domingo, 15 de outubro de 2006

The End

Devo grandes desculpas a todos os que por aqui passam para ler novidades no blog... A promessa que fiz está a ser quebrada, e tenho-vos frustrado com o meu silêncio.

Diz-se que, imediatamente depois da morte, um último suspiro de vida abandona os lábios daqueles que partem. Como se a alma se escapasse, naquele momento, para ir para outro lugar. Foi talvez isso que aconteceu ao blog. Era honesto o meu suspiro, pensava que continha a vida que o blog precisava para reviver. Mas possivelmente tinha já morrido.

Tenho pena. Tenho pena de já não ser capaz de vir aqui partilhar os momentos de alegria e os momentos de tristeza que vivo no diário exercício da minha profissão. Vários motivos contribuem para o meu silêncio. Por um lado a preguiça, o cansaço, porque não gosto de escrever uma coisa qualquer, só para dizer que não estou calado. Gosto de ter disponibilidade, de tempo e alma, para escrever. E a falta de tempo, o cansaço do dia a dia, e alguma preguiça têm anulado essa disponibilidade. Por outro lado vêm os meus doentes. Trabalho num hospital central, onde muitas das coisas que vejo, em especial aquelas que me marcam ao ponto de querer escrever sobre elas, são raras ou especiais. E por isso não posso partilha-las sem correr o risco de os expor, de quebrar o fulcral sigilo que jurei.

E assim acaba o blog. Mal. Com uma agonia prolongada, uma luta interior longa entre a vontade genuína de partilhar e a vontade contida de acabar. Porque gostei muito de o escrever, porque gosto de o reler, porque deixei aqui uma parte de mim, e especialmente porque comunguei com milhares de desconhecidos esse pedaço de mim, fazendo de todos vós parte da minha família. E custa ver um familiar partir para outro lugar.

Hesitei muito antes de escrever tudo isto. Hesito no ponto final. O título deste post, colocado no fim, anuncia a vontade que tenho de não vos frustrar mais. De colocar o definitivo ponto final nas expectativas que criei. Por isso escrevo, num gesto suicida, O Fim.

Obrigado

segunda-feira, 24 de julho de 2006

Quando a vida não faz sentido...?!

A Luísa deu entrada no Serviço de Urgência Pediátrica num fim de tarde. Foi trazida pela mãe, que a tinha encontrado inconsciente no quarto com comprimidos vários em cima da cama e uma garrafa de whiskey ao lado da cama. A Luísa tinha 9 anos.
Chegada ao SU a Luísa estava muito difícil de despertar, mas respirava bem e o coração batia de forma adequada. Relatada a história da mãe, tomaram-se as medidas adequadas perante uma intoxicação medicamentosa e alcoólica. Os comprimidos em questão pertenciam à mãe, antidepressivos de várias classes, ansiolíticos e sedativos. Os doseamentos de sedativos na urina e álcool no sangue eram positivos, mas aos poucos a Luísa parecia começar a despertar. E ao longo das horas que passou internada foi sempre melhorando o seu estado de consciência.

Passado o pior, e uma série de horas depois, a Luísa estava já recuperada, e pronta para tentar explicar o sucedido:
- "Tomaste alguns comprimidos?", perguntámos
- "Sim, tomei o diazepam.", respondeu prontamente, surpreendendo os presentes.
- "Por acaso sabes-nos dizer que número estava escrito na caixa?"
- "Era o diazepam de 5 miligramas, tomei 3!", disse sem hesitar, com uma tranquilidade assombrosa.
- "E tomaste mais algum comprimido?"
- "Não, o X e o Y não tomei!". Sabia os nomes comerciais de dois antidepressivos...
Inevitavelmente perguntámos "E porquê?". Respondeu (com um inapropriado sorriso nos lábios):
- "Porque a vida não faz sentido!"...

Uma avaliação psiquiátrica e social depois tudo se tornou mais claro (perspectivando-se naturalmente bastante sombrio...). A mãe, abandonada pelo marido, bebia e abusava dos antidepressivos e sedativos. Por várias vezes tinha tentado o suicídio, com medicamentos e bebidas alcoólicas. Por várias vezes em frente à Luísa. E a Luísa, tranquilamente, imitou todos os comportamentos da mãe. Estava perfeitamente familiarizada com os nomes dos medicamentos, com a sua localização, e com a frase que, tão inocentemente, papagueou. "Porque a vida não faz sentido!"... Com um sorriso nos lábios.

