de todo este sofrimento o cancro do pâncreas que gerou todo este caos não volta a dar sinais de "vida"? O tempo o dirá... Mas eu é que já não sei o que hei-de dizer à D. Otília...
A decisão que estava pendente foi tomada. Foi feita uma cirurgia complicadíssima - ressecção do bloco duodenopancreático (retira-se o duodeno e o pâncreas na totalidade, que são órgãos de difícil acesso e manejo). A cirurgia correu bem. Não houve complicações de maior durante a cirurgia, e toda a complicada reconstrução do trânsito do intestino e da bílis ficou aparentemente funcionante.
No entanto, depois da cirurgia as coisas complicaram-se bastante. A anastomose gastro-jejunal feita (ligação do estômago ao intestino) não deixava aparentemente passar o conteúdo do estômago para baixo. Assumiu-se que se tratava de edema ("inchaço") naquela região da anastomose, e aguardou-se a resolução por si do problema (quando "desinchasse"). Entretanto ficou a ser alimentada por um catéter central ("ligação directa" às grandes veias), aguardando a evolução da situação. No entanto, e passado algum tempo, a situação parecia não se ter resolvido, e muito pouco do conteúdo do estômago passava para baixo. Vários exames e tentativas de solução do problema por endoscopia foram feitas, e nada. Entretanto, e fruto do internamento prolongado e das manobras invasivas feitas, surgiram mais complicações: infecção respiratória, infecção do catéter central, etc... O tempo ia passando, e nada se resolvia, só complicava. Passado um mês da primeira cirurgia, a D. Otília regressou ao Bloco Operatório. Desta vez para fazer uma jejunostomia - ligação do intestino à pele, para poder dar os alimentos por esse orifício...
Neste momento a D. Otília não levanta os olhos do chão. Está deprimidíssima, e com razões para isso... Ontem dizia-me: "Na véspera de ser internada fui sozinha á praça, andei quatro quilómetros a pé. Hoje não consegui ir á casa de banho sozinha... Maldita doença.". Vou-lhe dando os sorrisos que tenho para ela, mas pouco posso dizer que a anime. Ontem começou com falta de ar, os exames mostram que provavelmente terá um abcesso junto ao fígado que dificulta os movimentos respiratórios. Mais uma complicação das cirurgias... Será esta a última complicação? Poderá a D. Otília voltar a alimentar-se pela boca, para se fechar a jejunostomia? O tempo o dirá. Dirá mais ainda: será que toda a cirurgia valeu a pena e que depois de todo este sofrimento o cancro do pâncreas que gerou todo este caos não volta a dar sinais de "vida"? O tempo o dirá... Mas eu é que já não sei o que hei-de dizer à D. Otília...
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Hospital
sábado, 18 de junho de 2005
A Peste Amarela
Esta pestinha tem-me impedido de namorar, estudar, comer, dormir, escrever no blog, etc... A sorte destes bichos é que um tipo se afeiçoa a eles!! ;-)
Mais uma do Gil.
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sábado, 11 de junho de 2005
Visita médica
A visita médica é uma coisa muito importante: consiste num grupo de médicos (todos da mesma equipa, desde o chefe até ao interno ou aluno de medicina) a passar revista a todos os doentes internados ao cargo dessa equipa. Discutem-se os casos, analisam-se os exames complementares de diagnóstico, programam-se acções diagnósticas e terapêuticas, etc. No fundo, o médico que está mais próximo desse doente apresenta e discute o caso com os restantes colegas, que - e como 6 ou 7 cabeças funcionam melhor que uma - ajudam a colocar hipóteses e sugerem linhas de actuação. Há várias modalidades de visita, há quem a faça à cabeceira dos doentes (o grupo desloca-se em massa de cama em cama e discute os casos em frente ao doente, havendo oportunidade para os re-observar e fazer perguntas aos doentes) e há a visita em estilo de reunião (todos sentados em volta de uma mesa com os processos clínicos na mão).
Há vantagens e desvantagens em ambos os métodos... Se por um lado a visita à cabeceira tem a vantagem de poder fornecer dados novos da observação e conversa com o doente, por outro lado é uma situação de grande ansiedade para o doente. O jargão médico acentua-se, se as situações ainda não estão bem esclarecidas usam-se termos evasivos, e o doente perscruta as palavras e os olhares dos médicos tentando entender alguma coisa - já que estão, caramba, a falar dele. Usam-se frases como "O Sr. José tem uma lesão OE no lobo hepático esquerdo, secundária a uma neoformação da pequena curvatura estadiada localmente em T4", que significa que o Sr. José tem um cancro do estômago gravíssimo com metástases no fígado que já não se pode operar. Se, por outro lado, na visita em estilo de reunião não existe este componente de ansiedade para o doente, por outro lado os casos podem não ser tão bem explorados e discutidos...
Enfim, com as vantagens e desvantagens inerentes a cada um dos métodos, a visita médica é importantíssima. Para quem assiste do outro lado deve ser, imagino, uma situação aterradora... Ver um bando de batas brancas em "rebanho" passeando-se em bloco pelo serviço - e por vezes com algumas conversas paralelas pelo meio, enfim - falando dos nossos próprios casos clínicos... Mas é por isso mesmo que falo dela aqui. Para a tentar desmitificar.
Há vantagens e desvantagens em ambos os métodos... Se por um lado a visita à cabeceira tem a vantagem de poder fornecer dados novos da observação e conversa com o doente, por outro lado é uma situação de grande ansiedade para o doente. O jargão médico acentua-se, se as situações ainda não estão bem esclarecidas usam-se termos evasivos, e o doente perscruta as palavras e os olhares dos médicos tentando entender alguma coisa - já que estão, caramba, a falar dele. Usam-se frases como "O Sr. José tem uma lesão OE no lobo hepático esquerdo, secundária a uma neoformação da pequena curvatura estadiada localmente em T4", que significa que o Sr. José tem um cancro do estômago gravíssimo com metástases no fígado que já não se pode operar. Se, por outro lado, na visita em estilo de reunião não existe este componente de ansiedade para o doente, por outro lado os casos podem não ser tão bem explorados e discutidos...
Enfim, com as vantagens e desvantagens inerentes a cada um dos métodos, a visita médica é importantíssima. Para quem assiste do outro lado deve ser, imagino, uma situação aterradora... Ver um bando de batas brancas em "rebanho" passeando-se em bloco pelo serviço - e por vezes com algumas conversas paralelas pelo meio, enfim - falando dos nossos próprios casos clínicos... Mas é por isso mesmo que falo dela aqui. Para a tentar desmitificar.
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Hospital
quarta-feira, 8 de junho de 2005
Fármacos milagrosos
O Sr. José foi submetido uma cirurgia complicada. Não que uma colecistectomia (retirar a vesícula biliar) seja à partida uma cirurgia difícil, não o é. Mas naquele caso as múltiplas colecistites (infecções da vesícula) tinham lesado os tecidos circundantes de tal maneira que tinham imensas aderências e fibroses que dificultaram o acesso aos cirurgiões. Depois de muito batalhar contra todas as dificuldades que se colocaram, finalmente conseguiram remover a vesícula biliar. Estava cheia de cálculos ("pedras").
Foi para uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), não só pelas complicações da cirurgia mas também porque tinha muitas doenças de base que o tornavam num doente instável. Tinha uma fibrilhação auricular (doença em que as aurículas do coração batem descoordenadamente e sem eficácia), já tinha tido um enfarte, tinha DPOC (doença pulmonar obstructiva crónica, uma doença em que os pulmões não funcionam tão bem como deviam, muitas vezes por causa do tabaco), era diabético, etc... Na Unidade de Cuidados Intensivos, e no dia seguinte à cirurgia, começou a "cair". A tensão arterial baixou, perdeu os sentidos, e as análises pedidas de urgência mostraram que estava a perder sangue. Foi novamente "a voar" para o Bloco Operatório, onde se observou que um pequeno vaso no local onde antes tinha estado a vesícula tinha começado a sangrar abundantemente. Reparou-se o dito vaso, e reenviou-se o Sr. José para a UCI.
Oito dias passados estava finalmente estável o suficiente para ser transferido para a enfermaria de Cirurgia Geral, nomeadamente para a Unidade de Cuidados Intermédios. Pouco depois de ter chegado aos Intermédios e ser ligado aos monitores começou a aumentar a frequência cardíaca. As enfermeiras chamaram-nos, a mim e a uma outra médica. Verificámos que o coração batia cada vez mais depressa e de forma completamente irregular (característico da fibrilhação auricular), com batimentos anormais (extrassístoles ventriculares) pelo meio. O Sr. José estava a suar muito, e queixava-se de dor no peito. Podia tratar-se de muita coisa, entre as quais um enfarte, um tromboembolismo pulmonar ou simplesmente uma desregulação da resposta dos ventrículos à fibrilhação auricular. Feitas meia dúzia de manobras e administrados os fármacos correctos, a situação não parecia melhorar. Aliás, piorou um pouco quando a tensão arterial começou a descer... No entanto, e pedidos exames laboratoriais vários no sentido de entender o que se estava a passar, aos poucos a frequência começou a voltar ao normal (acção dos fármacos administrados), a tensão arterial regressou ao normal, e a dor desapareceu. Tinhamos conseguido reverter aquela situação. O que a nossa intuição nos disse os exames laboratoriais confirmaram: não se tratava de nenhuma situação muito grave.
Cinco minutos depois o Sr. José entrou num estado um pouco curioso. Exclamava alto e a bom som como se sentia bem, esbracejava agradecimentos a todos os que tinham presenciado aquela situação, e começou a contar histórias do seu passado... De cinco em cinco segundos exclamava que se sentia "porreiro", que nós eramos fabulosos, e que a vida era bela. Na manhã seguinte, quando cheguei ao serviço, o Sr. José continuava a dissertar sobre a vida com um sorriso nos lábios. Falava sobre tudo com todas as pessoas que passavam, e destilava bom humor. Curioso observar como a proximidade da morte dá a algumas pessoas tanta vontade de viver!
Foi para uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), não só pelas complicações da cirurgia mas também porque tinha muitas doenças de base que o tornavam num doente instável. Tinha uma fibrilhação auricular (doença em que as aurículas do coração batem descoordenadamente e sem eficácia), já tinha tido um enfarte, tinha DPOC (doença pulmonar obstructiva crónica, uma doença em que os pulmões não funcionam tão bem como deviam, muitas vezes por causa do tabaco), era diabético, etc... Na Unidade de Cuidados Intensivos, e no dia seguinte à cirurgia, começou a "cair". A tensão arterial baixou, perdeu os sentidos, e as análises pedidas de urgência mostraram que estava a perder sangue. Foi novamente "a voar" para o Bloco Operatório, onde se observou que um pequeno vaso no local onde antes tinha estado a vesícula tinha começado a sangrar abundantemente. Reparou-se o dito vaso, e reenviou-se o Sr. José para a UCI.
Oito dias passados estava finalmente estável o suficiente para ser transferido para a enfermaria de Cirurgia Geral, nomeadamente para a Unidade de Cuidados Intermédios. Pouco depois de ter chegado aos Intermédios e ser ligado aos monitores começou a aumentar a frequência cardíaca. As enfermeiras chamaram-nos, a mim e a uma outra médica. Verificámos que o coração batia cada vez mais depressa e de forma completamente irregular (característico da fibrilhação auricular), com batimentos anormais (extrassístoles ventriculares) pelo meio. O Sr. José estava a suar muito, e queixava-se de dor no peito. Podia tratar-se de muita coisa, entre as quais um enfarte, um tromboembolismo pulmonar ou simplesmente uma desregulação da resposta dos ventrículos à fibrilhação auricular. Feitas meia dúzia de manobras e administrados os fármacos correctos, a situação não parecia melhorar. Aliás, piorou um pouco quando a tensão arterial começou a descer... No entanto, e pedidos exames laboratoriais vários no sentido de entender o que se estava a passar, aos poucos a frequência começou a voltar ao normal (acção dos fármacos administrados), a tensão arterial regressou ao normal, e a dor desapareceu. Tinhamos conseguido reverter aquela situação. O que a nossa intuição nos disse os exames laboratoriais confirmaram: não se tratava de nenhuma situação muito grave.
Cinco minutos depois o Sr. José entrou num estado um pouco curioso. Exclamava alto e a bom som como se sentia bem, esbracejava agradecimentos a todos os que tinham presenciado aquela situação, e começou a contar histórias do seu passado... De cinco em cinco segundos exclamava que se sentia "porreiro", que nós eramos fabulosos, e que a vida era bela. Na manhã seguinte, quando cheguei ao serviço, o Sr. José continuava a dissertar sobre a vida com um sorriso nos lábios. Falava sobre tudo com todas as pessoas que passavam, e destilava bom humor. Curioso observar como a proximidade da morte dá a algumas pessoas tanta vontade de viver!
