segunda-feira, 19 de setembro de 2005

SO

12 horas apenas. São suficientes para muita água correr debaixo da ponte. E muitos doentes passarem pelo Serviço de Observação (vulgo SO). Fora as 8 altas que conseguimos dar (que rapidamente serviram para internar mais doentes), fizemos duas transferências para o serviço. Outra vaga surgiu de uma forma mais triste, um velhote muito velhinho despediu-se do mundo em silêncio. Uma senhora com 100 anos (que não tomava um único medicamento!!!) faleceu alguns dias após um AVC extenso. Numa sala mais escondida estavam dois homens que a sociedade deitou fora (ou que deitaram fora a sociedade?). Com SIDA, e com todas e mais algumas das suas complicações, decorrentes principalmente do facto de ignorarem as medicações prescritas e continuarem a utilizar drogas endovenosas (ao fim e ao cabo escolhem as drogas deles sobre as nossas...). Uns casos são simples (de diagnosticar, não de tratar), como o AVCs e as Pneumonias, e outros mais complexos. Alguns baralham-nos os diagnósticos, deixando-nos por vezes às voltas. Tentando ajudar e lidar com as situações o melhor possível.
No meio do rebuliço chegou um homem com um provável enfarte. A confirmar-se o enfarte, era o terceiro... Estava consciente, mas muito queixoso. Estava a entrar em choque (o coração já não é capaz, no choque, de bombear o sangue adequadamente), e as medidas para equilibrar a delicada balança onde o homem se encontrava não iriam durar para sempre. Entretanto, enquanto os meus colegas administravam fármacos e mais fármacos, eu fiz-lhe um ECG. Tinha de facto um enfarte, e parecia ser extenso. Rapidamente foi colocado na ambulância, para ser transferido para um local com uma unidade de angiografia (para "desobstruir" a artéria lesada) a funcionar, da qual precisava. Com ele foi um colega meu e uma enfermeira. Acabei por não saber o que lhe aconteceu, mas suspeito que o desfecho não tenha sido feliz...
A chegada do "directo" (falamos assim dos casos emergentes, pela entrada "directa" no hospital) com o enfarte interrompeu o trabalho do SO, que logo retomou o seu rumo à saida da ambulância. Um outro enfarte, esse já com alguns dias de evolução, estava a recuperar no SO. Um desfecho provavelmente diferente, felizmente, do anterior.

domingo, 11 de setembro de 2005

Medicina Interna

Começa um novo ciclo... Acaba-se a Pediatria e inicia-se o estágio na Medicina Interna. A mãe de todas as especialidades médicas hospitalares, aquela que exige os conhecimentos mais abrangentes, uma das mais maltratadas especialidades.

A Medicina Interna é uma especialidade pesada, mas muito aliciante. Lida-se diariamente com o instável equilíbrio em que vão vivendo os idosos com multipatologia, lida-se com os casos mais desafiantes do ponto de vista do diagnóstico e da terapêutica. Pensa-se muito, cada caso (do jovem ao idoso) é um desafio. Por outro lado lida-se muito com a morte, isso acontece quando a média de idades dos doentes internados ronda os 80 anos*. Lida-se com a morte num dia como um insucesso, no outro como um desfecho esperado. Por vezes com a aparente frieza de quem lida muito com ela.

Doutro ponto de vista, foi um choque voltar a observar um adulto depois de tanta criançada: mas que grandes barrigas têm os adultos!! A questão que se me colocou: "Por onde começo?!".


* Não, não é uma piada política referente às Presidenciais... Mas podia ser.

sexta-feira, 2 de setembro de 2005

Pediatria - o outro lado

Antes das mini-férias fiz um banco de Pediatria que me marcou. O primeiro bebé que vi nessa manhã tinha 2 meses de idade, o Daniel. Estava com dificuldade respiratória marcada, parecia um autêntico peixinho fora de água... A cada inspiração notava-se o esforço respiratório que ele fazia, e a cada expiração emitia um gemido (mais um sinal de dificuldade respiratória). O esforço respiratório era já prolongado, e o Daniel estava a ficar esgotado. O mais impressionante no Daniel eram os olhos, fixos no infinito. Ele estava inteiramente dedicado ao esforço respiratório, parecia absolutamente alheio a tudo o que o rodeava. A mãe do Daniel estava muito silenciosa, com os olhos húmidos e um ar apreensivo. Disse-nos que o Daniel já tinha estado com dificuldade respiratória antes, uma bronquilolite que se havia tratado algumas semanas antes com sucesso.
A auscultação pulmonar denotava também a gravidade do quadro, já practicamente que não se ouvia o ar a entrar nos pulmões do Daniel. O quadro não era para brincadeiras, e iniciámos imediatamente terapêutica pesada para reverter aquela situação. Mas rapidamente percebemos que não o Daniel não melhorava e transferimo-lo para um hospital com Unidade Pediátrica de Cuidados Intensivos. Quando a colega que o acompanhou no transporte voltou contou-nos que tiveram que o intubar e conectar ao ventilador para conseguir respirar.

Não soube nada do Daniel enquanto estive de férias, naturalmente. Quando voltei lembrei-me de perguntar o que tinha então acontecido ao menino. A minha colega fez um ar gravoso e explicou-me que o Daniel não tinha sobrevivido. Recebi a notícia com espanto, a insuficiência respiratória dele não parecia justificar tamanho desfecho, especialmente sabendo que estava já ventilado... Parece que tinha uma infecção viral grave, com atingimento do coração também, atingimento esse que acabou por ser fatal... Recebi esta notícia quando estava de urgência. Por muito que doesse, tinha dezenas de meninos doentes para ver. Tive naturalmente que seguir em frente, e agir como se nada fosse. Frieza? Não, não... O que custou foi dormir, nessa noite... Este é o lado negro da Pediatria...