segunda-feira, 17 de julho de 2006

A menina ruiva

A menina ruiva tinha batido com a cabeça no chão, fruto das brincadeiras típicas de uma criança de (quase) 2 anos. Por ter um "galo" na testa, e porque a mãe a achou um tudo ou nada sonolenta, a menina ruiva foi ao Hospital.
No altifalante da sala de espera a minha voz soou, anunciada por um horrendo "jingle" metálico, chamando a Carolina ao meu gabinete. Entrou pela mão da avó, pelo próprio pé, com ar sereno. Era a menina mais ruiva que eu tinha visto, de olhos grandes e claros. Dizem as lendas pagãs que os de cabelos ruivos são mágicos, resultado talvez do facto de ser uma cor de cabelo razoavelmente invulgar.
Perguntei à avó o que se tinha passado e depois, ainda sentado no banco, pedi à Carolina para se chegar mais perto de mim, estendendo-lhe os braços. Manteve o mesmo ar sereno, não disse uma palavra, e correu para mim, saltando imediatamente para o meu colo. Fiquei, naturalmente, supreendido por aquela atitude, tão rara em crianças daquela idade, pelo que consegui apenas sorrir, atrapalhado, enquanto observava o resultado da queda. Deixou-se observar sem um queixume, ajudando em todas as partes do exame objectivo, mas estranhamente nunca sorriu ou disse uma única palavra...
A queda não tinha provocado danos preocupantes, e portanto a Carolina iria para casa acompanhada pela mãe e pela avó, que vigiariam atentamente o seu estado durante os próximos 2 dias. Ao despedir-me da avó e dela voltei a ver no olhar dela uma expressão pacífica e satisfeita, e embora o seu rosto não sorrisse e a sua boca não se abrisse, acenou-me com um simpático adeus...
E assim, com este encontro "mágico", fiquei mais bem disposto para as longas horas de Urgência que me esperavam ainda.

terça-feira, 11 de julho de 2006

O regresso

Três meses depois, voltei a ter vontade de partilhar. Muitas histórias me têm passado pelos olhos, muitas crianças me têm passado pelas mãos. Volto ao blog, com cabeçalho novo e nova vontade de desabafar.
Com o amadurecimento vem um subtítulo para o blog, porque também a minha vida ganhou um subtítulo como aprendiz de pediatra.
Não prometo assiduidade, mas prometo certamente continuidade.
Naturalmente, manterei por completo o anonimato, pela essencial protecção dos meus doentes e das suas famílias, em absoluto respeito ao sigilo profissional a que estou obrigado.

Obrigado a todos pelas palavras de incentivo ao regresso, espero estar à altura das exigências!
Espero que, desse lado dos LCDs, continuem a participar com os vossos comentários que, como já antes afirmei, enriquecem e valorizam este blog!

"Stay tuned!"

segunda-feira, 17 de abril de 2006

...

Não será por falta de histórias para contar. Talvez sejam as ampliadas responsabilidades que me são impostas como interno da especialidade. Ou será simplesmente preguiça, e algum cansaço em relação ao formato, que me têm mantido longe do blog. Tudo isso, sim, e um dia a dia muito cheio, de trabalho, de dedicação, de aprendizagem. Mas não será concerteza por falta de histórias para contar.

Não sei ainda se é um adeus definitivo ao blog. Vou pensar nisso, deixar amadurecer em mim a nova vida, e decidir depois se volto. Talvez com outro formato, quem sabe se já não sozinho. Parece-me inevitável a mudança depois da pausa, sim, será provavelmente uma pausa. Deixa-me um pouco melancólico deixar um projecto que me é tão querido, onde por um lado tenho vindo expurgar a alma e por outro dar um pouco da "inside view" da vida de um médico. Mas juntamente com o final do Internato Geral, ao longo do qual partilhei com todos vocês as minhas experiências, acabou também o blog tal com era. Precisarei de me afastar um pouco. O que escrevi ficou, no etéreo mundo virtual, como uma colecção de histórias e desabafos que perdura.

Ao acabar de escrever estas linhas ganho a certeza de que será provavelmente um até já. Certamente a distância do blog despertará em mim novamente a vontade de partilhar, como sentimos falta apenas das coisas que perdemos ou deixamos para trás. Talvez a pausa revigore, e volte às letras com cara nova mais brevemente do que penso. Mas deixarei o tempo fazer o seu efeito, e por enquanto despeço-me de todos os que me têm acompanhado nesta aventura em jeito de diário de bordo. Obrigado. Virá provavelmente um novo barco.

terça-feira, 28 de março de 2006

Tira B

Ao longo do curso de Medicina e do Internato Geral passei por muitos serviços médicos, de vários hospitais diferentes, onde tive oportunidade de trabalhar com médicos muito particulares: com os mais teóricos e os mais práticos, com os mais humanos e os mais desumanizados, com os mais e menos interessados, motivados ou não. Uns gostam do que fazem, outros não, uns mais honestos e outros que nem tanto. Para uns eu era mão-de-obra, para outros um aprendiz.