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Hospital
segunda-feira, 6 de junho de 2005
sábado, 4 de junho de 2005
Carlos
"O Carlos é um menino de 10 anos que está aqui na Urgência Pediátrica. Tem uma ferida na mão que precisa de ser suturada". Foi mais ou menos assim que do outro lado do telefone pediram a ajuda da Cirurgia para suturar uma ferida numa criança. Como a Urgência de Pediatria tem a sua própria sala de Pequena Cirurgia, respondi: "Vamos para aí assim que despacharmos um doente que temos aqui".
Despachado o doente fomos para a Urgência Pediátrica. O Carlos estava com uma Auxiliar da escola, por quem tinha sido trazido, e tinha a mão toda entrapada. Meio na brincadeira fomos perguntando o que se tinha passado. O Carlos tinha tentado cortar umas canas no recreio da escola com um x-acto (é assim que se escreve?), e acabou por fazer um corte no dorso da mão. Estava bem disposto, e colaborava muito bem connosco. A ferida precisava de sutura, mas felizmente não tinha lesado nenhum tendão ou estrutura nobre. Discretas, cerca de quatro Auxiliares de Acção Médica aguardavam perto da porta para a eventualidade de ter que segurar nele para fazermos a sutura necessária. No entanto, em face da excelente colaboração do Carlos, não foi preciso. Fomos explicando todos os passos, especialmente avisando da picada da anestesia, e o Carlos ouvia todas as explicações com atenção. Assim que dissémos que já estavamos a acabar, o Carlos mudou de expressão. Ficou com um olhar mais assustado, e deixou escapar, envergonhado de morte, uma lágrima. Disse-lhe, com carinho, que chorasse, que diabo, se era de chorar que ele precisava! O alívio que sentiu pela aproximação do fim fez com que libertasse toda a tensão que estava a disfarçar, e deixou correr lágrimas que nem uma Madalena durante quinze segundos. Depois riu-se, comprometido, porque o apanhámos numa pequena "fraqueza" que só têm os valentes. Pouco depois levantou-se, novamente bem disposto, olhando para a ferida suturada com curiosidade. Deu-nos um sorriso enorme, e voltámos para o "mundo dos grandes".
Esta história simples deixou-me bem disposto, vá-se lá perceber!
Despachado o doente fomos para a Urgência Pediátrica. O Carlos estava com uma Auxiliar da escola, por quem tinha sido trazido, e tinha a mão toda entrapada. Meio na brincadeira fomos perguntando o que se tinha passado. O Carlos tinha tentado cortar umas canas no recreio da escola com um x-acto (é assim que se escreve?), e acabou por fazer um corte no dorso da mão. Estava bem disposto, e colaborava muito bem connosco. A ferida precisava de sutura, mas felizmente não tinha lesado nenhum tendão ou estrutura nobre. Discretas, cerca de quatro Auxiliares de Acção Médica aguardavam perto da porta para a eventualidade de ter que segurar nele para fazermos a sutura necessária. No entanto, em face da excelente colaboração do Carlos, não foi preciso. Fomos explicando todos os passos, especialmente avisando da picada da anestesia, e o Carlos ouvia todas as explicações com atenção. Assim que dissémos que já estavamos a acabar, o Carlos mudou de expressão. Ficou com um olhar mais assustado, e deixou escapar, envergonhado de morte, uma lágrima. Disse-lhe, com carinho, que chorasse, que diabo, se era de chorar que ele precisava! O alívio que sentiu pela aproximação do fim fez com que libertasse toda a tensão que estava a disfarçar, e deixou correr lágrimas que nem uma Madalena durante quinze segundos. Depois riu-se, comprometido, porque o apanhámos numa pequena "fraqueza" que só têm os valentes. Pouco depois levantou-se, novamente bem disposto, olhando para a ferida suturada com curiosidade. Deu-nos um sorriso enorme, e voltámos para o "mundo dos grandes".
Esta história simples deixou-me bem disposto, vá-se lá perceber!
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Hospital
quinta-feira, 26 de maio de 2005
Voltei!
Voltei!
O México é fabuloso, recomendo vivamente a Riviera Maia para umas férias de sonho! O único senão é ser tudo CARO como o raio... Mas enfim, sobrevive-se! Vale a pena!
Estes dias têm sido uma agitação, como devem compreender... Lavar roupa, cozinhar, arrumar mil e uma tralhas em casa... Enfim, vida de recém casado. As férias estão a acabar e convém preparar a vida (e a psique) para recomeçar a trabalhar depois de tempos (felizmente) tão conturbados... Segunda-feira prometo que volto à carga com as histórias da vida de um médico. Por agora só escaldões a sarar e peles a cair: façam o que eu digo, não façam o que eu faço - lema de vida da maior parte dos médicos.
A única história que trago: além do stress inerente a uma viagem de avião, convivi nesta viagem pela primeira vez com um novo stress: "Por favor que ninguém caia para o lado no avião, e se tiver que ser que haja mais médicos bordo...". Felizmente correu tudo bem!!
O México é fabuloso, recomendo vivamente a Riviera Maia para umas férias de sonho! O único senão é ser tudo CARO como o raio... Mas enfim, sobrevive-se! Vale a pena!
Estes dias têm sido uma agitação, como devem compreender... Lavar roupa, cozinhar, arrumar mil e uma tralhas em casa... Enfim, vida de recém casado. As férias estão a acabar e convém preparar a vida (e a psique) para recomeçar a trabalhar depois de tempos (felizmente) tão conturbados... Segunda-feira prometo que volto à carga com as histórias da vida de um médico. Por agora só escaldões a sarar e peles a cair: façam o que eu digo, não façam o que eu faço - lema de vida da maior parte dos médicos.
A única história que trago: além do stress inerente a uma viagem de avião, convivi nesta viagem pela primeira vez com um novo stress: "Por favor que ninguém caia para o lado no avião, e se tiver que ser que haja mais médicos bordo...". Felizmente correu tudo bem!!
sexta-feira, 13 de maio de 2005
Amanhã...
...é um dia muito especial para mim. Um dia que vou recordar para o resto da minha vida, certamente! Um dia, acima de tudo, feliz!
Vou gritar ao mundo que amo a minha "Maria Madalena", e vou-lhe dizer a ela que quero ficar ao lado dela, ama-la e respeita-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida!
E depois, caros visitantes, vou-me pirar para parte incerta com ela... Naturalmente que o blog sofrerá as agradáveis consequências e estará em branco durante pelo menos uma semaninha. Mas, felizmente, é a vida!!
Até lá, vão passeando por aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, etc... Eu regresso...
PS. para os menos perspicazes - vou-me casar...
Vou gritar ao mundo que amo a minha "Maria Madalena", e vou-lhe dizer a ela que quero ficar ao lado dela, ama-la e respeita-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida!
E depois, caros visitantes, vou-me pirar para parte incerta com ela... Naturalmente que o blog sofrerá as agradáveis consequências e estará em branco durante pelo menos uma semaninha. Mas, felizmente, é a vida!!
Até lá, vão passeando por aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, etc... Eu regresso...
PS. para os menos perspicazes - vou-me casar...
quinta-feira, 12 de maio de 2005
Malfadado órgão
Outra vez, inevitável, o pâncreas. Desta vez uma pancreatite aguda. Trata-se de uma inflamação grave do pâncreas, que pode ser provocada por cálculos ("pedras") ou por ingestão abusiva de álcool. O pâncreas inflamado começa a libertar enzimas (moléculas que servem para digerir os alimentos, algumas delas produzidas pelo pâncreas) de forma desorganizada que digerem o próprio pancreas, os órgãos vizinhos e alguns órgãos à distância. Uma senda quase imparável de auto-digestão do nosso organismo...
A D. Laura tinha 75 anos, e tinha entrado na Urgência há cerca de uma semana com uma forte dor lombar e abdominal. Foi-lhe diagnosticada uma pancreatite aguda, e as análises laboratoriais mostraram a presença de bastantes critérios de gravidade (ou seja, de mau prognóstico). Foi à partida encarada como uma doente com elevadas probabilidades de morrer (praticamente 100%...). No entanto, na semana que se seguiu a recuperação foi muito melhor que a esperada. As várias análises laboratoriais melhoraram, e já andávamos a dizer uns aos outros pelos corredores que "afinal parece que não tinhamos razão!". Mas o estado geral da D. Laura era mau, e estavamos perfeitamente cientes dos riscos.
Ontem de manhã fui o primeiro da minha equipa a chegar ao serviço. Estava eu a olhar para o quadro dos doentes, a ver se tinham entrado doentes novos, quando sou abordado por uma enfermeira: "O Dr. é da equipa do Dr X?". "Sou, sim", respondo. Explica-me: "A doente da cama 1 dos Intermédios parou. Está lá o Dr. Y, que estava no corredor.". Olhei para o quadro e identifiquei imediatamente a doente. Deu-me um friozinho na barriga, mas imediatamente me lembrei do péssimo prognóstico que tinha aquela doença. Fui para o quarto da doente (uma Unidade de Cuidados Intermédios), sem correr. Em frente à cama estava o Dr. Y, com a pasta da doente na mão. "Tinha muitos critérios de gravidade..." disse eu. Respondeu-me: "Pois, era o que eu estava aqui a ver..." - fechou a pasta e pousou-a aos pés da doente - "Não podemos fazer nada". Concordei. No monitor ainda se viam complexos que denotavam actividade eléctrica no coração, mas o coração já não estava a bater (situação que chamamos "dissociação electro-mecânica", que tem uma taxa de insucesso na reanimação muito elevada) nem os pulmões funcionavam. A enfermeira que tinha identificado a paragem retirou da cara o facies preocupado, e substituiu-o por um facies resignado. "Vamos só esperar aqui um bocadinho, está quase.", disse o Dr. Y. E ficámos a ver a actividade eléctrica desaparecer. O resto da minha equipa foi chegando aos poucos, e todos concordaram com a decisão de não-reanimação. Passado algum tempo verificou-se, então, o óbito. Causa de morte: pancreatite aguda.
E depois fomos beber café. Tinhamos 15 doentes vivos para tratar a seguir.
A D. Laura tinha 75 anos, e tinha entrado na Urgência há cerca de uma semana com uma forte dor lombar e abdominal. Foi-lhe diagnosticada uma pancreatite aguda, e as análises laboratoriais mostraram a presença de bastantes critérios de gravidade (ou seja, de mau prognóstico). Foi à partida encarada como uma doente com elevadas probabilidades de morrer (praticamente 100%...). No entanto, na semana que se seguiu a recuperação foi muito melhor que a esperada. As várias análises laboratoriais melhoraram, e já andávamos a dizer uns aos outros pelos corredores que "afinal parece que não tinhamos razão!". Mas o estado geral da D. Laura era mau, e estavamos perfeitamente cientes dos riscos.
Ontem de manhã fui o primeiro da minha equipa a chegar ao serviço. Estava eu a olhar para o quadro dos doentes, a ver se tinham entrado doentes novos, quando sou abordado por uma enfermeira: "O Dr. é da equipa do Dr X?". "Sou, sim", respondo. Explica-me: "A doente da cama 1 dos Intermédios parou. Está lá o Dr. Y, que estava no corredor.". Olhei para o quadro e identifiquei imediatamente a doente. Deu-me um friozinho na barriga, mas imediatamente me lembrei do péssimo prognóstico que tinha aquela doença. Fui para o quarto da doente (uma Unidade de Cuidados Intermédios), sem correr. Em frente à cama estava o Dr. Y, com a pasta da doente na mão. "Tinha muitos critérios de gravidade..." disse eu. Respondeu-me: "Pois, era o que eu estava aqui a ver..." - fechou a pasta e pousou-a aos pés da doente - "Não podemos fazer nada". Concordei. No monitor ainda se viam complexos que denotavam actividade eléctrica no coração, mas o coração já não estava a bater (situação que chamamos "dissociação electro-mecânica", que tem uma taxa de insucesso na reanimação muito elevada) nem os pulmões funcionavam. A enfermeira que tinha identificado a paragem retirou da cara o facies preocupado, e substituiu-o por um facies resignado. "Vamos só esperar aqui um bocadinho, está quase.", disse o Dr. Y. E ficámos a ver a actividade eléctrica desaparecer. O resto da minha equipa foi chegando aos poucos, e todos concordaram com a decisão de não-reanimação. Passado algum tempo verificou-se, então, o óbito. Causa de morte: pancreatite aguda.
E depois fomos beber café. Tinhamos 15 doentes vivos para tratar a seguir.
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terça-feira, 10 de maio de 2005
Depois do fax
- Bom dia D. Otília! Então como passou a noite? A comichão está melhor?