Mas quero, porque o merecem, em jeito de desabafo ou talvez de elogio, falar da Equipa médica com quem trabalhei nos últimos 7 meses. Uso a maiúscula porque foram a única equipa verdadeiramente digna desse nome com quem trabalhei. Centrados acima de tudo em cada um dos doentes que lhes chegam às mãos, deitam braços diariamente a fazer tudo para os tratar da melhor forma, nem que seja à custa de um enorme rombo no saldo do próprio telemóvel ou da cedência de muitas horas do tempo para a família. Fui um orgulhoso membro da tira B, onde observei e absorvi o verdadeiro espírito de dedicação, o prazer do diagnóstico, a alegria do sucesso, a aceitação do insucesso, e acima de tudo o verdadeiro espírito de equipa. Em suma, a verdadeira essência da Medicina em todo o seu esplendor. Mas, mais que tudo isso, tive o privilégio de estar com verdadeiros seres humanos, que me fizeram ter por inabalável a certeza que a Medicina não precisa de ser fria, calculista e desumana.

À tira B: Como vos disse já, apesar de me ir embora levo-vos comigo. Levo-vos acima de tudo como amigos e mestres, e espero saber ter o bom senso de levar comigo a vossa maneira de trabalhar e o vosso amor pela profissão (que mais que mera profissão é uma causa). Como diz a justasoul, "odeio-vos" profundamente... Até já.

quinta-feira, 23 de março de 2006

Às voltas...

... com casa nova,
... com cidade nova,
... com hospital novo,
... com especialidade nova,
... com vida nova.
E sem tempo para o blog...

Voltarei em breve...

sábado, 11 de março de 2006

Desabafos da Rita

A Notre-Dame à noite


Aqui estou eu, numa iniciativa inédita na blogosfera... Bom, se calhar não é inédita mas achámos que seria original. Aproveitando a visita do JC e da sua mariamadalena à Cidade-Luz, resolvemos fazer um cruzamento entre os nossos blogs. Para mim e para o Zé, é óptimo poder receber bons amigos na nossa casa. Apesar de gostarmos muito de cá estar, as saudades apertam, o que torna estas visitas muito especiais. Além disso, percebi que a melhor maneira de descobrir uma cidade é quando servimos de guia para os amigos. A Notre-Dame foi uma das primeiras paragens deste fim de semana e acho que esta fotografia do JC permite ver toda a sua beleza. Obrigado aos dois pela companhia e espero que Paris vos apaixone tanto como a mim.



Rita

sexta-feira, 10 de março de 2006

Informação importante

Amanhã mudo de casa. Será de vez? Cenas dos próximos capítulos em Paris e eu.
(tinha que fazer uma cena dramática, senão não estaria de acordo com alguém que gosta tanto de cinema como a Rita...)

segunda-feira, 6 de março de 2006

Conseguimos!!


Vou ser Pediatra...


... e a minha mariamadalena Ginecologista-Obstetra!

Fotos de Anne Geddes Posted by Picasa

domingo, 5 de março de 2006

Onde me levas? (2)


Posted by Picasa

Amanhã de manhã vamos decidir que especialidades médicas iremos exercer no futuro...
Até amanhã!!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Um velho amigo