-Está sim, doutor, de manhã está mais acesa mas com os medicamentos alivia bastante! Estou é cada vez mais amarela... Já chegou o resultado do exame?
- [glup...] O exame chega hoje, em princípio. Depois quando soubermos do que se trata vimos cá falar consigo.
- Os Doutores não me escondam nada. Eu não sou mariquinhas, como os meus filhos que choram por tudo e por nada... Sou uma mulher de armas! (sorri para mim com um sorriso largo) Vou à luta até ao fim!
- Oh D. Otília, não lhe estamos a esconder nada! [gasp...] Mas quando o exame chegar e nós falarmos entre nós sobre ele explicamos-lhe tudo!
- Está bem, senhor doutor, mas veja lá se me põe com cores de gente, que o amarelo está fora de moda!!
[risos]
- Está bem, D. Otília, acabe lá de tomar o pequeno-almoço descansada que já cá a venho observar melhor!
[Saio da sala com o sorriso nº3 montado, que se desvanece após passar a porta. Ainda não discutimos o caso entre nós decentemente, e a doente não é minha... A verdade vai ter que esperar melhor momento... Mas custa, caramba...]
-Está sim, doutor, de manhã está mais acesa mas com os medicamentos alivia bastante! Estou é cada vez mais amarela... Já chegou o resultado do exame?
- [glup...] O exame chega hoje, em princípio. Depois quando soubermos do que se trata vimos cá falar consigo.
- Os Doutores não me escondam nada. Eu não sou mariquinhas, como os meus filhos que choram por tudo e por nada... Sou uma mulher de armas! (sorri para mim com um sorriso largo) Vou à luta até ao fim!
- Oh D. Otília, não lhe estamos a esconder nada! [gasp...] Mas quando o exame chegar e nós falarmos entre nós sobre ele explicamos-lhe tudo!
- Está bem, senhor doutor, mas veja lá se me põe com cores de gente, que o amarelo está fora de moda!!
[risos]
- Está bem, D. Otília, acabe lá de tomar o pequeno-almoço descansada que já cá a venho observar melhor!
[Saio da sala com o sorriso nº3 montado, que se desvanece após passar a porta. Ainda não discutimos o caso entre nós decentemente, e a doente não é minha... A verdade vai ter que esperar melhor momento... Mas custa, caramba...]
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Hospital
segunda-feira, 9 de maio de 2005
O fax que veio do Inferno
A D. Otília, que tem cerca de 55 anos, já está internada no serviço de Cirurgia Geral há uns dias. Entrou através da urgência com uma cólica biliar. Suspeitava-se de litíase (pedras) na vesícula biliar, uma vez que após o episódio de dor começou progressivamente a ficar com icterícia (coloração amarelada da pele). Sem dúvida que se tratava de uma icterícia obstructiva (alguma obstrução à drenagem da bílis fazia acumular pigmentos amarelados no organismo). O local e natureza da obstrução é que eram uma incógnita. As análises laboratoriais eram compatíveis com o mesmo problema, mas a ecografia não mostrou pedras nenhumas. Mostrou apenas que as vias biliares (canais que levam a bílis do fígado e vesícula para o intestino) estavam dilatadas, o que confirmava a existência de uma obstrução. Mas a ecografia não mostrava o local nem o motivo da obstrução. Pedimos então, na semana passada, um exame que tem por base a utilização da ressonância magnética para observação das vias biliares (a que chamamos CPRM). Esse exame faz-se fora do hospital, e assim a doente foi até à clínica de imagiologia fazer a CPRM.
Hoje a doente estava amarelíssima. Estava muito mais ictérica que na semana passada, a obstrução mantinha-se de forma nítida. Para além disso, as análises mostraram que além das vias biliares, já o fígado está a sofrer as repercussões da obstrução. Uma outra análise, pedida na semana passada, deixou-nos imediatamente de pé atrás: um marcador tumoral está um pouco aumentado... Os marcadores tumorais são substâncias detectadas no sangue que costumam estar associados a cancros (não são 100% fiáveis, mas dão fortes pistas).
Ao fim da manhã, e depois de umas quantas insistências telefónicas, chega o fax da clínica com o relatório (o exame só chega amanhã). Ficámos a olhar para o fax. Nos olhos dos médicos que estavam comigo lia-se o mesmo sentimento que me trespassava: desolação. A CPRM mostrou que a obstrução é provocada por uma neoplasia do pâncreas. Apesar de não identificar metástases, o exame mostrou que o tumor se localiza perigosamente perto de vasos de grandes dimensões do abdómen. Após um breve momento de silêncio, discutimos brevemente as hipóteses a considerar: ou se desiste de tentar tratar (os tumores do pâncreas têm um prognóstico péssimo, e este parece estar numa fase pouco favorável) e se faz algo para aliviar a obstrução provocada pelo tumor, ou se tenta tudo por tudo (com muito baixas probabilidades de sucesso) e se faz uma cirurgia enorme que a vai deixar diabética e muito fragilizada. Precisamos de mais dados (nomeadamente do próprio exame, não apenas do relatório, e talvez demais exames) e mais reflexão. Mas uma coisa é certa: as probabilidades de aquela mulher de 55 anos estar morta daqui a um ano são enormes. E qualquer que seja a decisão tomada aquela mulher vai sofrer muito...
Hoje a doente estava amarelíssima. Estava muito mais ictérica que na semana passada, a obstrução mantinha-se de forma nítida. Para além disso, as análises mostraram que além das vias biliares, já o fígado está a sofrer as repercussões da obstrução. Uma outra análise, pedida na semana passada, deixou-nos imediatamente de pé atrás: um marcador tumoral está um pouco aumentado... Os marcadores tumorais são substâncias detectadas no sangue que costumam estar associados a cancros (não são 100% fiáveis, mas dão fortes pistas).
Ao fim da manhã, e depois de umas quantas insistências telefónicas, chega o fax da clínica com o relatório (o exame só chega amanhã). Ficámos a olhar para o fax. Nos olhos dos médicos que estavam comigo lia-se o mesmo sentimento que me trespassava: desolação. A CPRM mostrou que a obstrução é provocada por uma neoplasia do pâncreas. Apesar de não identificar metástases, o exame mostrou que o tumor se localiza perigosamente perto de vasos de grandes dimensões do abdómen. Após um breve momento de silêncio, discutimos brevemente as hipóteses a considerar: ou se desiste de tentar tratar (os tumores do pâncreas têm um prognóstico péssimo, e este parece estar numa fase pouco favorável) e se faz algo para aliviar a obstrução provocada pelo tumor, ou se tenta tudo por tudo (com muito baixas probabilidades de sucesso) e se faz uma cirurgia enorme que a vai deixar diabética e muito fragilizada. Precisamos de mais dados (nomeadamente do próprio exame, não apenas do relatório, e talvez demais exames) e mais reflexão. Mas uma coisa é certa: as probabilidades de aquela mulher de 55 anos estar morta daqui a um ano são enormes. E qualquer que seja a decisão tomada aquela mulher vai sofrer muito...
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sexta-feira, 6 de maio de 2005
Fazer das tripas coração
Hoje foi um dia especial. Estive no bloco operatório e, apenas no final da primeira semana de estágio, tive oportunidade de ajudar bem de perto nas cirurgias. Já tinha algumas saudades das "tripas", é caso para dizer que, quase literalmente, ando "a fazer das tripas coração"...
A primeira cirurgia foi, infelizmente, de muito curta duração. Mais uma laparotomia exploradora, mais uma carcinomatose peritoneal (disseminação de um cancro entre os órgãos do abdómen). Tratava-se de um cancro do estômago, que tinha sido encontrado já numa fase avançada. Tinha-se afastado inicialmente a hipótese de cirurgia, mas a quimioterapia tinha tido resultados espectaculares. Tinha reduzido imenso a massa tumoral, e não eram visíveis na TAC (exame de diagnóstico radiológico de precisão elevada) quaisquer outras lesões, tinham regredido (aparentemente) de forma completa. Dessa forma, decidiu-se avançar para a cirurgia numa tentativa de retirar o que sobrava do tumor. Quando passámos a mão no interior do abdómen sentimos que tudo tinha uma textura semelhante a "lixa"... A gordura no interior do abdómen estava encarquilhada por massas pequenas mas duras que nem pedra... Imediatamente a cirurgia inverteu o seu sentido, e sendo que não havia necessidade de fazer qualquer intervenção como terapêutica paliativa, fechámos sem fazer quase nada... Fizémos apenas uma biópsia daquelas massas, para análise pela anatomopatologia. Mas infelizmente, mais uma vez, resumiu-se a abrir e fechar...
A segunda cirurgia era também a um tumor, desta vez do pâncreas. O tumor estava bem localizado (no que se chama de "cauda do pâncreas"), e não havia evidência de invasão de outros órgãos ou de metástases. Era, portanto, necessário remover uma boa parte do pâncreas (e o baço). O pâncreas é um órgão de acesso difícil, escondido atrás do estômago e "enfiado" no meio de imensos vasos grandes com os quais é preciso ter muito cuidado... A abordagem cirúrgica do pâncreas é complicada, mas são cirurgias muito "bonitas". Esta expressão, embora possa ser um pouco chocante para quem está de fora, significa que tem uma técnica cirúrgica muito delicada, complexa, que a torna de certa forma estimulante... Do ponto de vista humano, não tem graça nenhuma ter que ser submetido a uma cirurgia ao pâncreas, e as doenças do pâncreas são em geral bastante complicadas e geralmente com mau prognóstico... Mas quem executa as cirurgias, sem perder obviamente noção da vertente humana, gosta de certa forma destes desafios. Qualquer médico lida com situações que do ponto de vista humano são difíceis, é preciso gostar de medicina para saber lidar com isso... Mas, voltando ao caso, a cirurgia correu bem. Durou umas três horas e meia (a minha inexperiência levou a que os vários passos da cirurgia me fossem explicados com mais cuidado, pelo que demorou um pouco mais que o habitual), mas não houve complicações nenhumas. Agora resta esperar que todo o esforço seja recompensado com alguns anos de vida da doente!! Entretanto, eu hoje durmo com a sensação de dever cumprido... O futuro o dirá...
A primeira cirurgia foi, infelizmente, de muito curta duração. Mais uma laparotomia exploradora, mais uma carcinomatose peritoneal (disseminação de um cancro entre os órgãos do abdómen). Tratava-se de um cancro do estômago, que tinha sido encontrado já numa fase avançada. Tinha-se afastado inicialmente a hipótese de cirurgia, mas a quimioterapia tinha tido resultados espectaculares. Tinha reduzido imenso a massa tumoral, e não eram visíveis na TAC (exame de diagnóstico radiológico de precisão elevada) quaisquer outras lesões, tinham regredido (aparentemente) de forma completa. Dessa forma, decidiu-se avançar para a cirurgia numa tentativa de retirar o que sobrava do tumor. Quando passámos a mão no interior do abdómen sentimos que tudo tinha uma textura semelhante a "lixa"... A gordura no interior do abdómen estava encarquilhada por massas pequenas mas duras que nem pedra... Imediatamente a cirurgia inverteu o seu sentido, e sendo que não havia necessidade de fazer qualquer intervenção como terapêutica paliativa, fechámos sem fazer quase nada... Fizémos apenas uma biópsia daquelas massas, para análise pela anatomopatologia. Mas infelizmente, mais uma vez, resumiu-se a abrir e fechar...
A segunda cirurgia era também a um tumor, desta vez do pâncreas. O tumor estava bem localizado (no que se chama de "cauda do pâncreas"), e não havia evidência de invasão de outros órgãos ou de metástases. Era, portanto, necessário remover uma boa parte do pâncreas (e o baço). O pâncreas é um órgão de acesso difícil, escondido atrás do estômago e "enfiado" no meio de imensos vasos grandes com os quais é preciso ter muito cuidado... A abordagem cirúrgica do pâncreas é complicada, mas são cirurgias muito "bonitas". Esta expressão, embora possa ser um pouco chocante para quem está de fora, significa que tem uma técnica cirúrgica muito delicada, complexa, que a torna de certa forma estimulante... Do ponto de vista humano, não tem graça nenhuma ter que ser submetido a uma cirurgia ao pâncreas, e as doenças do pâncreas são em geral bastante complicadas e geralmente com mau prognóstico... Mas quem executa as cirurgias, sem perder obviamente noção da vertente humana, gosta de certa forma destes desafios. Qualquer médico lida com situações que do ponto de vista humano são difíceis, é preciso gostar de medicina para saber lidar com isso... Mas, voltando ao caso, a cirurgia correu bem. Durou umas três horas e meia (a minha inexperiência levou a que os vários passos da cirurgia me fossem explicados com mais cuidado, pelo que demorou um pouco mais que o habitual), mas não houve complicações nenhumas. Agora resta esperar que todo o esforço seja recompensado com alguns anos de vida da doente!! Entretanto, eu hoje durmo com a sensação de dever cumprido... O futuro o dirá...