O Sr. Manuel esteve no SO, antes de ser internado no nosso serviço. Conheci-o ainda no SO. Ele estava no Hospital por uma pneumonia, mas tinha bastantes doenças de base. Uma delas era a Doença de Alzheimer. E foi essa que me surpreendeu.
Quando o cumprimentei, com um sonoro "Bom dia!!", arranquei-o ao sono superficial em que se encontrava. Surpreendido, esboçou um enorme sorriso, fingindo claramente um reconhecimento da minha pessoa. Acenou-me com a cabeça, dizendo muitas palavras (seriam?) ininteligíveis que soavam ao cumprimento que se dá a um velho amigo. Sorri de volta, ao que ele apontou para o braço direito, paralisado por um antigo AVC, dizendo "Já viste? O coiso... o... coiso!", e abanava a cabeça com uma expressão de aborrecimento por aquilo lhe ter acontecido. Perguntei-lhe então o nome, e a resposta que obtive foi um pequeno momento de introspecção, seguido de "coiso, ai... é... ai... coiso! Espera, ai...". Tentava repetidamente dizer o próprio nome, mas não conseguia de facto dize-lo... Nesse instante fui chamado ao exterior da sala, pelo que saí e voltei a entrar passados dois minutos. Ao ver-me entrar chamou-me de longe, parecia ter algo importante para me dizer, aflito para não perder as palavras. Agarrou-me então na mão, e disse cuidadosamente "Manuel... ai! Pe... Pereira Silva!". Abriu então um rasgadíssimo e francamente orgulhoso sorriso, ao que foi impossível responder-lhe de outra forma senão com outro sorriso e um "muito bem, Sr. Manuel, é isso mesmo!".
Já no serviço voltei a observa-lo em dois dias consecutivos. Em ambos me cumprimentou efusivamente, como da primeira vez, nitidamente fingindo o reconhecimento de que não era capaz. Eu não voltei a repetir a pergunta. Limitei-me a cumprimenta-lo de volta como a um velho amigo, o que o parecia deixar satisfeito por não ter deixado de se alegrar pela presença de uma recordação que tinha há muito perdido.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

Não sou poeta

Recordo, sorrindo, o frio.
Apesar da geada que hoje pintou de cristal fosco os vidros,
Eu sei que o frio, o nosso, é passado.
Sorrio, que mais, porque não preciso já da tua recordação,
Da recordação da tua paixão,
Para perder o frio.
Estiveste comigo esta noite,
Esquecendo o frio, o teu e o meu,
Como em tantas outras noites, todas.
E espanto-me ao olhar para ti, conhecendo-te de cor,
E vendo a cada olhar uma surpresa
Que me recorda o quanto te quero, todas, todas as noites.
Poderia haver a melancolia,
Tendo-te aqui todas as noites,
De te reconhecer sempre do mesmo modo.
Poderia até haver o enfado,
Tendo-te em mim todas as noites,
De uma triste monotonia.
E por isso me espanto,
Por não precisar da tua recordação para deixar de ter frio.
Por me bastares tu, aqui, todas, todas as noites,
Uma paixão presente ao invés de prometida,
Uma história vivida, muito mais que imaginada.
E se a paixão inflamada do poeta precisa do frio para sobreviver,
Da distância para estar mais perto,
A nós basta-nos estar, todas, todas as noites,
Juntos.
Por não ser poesia não sofrer,
Não sou poeta.
Amo.

terça-feira, 31 de janeiro de 2006

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Ambição

Há já alguns dias ao preparar-me para ver os doentes na enfermaria, deparei-me com o processo clínico de uma velhota de 84 anos, a D. Ilda. Estava internada para investigação de uma anemia importante, com valores que a impediriam concerteza de fazer uma vida normal. Ainda por cima aos 84 anos, quando a definição de vida normal das pessoas está geralmente já alterada. Tinha ainda uma doença das válvulas do coração, que lhe limitaria concerteza ainda mais a actividade física.
Quando entrei no quarto olhei para a cama 2, onde devia estar a D. Ilda, e não a vi. Os lençóis esvoaçavam, enquanto uma auxiliar e outra senhora os desdobravam vigorosamente para fazer a cama. Olhei para o cadeirão ao lado da cama, na esperança de a encontrar, e nada. Dei uma olhadela de longe à doente da cama 3, fechada em mundos interiores, e cumprimentei a doente da cama um, a aniversariante do outro dia. Dando pela minha presença, a auxiliar que fazia a cama sorriu e disse: "Está a ver, doutor? Até já as doentes ajudam a fazer a cama!!". Olhei uma vez, sem ter percebido bem o que me havia sido dito, e voltei a olhar quando finalmente percebi. Era a D. Ilda que fazia a cama com a auxiliar, com uma genica fora de série. Comentei, banzado, a força dela, e disse em tom de brincadeira que já estava pronta para ir embora. Ela olhou para trás, e apercebendo-se do meu ar espantado exclamou: "Doutor! Eu tenho 84 anos! Veja lá se não me estraga, quero viver pelo menos até aos 100! A minha avó foi aos 120, estou nas suas mãos!". Sorri, e respondi-lhe que concerteza não seria eu a espantar-lhe a ambição!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