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quinta-feira, 5 de maio de 2005
Banco de Cirurgia
Hoje fiz Urgência de Cirurgia Geral. Foi uma urgência calma, não houve muita agitação. Entre um corte no dedo feito com uma varinha mágica, um corte na cabeça feito por um cano de esgoto e uma pedrada valente na cabeça não houve trabalho a sobejar.
O caso mais stressante foi o de uma rapariga de 16 anos que tinha sido atropelada. Felizmente não apresentava lesões muito graves, para além de um traumatismo craniano ligeiro. Vai, no entanto, ficar com uma cicatriz jeitosa na testa... Ainda assim teve sorte, não parecia ter fracturado nada e não tinha lesões evidentes de órgãos abdominais. Apanhou um grande susto, isso sim...
O caso mais assustador, do ponto de vista sociológico, resultava de uma discussão banal. Quem não assistiu já (ou esteve até envolvido numa) a uma disputa de lugar de estacionamento? Pois bem, esta não teve um resultado nada simpático... Um dos envolvidos resolveu agredir o outro com uma faca grande (descrita por quem presenciou como uma catana), de um só golpe. Fez-lhe um corte da orelha até ao queixo por onde se espreitava para dentro da boca... Muita sorte tinha ele em ter bochechas gorduchas, pior seria se assim não fosse... Claro que, uns centímetros abaixo, e tinha-lhe cortado o pescoço... O trânsito em Portugal é uma selva, de facto... Assustador!!
O caso mais stressante foi o de uma rapariga de 16 anos que tinha sido atropelada. Felizmente não apresentava lesões muito graves, para além de um traumatismo craniano ligeiro. Vai, no entanto, ficar com uma cicatriz jeitosa na testa... Ainda assim teve sorte, não parecia ter fracturado nada e não tinha lesões evidentes de órgãos abdominais. Apanhou um grande susto, isso sim...
O caso mais assustador, do ponto de vista sociológico, resultava de uma discussão banal. Quem não assistiu já (ou esteve até envolvido numa) a uma disputa de lugar de estacionamento? Pois bem, esta não teve um resultado nada simpático... Um dos envolvidos resolveu agredir o outro com uma faca grande (descrita por quem presenciou como uma catana), de um só golpe. Fez-lhe um corte da orelha até ao queixo por onde se espreitava para dentro da boca... Muita sorte tinha ele em ter bochechas gorduchas, pior seria se assim não fosse... Claro que, uns centímetros abaixo, e tinha-lhe cortado o pescoço... O trânsito em Portugal é uma selva, de facto... Assustador!!
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terça-feira, 3 de maio de 2005
Laparotomia exporadora
Finalmente começou o meu estágio na Cirurgia. Hoje estive a ajudar numa laparotomia exploradora. Laparotomia significa, basicamente, "abrir a barriga", e exploradora porque pretende explorar o abdómen para esclarecer um diagnóstico (com observação directa, biópsias) e eventualmente fazer alguma manobra terapêutica cirúrgica necessária.
O caso era dramático. Pressuponha-se que a laparotomia exploradora fosse breve, porque era provável que se tratasse de uma neoplasia já num estadio inoperável. Trata-se de uma mulher de 55 anos que há uma dezena de anos atrás descobriu uma neoplasia do sistema nervoso periférico (Schwanoma...), dentro do abdómen. Dez anos depois de estar aparentemente curada começou a sentir dores abdominais difusas, o abdómen aumentou de volume (por ascite, como no post anterior), e perdeu peso de forma relativamente rápida. Os exames complementares de diagnóstico não foram muito esclarecedores em relação à causa, mas detectavam a existência provável de várias massas no abdómen.
E assim foi. Abrimos, olhámos, palpámos, biopsámos e fechámos. Tinha todo o aspecto de se tratar de várias metástases entre os órgãos do abdómen, situação chamada "carcinomatose peritoneal". E agora? Muito pouco podemos fazer. Neste momento esperamos os resultados, se bem que já sabemos o que vão dizer...
O caso era dramático. Pressuponha-se que a laparotomia exploradora fosse breve, porque era provável que se tratasse de uma neoplasia já num estadio inoperável. Trata-se de uma mulher de 55 anos que há uma dezena de anos atrás descobriu uma neoplasia do sistema nervoso periférico (Schwanoma...), dentro do abdómen. Dez anos depois de estar aparentemente curada começou a sentir dores abdominais difusas, o abdómen aumentou de volume (por ascite, como no post anterior), e perdeu peso de forma relativamente rápida. Os exames complementares de diagnóstico não foram muito esclarecedores em relação à causa, mas detectavam a existência provável de várias massas no abdómen.
E assim foi. Abrimos, olhámos, palpámos, biopsámos e fechámos. Tinha todo o aspecto de se tratar de várias metástases entre os órgãos do abdómen, situação chamada "carcinomatose peritoneal". E agora? Muito pouco podemos fazer. Neste momento esperamos os resultados, se bem que já sabemos o que vão dizer...
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quinta-feira, 28 de abril de 2005
Só um susto?
Ainda não foi desta que desapareci, engolido pelas enormes páginas do Harrison's. Estou de férias. Ou seja, estou dedicado a 100% ao estudo... Logo agora tinha quer fazer sol... Enfim...
No sexto ano da faculdade fiz a minha primeira paracentese. Uma paracentese consiste em introduzir uma espécie de "agulha" grossa no abdómen de um doente, quando este está cheio de líquido (o que se designa de ascite). Pode servir para retirar um pouco desse líquido para análises laboratoriais (paracentese diagnóstica) ou para remover esse líquido em excesso (paracentese evacuadora). Aquela era uma paracentese diagnóstica. O doente tinha por volta de 60 anos, era um grande bebedor com largos anos de whiskey, bagaço e vinho tinto. O fígado já dava sinais há alguns anos de que tanto álcool não lhe estava a cair muito bem. Dessa vez tinha sido internado no Serviço de Medicina Interna, onde eu estava a estagiar no 6º ano, por aumento de volume do abdómen de evolução relativamente rápida, com dor abdominal, náuseas, vómitos e um sinal que nos assustou um pouco à partida e que motivou o internamento: perda de peso significativa nos últimos 2 meses. As hipóteses diagnósticas eram várias, mas uma sobressaia: carcinoma hepatocelular. Este tipo de cancro desenvolve-se principalmente num fígado com cirrose, cirrose essa que pode resultar de várias coisas diferentes, como a Hepatite C e o alcoolismo crónico. Ali a história parecia linear: um alcoolismo marcado era provavelmente responsável por cirrose hepática, que parecia ter "degenerado" num carcinoma hepatocelular.
Uma das abordagens diagnósticas que se seguiu foi, então, a paracentese. E era eu que a ia fazer. Preparado todo o material, a minha tutora estava ao meu lado para me guiar nos vários passos (que eu já conhecia de cor pela observação de muitas paracenteses). Conhecido o local da picada, introduzo a agulha. Pela extremidade oposta começa a sair o conteúdo daquele abdómen. Gelei até aos ossos instantaneamente, para logo depois começar a suar profusamente. Saiu sangue. Não era "rosado", nem mesmo "sanguiolento". Era sangue vivo, puro e abundante. Imediatamente pensei "MERDA! Furei a veia cava ou a aorta!!" (vasos abdominais de grande calibre). A hipótese restante era que aquela ascite fosse mesmo assim por causa da eventual neoplasia. Durante alguns segundos, com o coração a bater descompassado e o suor a escorrer da testa, esperámos para ver o que acontecia. O doente estava bem, não se sentia tonto, o coração batia a um ritmo perfeitamente normal, e as várias medições de tensão arterial (prontamente medidas pela enfermeira que nos acompanhava) eram normalíssimas. Até que, e depois de drenar um pouco mais, parou. Respirámos de alívio quando percebemos que, de facto, eram aquelas as características da ascite. Mas só por um instante: era agora muito mais óbvio que se tratava mesmo de um cancro do fígado...
Nos dias seguintes confirmou-se o diagnóstico. Era um carcinoma hepatocelular grave, que minava todo o fígado. A causa daquela ascite hemática (com sangue) era o próprio carcinoma. O estadio da neoplasia era já muito avançado, e nenhuma manobra terapêutica seria sequer tentada. Tratava-se agora de tornar o final menos doloroso, com a maior qualidade de vida possível. Espantou-me a indiferença do doente perante o diagnóstico. Não queria saber da vida, não queria saber da morte. Indiferente ao nulo prognóstico afirmou que sabia ser dele a responsabilidade de tudo aquilo. E por isso nem queria saber da morte, nem queria saber da vida que lhe restava...
No sexto ano da faculdade fiz a minha primeira paracentese. Uma paracentese consiste em introduzir uma espécie de "agulha" grossa no abdómen de um doente, quando este está cheio de líquido (o que se designa de ascite). Pode servir para retirar um pouco desse líquido para análises laboratoriais (paracentese diagnóstica) ou para remover esse líquido em excesso (paracentese evacuadora). Aquela era uma paracentese diagnóstica. O doente tinha por volta de 60 anos, era um grande bebedor com largos anos de whiskey, bagaço e vinho tinto. O fígado já dava sinais há alguns anos de que tanto álcool não lhe estava a cair muito bem. Dessa vez tinha sido internado no Serviço de Medicina Interna, onde eu estava a estagiar no 6º ano, por aumento de volume do abdómen de evolução relativamente rápida, com dor abdominal, náuseas, vómitos e um sinal que nos assustou um pouco à partida e que motivou o internamento: perda de peso significativa nos últimos 2 meses. As hipóteses diagnósticas eram várias, mas uma sobressaia: carcinoma hepatocelular. Este tipo de cancro desenvolve-se principalmente num fígado com cirrose, cirrose essa que pode resultar de várias coisas diferentes, como a Hepatite C e o alcoolismo crónico. Ali a história parecia linear: um alcoolismo marcado era provavelmente responsável por cirrose hepática, que parecia ter "degenerado" num carcinoma hepatocelular.
Uma das abordagens diagnósticas que se seguiu foi, então, a paracentese. E era eu que a ia fazer. Preparado todo o material, a minha tutora estava ao meu lado para me guiar nos vários passos (que eu já conhecia de cor pela observação de muitas paracenteses). Conhecido o local da picada, introduzo a agulha. Pela extremidade oposta começa a sair o conteúdo daquele abdómen. Gelei até aos ossos instantaneamente, para logo depois começar a suar profusamente. Saiu sangue. Não era "rosado", nem mesmo "sanguiolento". Era sangue vivo, puro e abundante. Imediatamente pensei "MERDA! Furei a veia cava ou a aorta!!" (vasos abdominais de grande calibre). A hipótese restante era que aquela ascite fosse mesmo assim por causa da eventual neoplasia. Durante alguns segundos, com o coração a bater descompassado e o suor a escorrer da testa, esperámos para ver o que acontecia. O doente estava bem, não se sentia tonto, o coração batia a um ritmo perfeitamente normal, e as várias medições de tensão arterial (prontamente medidas pela enfermeira que nos acompanhava) eram normalíssimas. Até que, e depois de drenar um pouco mais, parou. Respirámos de alívio quando percebemos que, de facto, eram aquelas as características da ascite. Mas só por um instante: era agora muito mais óbvio que se tratava mesmo de um cancro do fígado...
Nos dias seguintes confirmou-se o diagnóstico. Era um carcinoma hepatocelular grave, que minava todo o fígado. A causa daquela ascite hemática (com sangue) era o próprio carcinoma. O estadio da neoplasia era já muito avançado, e nenhuma manobra terapêutica seria sequer tentada. Tratava-se agora de tornar o final menos doloroso, com a maior qualidade de vida possível. Espantou-me a indiferença do doente perante o diagnóstico. Não queria saber da vida, não queria saber da morte. Indiferente ao nulo prognóstico afirmou que sabia ser dele a responsabilidade de tudo aquilo. E por isso nem queria saber da morte, nem queria saber da vida que lhe restava...
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sábado, 23 de abril de 2005
A vida por um fio
Quem segura a linha quando a vida está por um fio?
Quem é que está lá para aguentar as lágrimas quando o fio se parte?
Ontem foi o scrubs.
Um cheirinho:
"Tive que falar com a mulher. Nestas situações, é diferente contar ao neto que o avô de 93 anos faleceu, ou contar a uma senhora de 30 anos que está viúva quando 10 minutos antes o marido estava ao lado dela. É inesperado, é um choque. As pessoas não querem acreditar, pensam que é brincadeira (mas quem é que ia brincar com isto?!). Gritos, choro, um constrangimento da nossa parte."
Quem é que está lá para aguentar as lágrimas quando o fio se parte?
Ontem foi o scrubs.
Um cheirinho:
"Tive que falar com a mulher. Nestas situações, é diferente contar ao neto que o avô de 93 anos faleceu, ou contar a uma senhora de 30 anos que está viúva quando 10 minutos antes o marido estava ao lado dela. É inesperado, é um choque. As pessoas não querem acreditar, pensam que é brincadeira (mas quem é que ia brincar com isto?!). Gritos, choro, um constrangimento da nossa parte."
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quinta-feira, 21 de abril de 2005
Doctor on the road
Hoje tive um dia de trabalho bastante diferente. Ao invés de fazer exames para a renovação da carta de condução, ou observar a realização das estatísticas de 2004 do Centro de Saúde (e desta forma se resume bem a minha rotina habitual nestas duas semanas), andei a passear de carro, com direito a motorista. Bizarro? Eu explico.
Hoje fui fazer verificações de doença. Ou seja, fui a casa de funcionários públicos sob atestado médico verificar a sua presença no domicílio. Fiquei um pouco assustado ao saber que iria faze-lo, uma vez que trabalho numa área de alguma forma socialmente problemática. Por outro lado, conheço ainda muito mal a cidade onde trabalho, e nomes de ruas não me dizem nada. Já tinha feito o filme todo: ia entrar numa casa com condições degradadas, onde me veria rodeado de gente com armas apontadas para nem me atrever a escrever nos papéis que o visado não se encontrava no domicílio. Ok, sei que parece um pouco dramático demais, mas de facto passou-me pela cabeça que seria talvez um pouco perigoso. Ao fim e ao cabo é um trabalho quase de "policiamento da doença", e há pessoas que não gostam muito de polícias... Fiquei bastante aliviado ao saber que tinha direito a um carro com motorista, apesar de saber que ele não iria comigo ao interior das habitações. Dava, pelo menos, uma falsa sensação de segurança. E fiquei também um pouco mais descansado quando descobri que só faziamos as verificações de doença para funcionários públicos - as probabilidades de me deparar com condições extraordinariamente degradadas diminuiam pelo menos um pouco.
E assim fui, com o dito motorista, no carro do Centro de Saúde de pastinha na mão e estetoscópio ao pescoço - só mesmo para me levarem a sério, não tinha a intenção de ir auscultar ninguém...
A primeira casa era... de uma médica. Toquei à porta, entrei no prédio e subi o elevador. Olhava-me do interior da casa com um ar desconfiado, pijama e robe vestidos. Expliquei o que lá estava a fazer, e escrevi uma nota breve com o motivo sumário para o atestado. Estava com uma depressão grave. A expressão vazia e lágrimas fluentes diziam tudo. Estava seriamente medicada, também. Falei um pouco com ela, escrevi meia dúzia de coisas e vim-me embora. Pelo menos substituiu o olhar desconfiado por um ligeiro sorriso quando me vim embora, afinal o "polícia" tinha sido simpático, e ela estava de facto em casa, e doente.
Apenas duas outras pessoas estavam em casa. Mais duas depressões... Uma delas estava sozinha em casa, uma senhora de 55 anos. Já estava em casa com atestado há largos meses, aguardava junta médica para se reformar. Estava, supostamente, deprimida porque lhe doiam os ossos... Como à população portuguesa inteira. O seu trabalho era de secretária, não exigia esforço físico. Mas quem sou eu para questionar a sua capacidade de trabalho? A única coisa que posso fazer é lamentar-me da quantidade avassaladora de pessoas que "metem atestado" porque é muito cómodo não trabalhar. E há uma quota parte grande de responsabilidade dos médicos que passam os atestados nessas situações... Mais graves ainda são os casos semelhantes em pessoas novas. Mas enfim, consola-me o facto de ser improvável que a junta médica a reforme...
De regresso ao Centro de Saúde, mais uma leva de estatísticas. Não se pode ter tudo, não é?...
Hoje fui fazer verificações de doença. Ou seja, fui a casa de funcionários públicos sob atestado médico verificar a sua presença no domicílio. Fiquei um pouco assustado ao saber que iria faze-lo, uma vez que trabalho numa área de alguma forma socialmente problemática. Por outro lado, conheço ainda muito mal a cidade onde trabalho, e nomes de ruas não me dizem nada. Já tinha feito o filme todo: ia entrar numa casa com condições degradadas, onde me veria rodeado de gente com armas apontadas para nem me atrever a escrever nos papéis que o visado não se encontrava no domicílio. Ok, sei que parece um pouco dramático demais, mas de facto passou-me pela cabeça que seria talvez um pouco perigoso. Ao fim e ao cabo é um trabalho quase de "policiamento da doença", e há pessoas que não gostam muito de polícias... Fiquei bastante aliviado ao saber que tinha direito a um carro com motorista, apesar de saber que ele não iria comigo ao interior das habitações. Dava, pelo menos, uma falsa sensação de segurança. E fiquei também um pouco mais descansado quando descobri que só faziamos as verificações de doença para funcionários públicos - as probabilidades de me deparar com condições extraordinariamente degradadas diminuiam pelo menos um pouco.
E assim fui, com o dito motorista, no carro do Centro de Saúde de pastinha na mão e estetoscópio ao pescoço - só mesmo para me levarem a sério, não tinha a intenção de ir auscultar ninguém...
A primeira casa era... de uma médica. Toquei à porta, entrei no prédio e subi o elevador. Olhava-me do interior da casa com um ar desconfiado, pijama e robe vestidos. Expliquei o que lá estava a fazer, e escrevi uma nota breve com o motivo sumário para o atestado. Estava com uma depressão grave. A expressão vazia e lágrimas fluentes diziam tudo. Estava seriamente medicada, também. Falei um pouco com ela, escrevi meia dúzia de coisas e vim-me embora. Pelo menos substituiu o olhar desconfiado por um ligeiro sorriso quando me vim embora, afinal o "polícia" tinha sido simpático, e ela estava de facto em casa, e doente.
Apenas duas outras pessoas estavam em casa. Mais duas depressões... Uma delas estava sozinha em casa, uma senhora de 55 anos. Já estava em casa com atestado há largos meses, aguardava junta médica para se reformar. Estava, supostamente, deprimida porque lhe doiam os ossos... Como à população portuguesa inteira. O seu trabalho era de secretária, não exigia esforço físico. Mas quem sou eu para questionar a sua capacidade de trabalho? A única coisa que posso fazer é lamentar-me da quantidade avassaladora de pessoas que "metem atestado" porque é muito cómodo não trabalhar. E há uma quota parte grande de responsabilidade dos médicos que passam os atestados nessas situações... Mais graves ainda são os casos semelhantes em pessoas novas. Mas enfim, consola-me o facto de ser improvável que a junta médica a reforme...
De regresso ao Centro de Saúde, mais uma leva de estatísticas. Não se pode ter tudo, não é?...
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sábado, 16 de abril de 2005
Desabafo
O meu desabafo hoje é diferente. Não vou falar de doentes. Porque não tenho visto doentes. Não vou falar de doenças. Não tenho visto doenças. Não vou tão pouco falar de trabalho. Não tenho trabalhado nada - tenho visto outros a faze-lo.
Se há coisa que detesto é sentir-me inútil. E tenho-me sentido extraordinariamente inútil. Estou, como já vos contei, a estagiar em Saúde Pública. O meu dia a dia resume-se a observar o trabalho do meu tutor, que se relaciona muito com "despachar palepada". O tempo que não se passa a despachar papelada passa-se a fazer o exame de saúde para a carta de condução (algo muito pouco estimulante) ou a compilar estatísticas de saúde do ano de 2004. Por muito interessante que eventualmente a especialidade de Saúde Pública possa ser, e desculpem-me os meus colegas de Saúde Pública, eu não nasci para ela. Eu nasci para ver pessoas, para lidar com elas. Para falar com pessoas, para as ajudar numa dicotomia (eu e tu). A Saúde Pública pode ajudar pessoas, e fa-lo, a um nível superior (eu e eles). Através de estabelecimento de procedimentos em caso de epidemia, de verificações da qualidade de instalações, etc, a Saúde Pública ajuda as pessoas "lá de trás da secretária". E eu não nasci para estar atrás de uma secretária. Estou sedento de contacto humano, estou ansioso por auscultar, palpar, percutir, perguntar, segurar a mão dos doentes, que seja! Detesto papéis, secretárias, estatísticas, números secos e frios num LCD. Quero, e desculpem a brutalidade, sangue, suor e lágrimas. Quero trabalhar! (já estou como o outro, credo)
Afinal de contas, é para desabafar, não é? Sinto-me muito melhor agora. Obrigado.
Se há coisa que detesto é sentir-me inútil. E tenho-me sentido extraordinariamente inútil. Estou, como já vos contei, a estagiar em Saúde Pública. O meu dia a dia resume-se a observar o trabalho do meu tutor, que se relaciona muito com "despachar palepada". O tempo que não se passa a despachar papelada passa-se a fazer o exame de saúde para a carta de condução (algo muito pouco estimulante) ou a compilar estatísticas de saúde do ano de 2004. Por muito interessante que eventualmente a especialidade de Saúde Pública possa ser, e desculpem-me os meus colegas de Saúde Pública, eu não nasci para ela. Eu nasci para ver pessoas, para lidar com elas. Para falar com pessoas, para as ajudar numa dicotomia (eu e tu). A Saúde Pública pode ajudar pessoas, e fa-lo, a um nível superior (eu e eles). Através de estabelecimento de procedimentos em caso de epidemia, de verificações da qualidade de instalações, etc, a Saúde Pública ajuda as pessoas "lá de trás da secretária". E eu não nasci para estar atrás de uma secretária. Estou sedento de contacto humano, estou ansioso por auscultar, palpar, percutir, perguntar, segurar a mão dos doentes, que seja! Detesto papéis, secretárias, estatísticas, números secos e frios num LCD. Quero, e desculpem a brutalidade, sangue, suor e lágrimas. Quero trabalhar! (já estou como o outro, credo)
Afinal de contas, é para desabafar, não é? Sinto-me muito melhor agora. Obrigado.
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quinta-feira, 14 de abril de 2005
Ao desafio
O meu amigo scrubs deixou-me aqui um desafio que tem caminhado qual "tantra mágico com mil anos" pelo mundo da internet. E sabe que me deixou um desafio grande, tendo em conta a altura da vida em que me encontro... Mas vamos lá ver como me safo no teste!!
Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro querias ser?
Hum... "Como água para chocolate". A magia de um amor "explosivo" e guloso contentar-me-ia(á) para a eternidade.
Já alguma vez ficaste apanhadinho (a) por uma personagem de ficção?
A verdade é que em puto era louco pelo "Superman". Chegava a sonhar que era capaz de voar, e passeava pelos sítios que conhecia na altura com uma perpectiva aérea. Tenho saudades desses sonhos, sentia-me muito livre. Provavelmente a vida vai-nos dando lastro e deixamos de ser capazes de voar... Mesmo nos sonhos...
Qual o último livro que compraste?
Para oferecer: o "novo" do Dan Brown. Gostei do "Código Da Vinci", na perpectiva do romance viciante que é (e isso nem os mais avessos lhe tiram...). A perspectiva religiosa a mim passa-me um pouquinho ao lado.
Qual o último livro que leste?
Gostaria de responder "Harrison's Principles of Internal Medicine", significava que já o tinha lido. Mas é mentira. Para mal dos meus pecados. Caramba, foi o "Código Da Vinci"... Há uns meses... Vida de cão...
Que livro estás a ler?
Ininterruptamente, desde há cinco meses atrás, com muitos mais ainda pela frente, sem perspectiva de melhoras: "Harrison's Principles of Internal Medicine". Está na secretária, na pasta que levo para todo o lado, está na mesa de cabeceira. Antes fosse por "não o conseguir largar". O problema é que não posso...
Se considerarmos os livros que tenho a meio (desde há uns tempos): "O Outono do Patriarca" do Gabriel García Marquez e vários livros do Saramago. Tenho um problema com o Saramago: eu envolvo-me de tal forma nos livros que fico ofegante, num misto de delirium, síndrome psicótico e estado confuso-onírico em dez minutos. Assusto-me de tal forma, quando volto a mim, que tenho dificuldade em voltar a pegar-lhe. É uma questão pessoal. Eu vivo muito intensamente os livros. Persisti, tenho 3 Saramagos a meio...
Que livros (cinco) levarias para uma ilha deserta?