Um cenário diferente

Há alguns dias atrás aconteceu algo no meu serviço de Medicina Interna que me surpreendeu. Uma doente de 34 anos, que nas últimas semanas nos tem dado água pela barba para perceber que doença tem, fez 35 anos. Ao saber desta notícia, e antes de algum médico a ter visto naquele dia, os meus chefes resolveram fazer-lhe uma surpresa. Pediram à secretária de unidade para comprar um bolo, pago pelos membros do serviço individualmente. A poucos minutos de iniciar um jejum necessário para um exame que ia realizar essa mesma tarde (exame esse que se revelou fulcral para o diagnóstico), todo o serviço irrompeu pelo quarto dela com o bolo e duas velas, cantando-lhe os parabéns. Chefe de Serviço, equipa médica, enfermeiros e auxiliares, todos interromperam as suas tarefas para entoar o "parabéns-a-você" em redor da cama dela, todos com uma pontinha de emoção. Também ela se emocionou (apesar de estar um pouco ensonada por causa da medicação), e agradeceu a surpresa. Um cenário diferente, nada habitual num local geralmente mais silencioso. Eu só me lembrava dos cartazes antigos em que uma enfermeira de dedo espetado pedia aos utentes "Shhhh! Está num hospital!". Mas as regras fizeram-se para ser quebradas de quando em vez, não é? E valeu a pena.

Ontem morreu uma cigana

Ontem morreu uma cigana.
Não era uma cigana qualquer, era uma cigana aliás muito diferente de todas as outras. Ao contrário da maioria não tinha um séquito de familiares ansiosos por saber dela. Os seus familiares não perguntavam por ela, não a visitavam no hospital. Recusaram-se aliás a aparecer quando ela já não precisava de ficar no hospital e tinha alta médica dada. Passou várias semanas internada no hospital, exclusivamente como caso social. Sem uma única visita. Nas últimas semanas estava cada vez mais distante do mundo, e ontem acabou por morrer. Ao contrário da maioria das ciganas, sozinha. Porque, ao contrário da maioria das ciganas, tinha casado com um português.

domingo, 8 de janeiro de 2006

O Natal dos hospitais

O verdadeiro Natal dos Hospitais pouco tem de Tony Carreira, Anjos ou Toy. É feito de muitas histórias tristes, que nem a aparente alegria despreocupada da música dita "pimba" consegue esconder.
O Serviço de Urgência estava, no dia 23 de Dezembro, repleto de "utentes". Uso também eu o popular eufemismo porque havia de facto bastantes utentes-não-doentes. O tradicional despejo de Natal, geralmente invisível aos olhos da maioria, apresentava-se em todo o seu esplendor no chamado "corredor externo" do SO. Em fila indiana, as macas com os chamados casos sociais acumulavam-se. Os processos clínicos eram inequívocos, os motivos de internamento eram os mais estranhos, mas todos gritavam uma palavra: abandono. Centenas de "velhotes" são todos os anos abandonados no Serviço de Urgência, sem história pregressa, sem vida de relação com o exterior, sem família. Correcção: com família desertora. O Natal é o culminar desta tendência, e este não foi excepção. Na maca 3 estava o Sr. Amaro, trazido pela família por "mau-hálito". O estado de desnutrição e desidratação, aliado ao facto de o Sr. Amaro viver num mundo apenas partilhado consigo mesmo, fechado para o exterior, obrigava à realização de análises laboratoriais. O mau-hálito não se confirmou, e a promessa de permanência para avaliação laboratorial encorajou os familiares ao desaparecimento. O número de telefone falso obrigou à permanência do Sr. Amaro na maca 3 do SO, rotulado como caso social, apesar da practicamente normal avaliação analítica...
Uma outra face do Natal no hospital é o internamento. Na cama 2, a D. Josefa olhou para mim com um ar desolado, no dia 24, quando lhe disse que não estaria ainda em condições de ir passar o Natal a casa. A dependência de oxigénio que uma pneumonia lhe causava impedia-a de se afastar do hospital. A sua família iria concerteza passar a consoada sem ela, uma consoada mais triste e sombria que as anteriores. No entanto a D. Raquel, na cama 3, estava já clinicamente melhorada - também ela de uma pneumonia. Estava em condições de, ela sim, passar a consoada com a família. Quando lho disse não sorriu, fez antes uma cara apreensiva. Explicou-me que as filhas estavam na Bélgica, que vivia sozinha, e que a relativa dependência de terceiros que ainda apresentava não lhe permitia ir para casa. A D. Josefa, quando saí do quarto, deixava cair uma lágrima de triste revolta pela face.

Este é o verdadeiro Natal dos Hospitais, ou antes uma pequena amostra...