Cem Anos de Solidão - Gabriel García Marquez (Fabuloso)
A Casa dos Espíritos - Isabel Allende (sim, adoro livros sul-americanos)
O Senhor dos Anéis - JRR Tolkien (li-o aos 13 anos, aproveitava para o reler)
Em Nome da Terra - Vergílio Ferreira ("the meaning of life")
Um enorme compêndio de Poesia Portuguesa, o mais completo que encontrasse.
A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
Ao Ice
Ao Sr. Padre
À Emiéle
Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro querias ser?
Hum... "Como água para chocolate". A magia de um amor "explosivo" e guloso contentar-me-ia(á) para a eternidade.
Já alguma vez ficaste apanhadinho (a) por uma personagem de ficção?
A verdade é que em puto era louco pelo "Superman". Chegava a sonhar que era capaz de voar, e passeava pelos sítios que conhecia na altura com uma perpectiva aérea. Tenho saudades desses sonhos, sentia-me muito livre. Provavelmente a vida vai-nos dando lastro e deixamos de ser capazes de voar... Mesmo nos sonhos...
Qual o último livro que compraste?
Para oferecer: o "novo" do Dan Brown. Gostei do "Código Da Vinci", na perpectiva do romance viciante que é (e isso nem os mais avessos lhe tiram...). A perspectiva religiosa a mim passa-me um pouquinho ao lado.
Qual o último livro que leste?
Gostaria de responder "Harrison's Principles of Internal Medicine", significava que já o tinha lido. Mas é mentira. Para mal dos meus pecados. Caramba, foi o "Código Da Vinci"... Há uns meses... Vida de cão...
Que livro estás a ler?
Ininterruptamente, desde há cinco meses atrás, com muitos mais ainda pela frente, sem perspectiva de melhoras: "Harrison's Principles of Internal Medicine". Está na secretária, na pasta que levo para todo o lado, está na mesa de cabeceira. Antes fosse por "não o conseguir largar". O problema é que não posso...
Se considerarmos os livros que tenho a meio (desde há uns tempos): "O Outono do Patriarca" do Gabriel García Marquez e vários livros do Saramago. Tenho um problema com o Saramago: eu envolvo-me de tal forma nos livros que fico ofegante, num misto de delirium, síndrome psicótico e estado confuso-onírico em dez minutos. Assusto-me de tal forma, quando volto a mim, que tenho dificuldade em voltar a pegar-lhe. É uma questão pessoal. Eu vivo muito intensamente os livros. Persisti, tenho 3 Saramagos a meio...
Que livros (cinco) levarias para uma ilha deserta?
Cem Anos de Solidão - Gabriel García Marquez (Fabuloso)
A Casa dos Espíritos - Isabel Allende (sim, adoro livros sul-americanos)
O Senhor dos Anéis - JRR Tolkien (li-o aos 13 anos, aproveitava para o reler)
Em Nome da Terra - Vergílio Ferreira ("the meaning of life")
Um enorme compêndio de Poesia Portuguesa, o mais completo que encontrasse.
A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
Ao Ice
Ao Sr. Padre
À Emiéle
terça-feira, 12 de abril de 2005
Um destino diferente do do Pedro?
"São daqueles doentes que nos levam a torcer o nariz. São agressivos, não colaboram, não querem estar internados, sabem que estão doentes, gravemente doentes, mas a dependência costuma ser mais forte. Pedem normalmente alta contra opinião médica.
Mas ela não tem sido nada disso. Está diferente."
Leiam o resto aqui.
Estou agora a estagiar em Saúde Pública. Trata-se de uma especialidade médica que está um pouco mais afastada dos doentes. Não me agrada, não me atrai. Rezo por Maio, começo a estagiar em Cirurgia. O blog vai sofrer as consequências, naturalmente. Se tivesse feitio para me queixar hoje tinha feito um post desesperado. Como não tenho mando-vos a casa do vizinho!
Mas ela não tem sido nada disso. Está diferente."
Leiam o resto aqui.
Estou agora a estagiar em Saúde Pública. Trata-se de uma especialidade médica que está um pouco mais afastada dos doentes. Não me agrada, não me atrai. Rezo por Maio, começo a estagiar em Cirurgia. O blog vai sofrer as consequências, naturalmente. Se tivesse feitio para me queixar hoje tinha feito um post desesperado. Como não tenho mando-vos a casa do vizinho!
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Hospital
sexta-feira, 8 de abril de 2005
Pedro
O Pedro era um rapaz como os outros. Andava na escola, chumbou um anito ou dois. Era um tipo calado, metido com os seus botões. Tinha também aquela perigosa tendência de se aproximar das pessoas erradas. O ambiente familiar era mau. As condições económicas eram fracas, e a mãe era o que se pode designar genericamente de uma pessoa insuportável. Berrava com o pai dela, velhote acamado, berrava com o marido, bêbado, e berrava com o filho. O ponto fulcral que o Pedro descrevia da sua casa eram os gritos da mãe. O Pedro queria fugir daquele ambiente. Queria-se afastar da gritaria. Queria qualquer coisa que o fizesse esquecer aquela família, aquela vida. Encontrou nos charros, que fumava com os "amigos" mais próximos, um escape. Tudo ficava bem com uma pedrinha de haxixe, e afinal não faz mal a ninguém. Cedo se fartaram das drogas leves, e passado um tempo o Pedro era utilizador de heroína. Injectava-se inicialmente em grupo, aos poucos passou a faze-lo sozinho. A mãe já não mandava nele. Quem mandava agora nele era uma substância... Roubou diversos objectos de casa, muitos outros fora dela. A sua vida girava em torno de uma necessidade: evitar a ressaca. Entrou, mais tarde, num programa de substituição com metadona. Deu-se mal, assim que parou a metadona voltou para a heroína. Nessa altura já sabia que era seropositivo. Mas foi já depois da má experiência com a metadona que a tuberculose lhe bateu à porta. Arrastou durante algum tempo uma tosse bem produtiva, a febre nem dava por ela nos intervalos da heroína. Foi quando a tosse começou a trazer sangue que recorreu ao hospital. Tinha uma grave infecção pulmonar típica da SIDA (pneumocistose), que quando foi tratada mostrou uma tuberculose escondida. Ficou internado durante bastante tempo, foi a oportunidade que teve para se afastar da heroína. Começou nesse internamento a terapêutica para o HIV e para a tuberculose. Quando teve alta começou a ser seguido na consulta de infecciologia do Hospital e no CDP do Centro de Saúde.
O meu tutor diz-me, antes de chamar o Pedro para a consulta, que ele tinha muito pior aspecto quando apareceu lá da primeira vez. Assim que ele entrou custou-me a acreditar. O rapaz era esquelético, o cabelo era uma vaga ideia de pelo ruivo no alto da cabeça, e todas as feições angulosas. Tinha pele clara, e um bizarro e paradoxal ar de criança doente. Não era já nenhuma criança, mas quase parecia. A mãe tinha vindo com ele, estava a berrar no corredor com a enfermeira porque "só eu é que sei o que é ter um filho assim!! Vocês sabem lá, põem-se a mandar bitates sobre a maneira como devo ou não devo educar o meu filho?!". Ele parecia muitíssimo aliviado por ela ter ficado fora do consultório. Estava muito ansioso, afirmou-nos que estava a milímetros de voltar para a heroína. O ambiente em casa era pesadíssimo, e os gritos da mãe ressoavam-lhe na cabeça o dia inteiro. Tinha recusado a sugestão da infecciologista de adesão a novo programa de metadona para evitar a mais que certa recaída, reportando-se ao anterior insucesso. A TOD (terapêutica observada directa) era a única forma de manter a terapêutica de forma adequada, admitiu-nos que de outra forma já teria parado a medicação. A radiografia e a TAC mostravam francos sinais de melhoria da tuberculose pulmonar, mas muito caminho havia ainda a percorrer. Saiu do consultório a coxear, como tinha entrado, não tinha força muscular suficiente para andar decentemente. Assim que saiu, a mãe desatou aos berros com ele por qualquer outra coisa pouco importante. Ele continuou silencioso. A coxear em direcção à morte.
O meu tutor diz-me, antes de chamar o Pedro para a consulta, que ele tinha muito pior aspecto quando apareceu lá da primeira vez. Assim que ele entrou custou-me a acreditar. O rapaz era esquelético, o cabelo era uma vaga ideia de pelo ruivo no alto da cabeça, e todas as feições angulosas. Tinha pele clara, e um bizarro e paradoxal ar de criança doente. Não era já nenhuma criança, mas quase parecia. A mãe tinha vindo com ele, estava a berrar no corredor com a enfermeira porque "só eu é que sei o que é ter um filho assim!! Vocês sabem lá, põem-se a mandar bitates sobre a maneira como devo ou não devo educar o meu filho?!". Ele parecia muitíssimo aliviado por ela ter ficado fora do consultório. Estava muito ansioso, afirmou-nos que estava a milímetros de voltar para a heroína. O ambiente em casa era pesadíssimo, e os gritos da mãe ressoavam-lhe na cabeça o dia inteiro. Tinha recusado a sugestão da infecciologista de adesão a novo programa de metadona para evitar a mais que certa recaída, reportando-se ao anterior insucesso. A TOD (terapêutica observada directa) era a única forma de manter a terapêutica de forma adequada, admitiu-nos que de outra forma já teria parado a medicação. A radiografia e a TAC mostravam francos sinais de melhoria da tuberculose pulmonar, mas muito caminho havia ainda a percorrer. Saiu do consultório a coxear, como tinha entrado, não tinha força muscular suficiente para andar decentemente. Assim que saiu, a mãe desatou aos berros com ele por qualquer outra coisa pouco importante. Ele continuou silencioso. A coxear em direcção à morte.
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Hospital
segunda-feira, 4 de abril de 2005
CDP
Iniciei hoje uma breve passagem (1 semana) no CDP. Quer dizer "Centro de Diagnóstico Pulmonar", e insere-se no Centro de Saúde onde estou a estagiar. No essencial, serve para lidar com um problema que é hoje em dia muito importante: a Tuberculose.
Não, a Tuberculose não é uma doença que existiu nos anos 50/60 e que matou muita gente. Quer dizer, não é só isso. A Tuberculose existe hoje em dia, e muito. Não representa, naturalmente, o risco que representava na altura... As terapêuticas de hoje permitem tratar a doença de uma forma eficaz. O grande problema da Tuberculose hoje em dia é outro: está intimamente relacionada com a SIDA, uma vez que a imunodepressão da infecção VIH confere uma susceptibilidade maior para muitas doenças infecciosas, entre as quais a Tuberculose. Está também relacionada com baixas condições socio-económicas, especialmente com a toxicodependência. E é aí que nos toca a todos nós... Muitos de vocês já ouviram falar na toma assistida de medicamentos: aplica-se de forma exemplar na Tuberculose. A toma escrupulosa da medicação por parte dos doentes, toma essa que decorre no mínimo durante 6 (seis!) meses é essencial para a eficácia do tratamento. E a eficácia do tratamento é importantíssima para a saúde pública, não só por uma questão de contágio, mas porque a toma dos fármacos de forma irregular ou insuficiente leva à criação de estirpes multirresistentes do bicharoco...
O CDP encarrega-se, principalmente, de seguir os doentes diagnosticados pelos médicos hospitalares e extra-hospitalares, garantindo a boa evolução da terapêutica. Para isso, e para os doentes de risco, existe ainda a toma assistida de medicamentos: os doentes tomam a medicação no CDP, sob o olhar atento dos enfermeiros responsáveis. Faz-se, no CDP, um trabalho notável. Funciona muito bem, é uma estrutura física e organizativa muito bem concebida.
Não tarda, sugirão aqui uma ou duas histórias que me marquem mais... Lida-se com muita desgraça, no CDP...
Não, a Tuberculose não é uma doença que existiu nos anos 50/60 e que matou muita gente. Quer dizer, não é só isso. A Tuberculose existe hoje em dia, e muito. Não representa, naturalmente, o risco que representava na altura... As terapêuticas de hoje permitem tratar a doença de uma forma eficaz. O grande problema da Tuberculose hoje em dia é outro: está intimamente relacionada com a SIDA, uma vez que a imunodepressão da infecção VIH confere uma susceptibilidade maior para muitas doenças infecciosas, entre as quais a Tuberculose. Está também relacionada com baixas condições socio-económicas, especialmente com a toxicodependência. E é aí que nos toca a todos nós... Muitos de vocês já ouviram falar na toma assistida de medicamentos: aplica-se de forma exemplar na Tuberculose. A toma escrupulosa da medicação por parte dos doentes, toma essa que decorre no mínimo durante 6 (seis!) meses é essencial para a eficácia do tratamento. E a eficácia do tratamento é importantíssima para a saúde pública, não só por uma questão de contágio, mas porque a toma dos fármacos de forma irregular ou insuficiente leva à criação de estirpes multirresistentes do bicharoco...
O CDP encarrega-se, principalmente, de seguir os doentes diagnosticados pelos médicos hospitalares e extra-hospitalares, garantindo a boa evolução da terapêutica. Para isso, e para os doentes de risco, existe ainda a toma assistida de medicamentos: os doentes tomam a medicação no CDP, sob o olhar atento dos enfermeiros responsáveis. Faz-se, no CDP, um trabalho notável. Funciona muito bem, é uma estrutura física e organizativa muito bem concebida.
Não tarda, sugirão aqui uma ou duas histórias que me marquem mais... Lida-se com muita desgraça, no CDP...
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Hospital
sexta-feira, 1 de abril de 2005
Pai Natal
O Pai Natal. Era assim que nos referíamos ao Sr. José. Estava internado no serviço de Medicina Interna onde eu estagiei no 6º ano da faculdade. Tinha entrado no serviço a propósito de uma pneumonia. Tinha feito a antibioterapia adequada, e tinha ficado bem. Na altura de dar alta surgiu um problema que, infelizmente, é demasiado frequente... O Sr. José, era então ainda conhecido assim, não tinha ninguém com quem ficar. Tinha 79 anos, e muito pouca autonomia. O irmão vivia longe, e não tinha meios para cuidar dele. Das filhas que tinha tido, nenhuma tinha contacto. Ele não sabia já o nome delas, tinha uma demência importante. E assim foi ficando. A Assistente Social procurou, de forma incansável, um sítio para o Sr. José. Mas um qualquer lar não chegava, ele precisava de cuidados de enfermagem que não havia em todo o lado. E não havia vagas nenhumas, havia sim uma enorme lista de espera de doentes à espera de uma "casinha" onde ficar.
O Sr. José não ficou no hospital. Foi ficando. A verdade é que parecia sempre que havia "agora" uma oportunidade de o transferir para um sítio melhor. Mas todas as espectativas saiam goradas. E o Sr. José ia ficando por lá.
Os enfermeiros foram criando um afecto especial pelo "zézinho", lidavam com ele todos os dias. E ele fazia questão de dor sempre um enorme sorriso desdentado a quem o cumprimentava. Os médicos, visto que estava internado, todos os dias lhe passavam uma pequena visita. Ele sorria, e fazia as suas queixinhas pequenas, com uma voz apagada e hesitante. Explicava que doía a perna, as costas, a cabeça... Íamos resolvendo os seus pequenos problemas, e ele... ía ficando por lá.
Teve algumas intercorrências no internamento, como seria de esperar num indivíduo internado no hospital, "quartel-general" dos bicharocos mais agressivos. Algumas pneumonias e infecções urinárias foram sendo tratadas. Uma suspeita de AVC, que acabou por se resolver sem sequelas, permitiu a realização de uma TAC ao crânio. Surpreendeu todos os médicos como é que um indivíduo com tão pouco cérebro (estava muito atrofiado, e tinha múltiplas e extensas lesões antigas), dizíamos aliás que só tinha "meio-cérebro" (já que uma metade era um queijo-suiço na TAC), conseguia ainda falar, comer, etc... Foi sobrevivendo a todas as intercorrências, e foi ficando por lá...
Quando eu cheguei ao serviço, em Outubro de 2003, o Sr. José estava lá desde Abril. Visitava-o todos os dias (nos dias mais complicados limitava-me a passar pelo corredor e acenar-lhe, confesso...). O seu diário clínico tinha 3 Kg de papel, sendo que o diário terapêutico tinha 10 páginas (fruto das várias intercorrências) e o registo médico largas dezenas. Fui assistindo a várias situações pontuais, fáceis de resolver, e fui vendo como ele ia ficando...
Passou o Natal de 2003, e o Sr. José ganhou uma alcunha: "O Pai Natal". O Pai Natal recebeu uma prenda, que os alunos de medicina dos primeiros anos andavam a distribuir voluntariamente pelo Hospital. Até chorou, o Sr. José, coisa aliás fácil: qualquer miminho o fazia chorar. Com a sua prenda de Natal, o Pai Natal foi ficando...
Foi só em Fevereiro de 2004 que o Pai Natal, aliás, o Sr. José saíu do hospital. Depois de largas semanas de promessas "É amanhã!!", finalmente foi o dia em que se disse "É hoje!!!!". O serviço em peso foi despedir-se do Sr. José, e ele não cabia em si de contente (era aliás muito pequenino, bastante "mirradinho"!). Finalmente o Sr. José arranjou um lar onde ficar em condições, e abandonou o serviço, 10 meses depois de lá ter entrado.
Por muito terna que seja esta história, verdadeira, o Sr. José não esteve bem no Hospital, enquanto lá foi ficando... As infecções repetidas eram mais frequentes, concerteza, que no exterior, e seria concerteza muito mais feliz fora do Hospital. Fora isso, uma cama num serviço de Medicina Interna é muito preciosa, e fez muitas vezes falta, especialmente quando os corredores do serviço se enchiam de macas por não haver camas suficientes. Acima de tudo, tudo isto parece ridículo quando sabemos que o preço estimado de internamento de um doente num serviço de Medicina Interna é elevadíssimo. Os antibióticos que repetidas vezes fez são caríssimos, e seriam escusados se o Sr. José estivesse fora do Hospital. Provavelmente, o que o José "custou" por semana daria para pagar a sua estadia num lar de luxo durante dois meses... Mas os sistemas de retaguarda para estes casos, que chamamos "casos sociais", são muito poucos... E estes doentes, quer seja numa cama ou numa maca, num serviço de Medicina Interna ou num Serviço de Urgência (!), vão ficando... Simplesmente, vão ficando...
O Sr. José não ficou no hospital. Foi ficando. A verdade é que parecia sempre que havia "agora" uma oportunidade de o transferir para um sítio melhor. Mas todas as espectativas saiam goradas. E o Sr. José ia ficando por lá.
Os enfermeiros foram criando um afecto especial pelo "zézinho", lidavam com ele todos os dias. E ele fazia questão de dor sempre um enorme sorriso desdentado a quem o cumprimentava. Os médicos, visto que estava internado, todos os dias lhe passavam uma pequena visita. Ele sorria, e fazia as suas queixinhas pequenas, com uma voz apagada e hesitante. Explicava que doía a perna, as costas, a cabeça... Íamos resolvendo os seus pequenos problemas, e ele... ía ficando por lá.
Teve algumas intercorrências no internamento, como seria de esperar num indivíduo internado no hospital, "quartel-general" dos bicharocos mais agressivos. Algumas pneumonias e infecções urinárias foram sendo tratadas. Uma suspeita de AVC, que acabou por se resolver sem sequelas, permitiu a realização de uma TAC ao crânio. Surpreendeu todos os médicos como é que um indivíduo com tão pouco cérebro (estava muito atrofiado, e tinha múltiplas e extensas lesões antigas), dizíamos aliás que só tinha "meio-cérebro" (já que uma metade era um queijo-suiço na TAC), conseguia ainda falar, comer, etc... Foi sobrevivendo a todas as intercorrências, e foi ficando por lá...
Quando eu cheguei ao serviço, em Outubro de 2003, o Sr. José estava lá desde Abril. Visitava-o todos os dias (nos dias mais complicados limitava-me a passar pelo corredor e acenar-lhe, confesso...). O seu diário clínico tinha 3 Kg de papel, sendo que o diário terapêutico tinha 10 páginas (fruto das várias intercorrências) e o registo médico largas dezenas. Fui assistindo a várias situações pontuais, fáceis de resolver, e fui vendo como ele ia ficando...
Passou o Natal de 2003, e o Sr. José ganhou uma alcunha: "O Pai Natal". O Pai Natal recebeu uma prenda, que os alunos de medicina dos primeiros anos andavam a distribuir voluntariamente pelo Hospital. Até chorou, o Sr. José, coisa aliás fácil: qualquer miminho o fazia chorar. Com a sua prenda de Natal, o Pai Natal foi ficando...
Foi só em Fevereiro de 2004 que o Pai Natal, aliás, o Sr. José saíu do hospital. Depois de largas semanas de promessas "É amanhã!!", finalmente foi o dia em que se disse "É hoje!!!!". O serviço em peso foi despedir-se do Sr. José, e ele não cabia em si de contente (era aliás muito pequenino, bastante "mirradinho"!). Finalmente o Sr. José arranjou um lar onde ficar em condições, e abandonou o serviço, 10 meses depois de lá ter entrado.
Por muito terna que seja esta história, verdadeira, o Sr. José não esteve bem no Hospital, enquanto lá foi ficando... As infecções repetidas eram mais frequentes, concerteza, que no exterior, e seria concerteza muito mais feliz fora do Hospital. Fora isso, uma cama num serviço de Medicina Interna é muito preciosa, e fez muitas vezes falta, especialmente quando os corredores do serviço se enchiam de macas por não haver camas suficientes. Acima de tudo, tudo isto parece ridículo quando sabemos que o preço estimado de internamento de um doente num serviço de Medicina Interna é elevadíssimo. Os antibióticos que repetidas vezes fez são caríssimos, e seriam escusados se o Sr. José estivesse fora do Hospital. Provavelmente, o que o José "custou" por semana daria para pagar a sua estadia num lar de luxo durante dois meses... Mas os sistemas de retaguarda para estes casos, que chamamos "casos sociais", são muito poucos... E estes doentes, quer seja numa cama ou numa maca, num serviço de Medicina Interna ou num Serviço de Urgência (!), vão ficando... Simplesmente, vão ficando...
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Hospital
quarta-feira, 30 de março de 2005
Intern Blues
Venho recomendar-vos um amigo, servido em bandeja de prata. Este amigo é médico, interno do primeiro ano da especialidade de Medicina Interna. Conta-vos os seus dias mais azuis, e os mais coloridos também!
Podem, e devem, visita-lo aqui.
Podem, e devem, visita-lo aqui.
sexta-feira, 25 de março de 2005
Os "doentes saltitões"
A quem é que eu chamo "doente saltitão"? Àquele que procura directamente os médicos especialistas, sem passarem pelo "crivo" do médico generalista (clínico geral ou internista).
O "doente saltitão" interpreta os seus sintomas como correspondendo a doença de um determinado órgão, e imediatamente procura o especialista responsável pelo dito órgão. Se tem falta de ar vai ao pneumologista, se doi a barriga vai ao gastrenterologista, se tem um problema na pele vai ao dermatologista, e assim por diante.
O "doente saltitão" entra num de dois grupos: ou tem dinheiro suficiente para ir aos especialistas da privada, ou tem um sistema de saúde que faz convenções com os especialistas da privada (é o caso da ADSE e alguns seguros de saúde). Geralmente entende-se que a facilidade de acesso aos especialistas é sinónimo de bons cuidados médicos. Mas o grande problema dos "doentes saltitões", e é isso sim que me preocupa, é que essa correspondência é absolutamente falsa! De facto, estes doentes não têm um médico generalista que conheça o seu passado clínico e que olhe para o doente como um todo, mais do que um somatório de vários órgãos. Porque nem sempre uma falta de ar corresponde a uma doença pulmonar! Pode surgir por doença cardíaca, por doença muscular, por doença do sistema nervoso central, por um problema psicológico/psiquiátrico, por um problema hormonal (endocrinológico), etc, etc, etc... Não quer isto dizer que os especialistas não conhecem os diagnósticos diferenciais das doenças que tratam com mais frequência, mas é muito fácil olhar para o doente pensando predominantemente num órgão e encontrar um diagnóstico que "encaixa" mas não é correcto...
A D. Luísa tem ADSE. Foi ao consultório privado de um Clínico Geral, que trabalha no Centro de Saúde onde eu trabalho actualmente, porque não se sentia bem. Aliás, já há dois anos que não se sentia bem. Nesses dois anos tinha tido vários problemas de pele, com queda de cabelo e pele seca, pelo que tinha ido a um Dermatologista. Infelizmente, apesar das melhoras provocadas pelos cremes e champôs, não tinha ficado completamente bem. Queixava-se também de falta de força e de ar, que tinha agravado progressivamente nos dois últimos anos. Tinha também engordado vários quilos, pelo que foi seguida por um Nutricionista que tinha feito uma amiga dela emagrecer 15 quilos! No entanto, não perdeu peso algum. Por tudo isto, porque uma das suas irmãs tinha cancro, e se calhar algo mais que desconhecia, sentia-se profundamente triste. Chorava facilmente, e ficava horas a fio fechada dentro de casa sem vontade de falar com as pessoas. Uma amiga íntima recomendou-lhe um Psiquiatra excelente, que lhe diagnosticou uma depressão. Medicou-a, bem, com antidepressivos.
Outra amiga houve que, passados dois anos de "saltitar", lhe recomendou um "saltinho" a um médico de Clínica Geral - mas que é muito competente. E assim tinha ido parar ao consultório do dito Clínico Geral. Este, em face de toda esta história, facilmente suspeitou de um hipotiroidismo (doença endocrinológica em que a tiróide não produz a quantidade normal de hormona tiroideia). As análises laboratoriais confirmaram o diagnóstico, e a terapêutica adequada fez resolver a queda de cabelo, a pele seca, o cansaço, o aumento de peso e a depressão...
Pele seca tem muita gente... O dermatologista medicou de acordo com os sintomas apresentados, e a doente tinha apenas falado do problema da pele (ora se estava no dermatologista, iria ela falar da depressão?). Depressão tem muita gente, e a neoplasia da irmã dava-lhe um motivo bem plausível para se sentir mais triste... Que diabo, e havia ela de se queixar ao Psiquiatra da pele seca?! Excesso de peso, infelizmente, sobeja na população portuguesa. É óbvio que o Nutricionista fez o que devia: recomendou uma dieta adequada e exercício físico. E, caramba, porque iria ela falar da depressão ao Nutricionista?
Um médico generalista não trata todas as doenças - apesar de resolver 90% dos problemas de saúde das pessoas*. Mas olha para o doente como um todo, e encaminha as doenças que não sabe tratar para o especialista adequado. E poupa, assim, muito tempo aos "doentes saltitões"...
* Para o meu leitor ABS, que certamente lerá esta pequena crónica: recordo a aula em que este surpreendente número me foi transmitido pelo Prof. GJ. Para ele fica esta memória.
O "doente saltitão" interpreta os seus sintomas como correspondendo a doença de um determinado órgão, e imediatamente procura o especialista responsável pelo dito órgão. Se tem falta de ar vai ao pneumologista, se doi a barriga vai ao gastrenterologista, se tem um problema na pele vai ao dermatologista, e assim por diante.
O "doente saltitão" entra num de dois grupos: ou tem dinheiro suficiente para ir aos especialistas da privada, ou tem um sistema de saúde que faz convenções com os especialistas da privada (é o caso da ADSE e alguns seguros de saúde). Geralmente entende-se que a facilidade de acesso aos especialistas é sinónimo de bons cuidados médicos. Mas o grande problema dos "doentes saltitões", e é isso sim que me preocupa, é que essa correspondência é absolutamente falsa! De facto, estes doentes não têm um médico generalista que conheça o seu passado clínico e que olhe para o doente como um todo, mais do que um somatório de vários órgãos. Porque nem sempre uma falta de ar corresponde a uma doença pulmonar! Pode surgir por doença cardíaca, por doença muscular, por doença do sistema nervoso central, por um problema psicológico/psiquiátrico, por um problema hormonal (endocrinológico), etc, etc, etc... Não quer isto dizer que os especialistas não conhecem os diagnósticos diferenciais das doenças que tratam com mais frequência, mas é muito fácil olhar para o doente pensando predominantemente num órgão e encontrar um diagnóstico que "encaixa" mas não é correcto...
A D. Luísa tem ADSE. Foi ao consultório privado de um Clínico Geral, que trabalha no Centro de Saúde onde eu trabalho actualmente, porque não se sentia bem. Aliás, já há dois anos que não se sentia bem. Nesses dois anos tinha tido vários problemas de pele, com queda de cabelo e pele seca, pelo que tinha ido a um Dermatologista. Infelizmente, apesar das melhoras provocadas pelos cremes e champôs, não tinha ficado completamente bem. Queixava-se também de falta de força e de ar, que tinha agravado progressivamente nos dois últimos anos. Tinha também engordado vários quilos, pelo que foi seguida por um Nutricionista que tinha feito uma amiga dela emagrecer 15 quilos! No entanto, não perdeu peso algum. Por tudo isto, porque uma das suas irmãs tinha cancro, e se calhar algo mais que desconhecia, sentia-se profundamente triste. Chorava facilmente, e ficava horas a fio fechada dentro de casa sem vontade de falar com as pessoas. Uma amiga íntima recomendou-lhe um Psiquiatra excelente, que lhe diagnosticou uma depressão. Medicou-a, bem, com antidepressivos.
Outra amiga houve que, passados dois anos de "saltitar", lhe recomendou um "saltinho" a um médico de Clínica Geral - mas que é muito competente. E assim tinha ido parar ao consultório do dito Clínico Geral. Este, em face de toda esta história, facilmente suspeitou de um hipotiroidismo (doença endocrinológica em que a tiróide não produz a quantidade normal de hormona tiroideia). As análises laboratoriais confirmaram o diagnóstico, e a terapêutica adequada fez resolver a queda de cabelo, a pele seca, o cansaço, o aumento de peso e a depressão...
Pele seca tem muita gente... O dermatologista medicou de acordo com os sintomas apresentados, e a doente tinha apenas falado do problema da pele (ora se estava no dermatologista, iria ela falar da depressão?). Depressão tem muita gente, e a neoplasia da irmã dava-lhe um motivo bem plausível para se sentir mais triste... Que diabo, e havia ela de se queixar ao Psiquiatra da pele seca?! Excesso de peso, infelizmente, sobeja na população portuguesa. É óbvio que o Nutricionista fez o que devia: recomendou uma dieta adequada e exercício físico. E, caramba, porque iria ela falar da depressão ao Nutricionista?
Um médico generalista não trata todas as doenças - apesar de resolver 90% dos problemas de saúde das pessoas*. Mas olha para o doente como um todo, e encaminha as doenças que não sabe tratar para o especialista adequado. E poupa, assim, muito tempo aos "doentes saltitões"...
* Para o meu leitor ABS, que certamente lerá esta pequena crónica: recordo a aula em que este surpreendente número me foi transmitido pelo Prof. GJ. Para ele fica esta memória.
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Hospital
segunda-feira, 21 de março de 2005
Saúde de ferro
O Sr. José tem 93 anos. Entrou no gabinete pelo seu próprio pé, com a ajuda de uma bengala. Mas anda bem, mesmo sem a bengala. Entrou com as costas um pouco curvadas, mas com o olhar em frente, bem diferente do olhar de tantos "velhotes" de 60 anos, bem pregado no chão. O Sr. José tem muito cuidado com a alimentação, sempre teve. É diabético, mas uma pequena dose de um antidiabético oral é suficiente para controlar os valores de glicémia (açúcar no sangue). A alimentação é a sua melhor terapêutica, e cumpre-a rigorosamente. Apressou-se a colocar as análises laboratoriais em cima da mesa, para as vermos. Uma rápida vista de olhos nas análises não detectou qualquer problema! Quando lhe contámos que tem uma anemia ligeira, explicou-nos como perdeu sangue pelas fezes. Já tinha ido à consulta de uma Internista, que lhe pediu um exame endoscópico. Tinha mais um problema nas análises (que o livrinho do diabético confirmava): estava a cumprir tão bem a dieta que o antidiabético oral estava já em dose excessiva, sendo necessário reduzi-la. O colesterol, esse, estava óptimo - a minha tutora roeu-se de inveja, e eu não quero nem saber o meu. A tensão arterial estava um pouco alta, mas um pequeno ajuste na terapêutica antihipertensora seria em princípio suficiente. Rapidamente, e sem pruridos, se colocou de joelhos na marquesa para um toque rectal (apesar de estar a aguardar o exame endoscópico, o toque rectal é uma ferramenta diagnóstica importante). Tinha de facto uma pequena hemorróida, nada mais havia a salientar. A próstata, essa, estava óptima.
Certo de que estava a ser enganado, perguntei-lhe em tom de brincadeira se tinha 39 ou 93 anos. Riu-se, e gabou-se da sua saúde. Deu-me um aperto de mão, e saiu pela porta do gabinete. Para trás deixou, para além da bengala que regressou para ir buscar, uma grande lição de vida.
Certo de que estava a ser enganado, perguntei-lhe em tom de brincadeira se tinha 39 ou 93 anos. Riu-se, e gabou-se da sua saúde. Deu-me um aperto de mão, e saiu pela porta do gabinete. Para trás deixou, para além da bengala que regressou para ir buscar, uma grande lição de vida.
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quinta-feira, 17 de março de 2005
O síndrome misterioso
Mais uma história de SAP.
Chamámos a D. Assunção pelo altifalante. A ficha contáva-nos que já por ela tinham passado 80 anos, pelo que esperámos pacientemente pela sua chegada. Ouvimos depois o som da bengala intervalada pelos passos da D. Assunção, que se aproximava do gabinete. Entrou, lentamente, e sentou-se. Perguntei "Então, D. Assunção, o que a traz por cá?". Iniciou uma descrição atabalhoada de dores múltiplas, saltando da perna para a cabeça, depois passando pelas costas e abdómen. Voltava à dor de cabeça, e descia para o peito. Perguntámos se já tinha essas dores há muito tempo, e a resposta foi clara: "Uuuui, sei lá eu há quanto tempo...". Tentando inteirarmo-nos de outras patologias que tivesse a D. Assunção, perguntámos qual era a medicação que fazia habitualmente. Disse "está aqui na bolsa para mostrar...", e começou a vasculhar, lentamente, no fundo da sua bolsa. Dezenas de papéis surgiam, nenhum parecia ser o pretendido. Disse "Bem, eu tenho uma doença no sangue, aí há uns tempos andei muito mal e fui seguida no hospital. Agora com os medicamentos ando melhor! Parece-me que tenho aqui um papel onde tenho o nome da doença escrito...". E continuou a vasculhar, muuuito lentamente, todos os papéis da mala. Até que, enfim, sai o papel desejado: "É este! Este é o nome da minha doença!!". Olhámos ambos para o papel, e pensámos ambos o mesmo: deve ser o nome de algum síndrome hematológico esquisito que só os hematologistas conhecem... Até que olhámos com outros olhos para o papel e... percebemos o quanto estávamos enganados. Não me contive, e chegaram a rolar lágrimas pela minha cara abaixo de tanto rir... O dito papel está aqui reproduzido:
Não, não se tratava de três nomes dos investigadores que deram nome a algum estranho síndrome hematológico... Era o nome de um MOLHO DE CARIL...
Infrutíferas foram as restantes tentativas de perceber qual era a doença de base da velhota, e por precaução levou apenas um paracetamol para as múltiplas e habituais dores e uma recomendação para se dirigir ao médico de família...
E foi assim que um dia absolutamente infrutífero de SAP (não vi ninguém doente...) ficou absolutamente ganho. Valeu a pena esperar tanto para receber um papel assim...
Chamámos a D. Assunção pelo altifalante. A ficha contáva-nos que já por ela tinham passado 80 anos, pelo que esperámos pacientemente pela sua chegada. Ouvimos depois o som da bengala intervalada pelos passos da D. Assunção, que se aproximava do gabinete. Entrou, lentamente, e sentou-se. Perguntei "Então, D. Assunção, o que a traz por cá?". Iniciou uma descrição atabalhoada de dores múltiplas, saltando da perna para a cabeça, depois passando pelas costas e abdómen. Voltava à dor de cabeça, e descia para o peito. Perguntámos se já tinha essas dores há muito tempo, e a resposta foi clara: "Uuuui, sei lá eu há quanto tempo...". Tentando inteirarmo-nos de outras patologias que tivesse a D. Assunção, perguntámos qual era a medicação que fazia habitualmente. Disse "está aqui na bolsa para mostrar...", e começou a vasculhar, lentamente, no fundo da sua bolsa. Dezenas de papéis surgiam, nenhum parecia ser o pretendido. Disse "Bem, eu tenho uma doença no sangue, aí há uns tempos andei muito mal e fui seguida no hospital. Agora com os medicamentos ando melhor! Parece-me que tenho aqui um papel onde tenho o nome da doença escrito...". E continuou a vasculhar, muuuito lentamente, todos os papéis da mala. Até que, enfim, sai o papel desejado: "É este! Este é o nome da minha doença!!". Olhámos ambos para o papel, e pensámos ambos o mesmo: deve ser o nome de algum síndrome hematológico esquisito que só os hematologistas conhecem... Até que olhámos com outros olhos para o papel e... percebemos o quanto estávamos enganados. Não me contive, e chegaram a rolar lágrimas pela minha cara abaixo de tanto rir... O dito papel está aqui reproduzido:
Não, não se tratava de três nomes dos investigadores que deram nome a algum estranho síndrome hematológico... Era o nome de um MOLHO DE CARIL...
Infrutíferas foram as restantes tentativas de perceber qual era a doença de base da velhota, e por precaução levou apenas um paracetamol para as múltiplas e habituais dores e uma recomendação para se dirigir ao médico de família...
E foi assim que um dia absolutamente infrutífero de SAP (não vi ninguém doente...) ficou absolutamente ganho. Valeu a pena esperar tanto para receber um papel assim...
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