quinta-feira, 26 de maio de 2005

Voltei!

Voltei!

O México é fabuloso, recomendo vivamente a Riviera Maia para umas férias de sonho! O único senão é ser tudo CARO como o raio... Mas enfim, sobrevive-se! Vale a pena!

Estes dias têm sido uma agitação, como devem compreender... Lavar roupa, cozinhar, arrumar mil e uma tralhas em casa... Enfim, vida de recém casado. As férias estão a acabar e convém preparar a vida (e a psique) para recomeçar a trabalhar depois de tempos (felizmente) tão conturbados... Segunda-feira prometo que volto à carga com as histórias da vida de um médico. Por agora só escaldões a sarar e peles a cair: façam o que eu digo, não façam o que eu faço - lema de vida da maior parte dos médicos.

A única história que trago: além do stress inerente a uma viagem de avião, convivi nesta viagem pela primeira vez com um novo stress: "Por favor que ninguém caia para o lado no avião, e se tiver que ser que haja mais médicos bordo...". Felizmente correu tudo bem!!

sexta-feira, 13 de maio de 2005

Amanhã...

...é um dia muito especial para mim. Um dia que vou recordar para o resto da minha vida, certamente! Um dia, acima de tudo, feliz!
Vou gritar ao mundo que amo a minha "Maria Madalena", e vou-lhe dizer a ela que quero ficar ao lado dela, ama-la e respeita-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida!
E depois, caros visitantes, vou-me pirar para parte incerta com ela... Naturalmente que o blog sofrerá as agradáveis consequências e estará em branco durante pelo menos uma semaninha. Mas, felizmente, é a vida!!

Até lá, vão passeando por aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, etc... Eu regresso...


PS. para os menos perspicazes - vou-me casar...

quinta-feira, 12 de maio de 2005

Malfadado órgão

Outra vez, inevitável, o pâncreas. Desta vez uma pancreatite aguda. Trata-se de uma inflamação grave do pâncreas, que pode ser provocada por cálculos ("pedras") ou por ingestão abusiva de álcool. O pâncreas inflamado começa a libertar enzimas (moléculas que servem para digerir os alimentos, algumas delas produzidas pelo pâncreas) de forma desorganizada que digerem o próprio pancreas, os órgãos vizinhos e alguns órgãos à distância. Uma senda quase imparável de auto-digestão do nosso organismo...
A D. Laura tinha 75 anos, e tinha entrado na Urgência há cerca de uma semana com uma forte dor lombar e abdominal. Foi-lhe diagnosticada uma pancreatite aguda, e as análises laboratoriais mostraram a presença de bastantes critérios de gravidade (ou seja, de mau prognóstico). Foi à partida encarada como uma doente com elevadas probabilidades de morrer (praticamente 100%...). No entanto, na semana que se seguiu a recuperação foi muito melhor que a esperada. As várias análises laboratoriais melhoraram, e já andávamos a dizer uns aos outros pelos corredores que "afinal parece que não tinhamos razão!". Mas o estado geral da D. Laura era mau, e estavamos perfeitamente cientes dos riscos.
Ontem de manhã fui o primeiro da minha equipa a chegar ao serviço. Estava eu a olhar para o quadro dos doentes, a ver se tinham entrado doentes novos, quando sou abordado por uma enfermeira: "O Dr. é da equipa do Dr X?". "Sou, sim", respondo. Explica-me: "A doente da cama 1 dos Intermédios parou. Está lá o Dr. Y, que estava no corredor.". Olhei para o quadro e identifiquei imediatamente a doente. Deu-me um friozinho na barriga, mas imediatamente me lembrei do péssimo prognóstico que tinha aquela doença. Fui para o quarto da doente (uma Unidade de Cuidados Intermédios), sem correr. Em frente à cama estava o Dr. Y, com a pasta da doente na mão. "Tinha muitos critérios de gravidade..." disse eu. Respondeu-me: "Pois, era o que eu estava aqui a ver..." - fechou a pasta e pousou-a aos pés da doente - "Não podemos fazer nada". Concordei. No monitor ainda se viam complexos que denotavam actividade eléctrica no coração, mas o coração já não estava a bater (situação que chamamos "dissociação electro-mecânica", que tem uma taxa de insucesso na reanimação muito elevada) nem os pulmões funcionavam. A enfermeira que tinha identificado a paragem retirou da cara o facies preocupado, e substituiu-o por um facies resignado. "Vamos só esperar aqui um bocadinho, está quase.", disse o Dr. Y. E ficámos a ver a actividade eléctrica desaparecer. O resto da minha equipa foi chegando aos poucos, e todos concordaram com a decisão de não-reanimação. Passado algum tempo verificou-se, então, o óbito. Causa de morte: pancreatite aguda.

E depois fomos beber café. Tinhamos 15 doentes vivos para tratar a seguir.

terça-feira, 10 de maio de 2005

Depois do fax

- Bom dia D. Otília! Então como passou a noite? A comichão está melhor?

-Está sim, doutor, de manhã está mais acesa mas com os medicamentos alivia bastante! Estou é cada vez mais amarela... Já chegou o resultado do exame?

- [glup...] O exame chega hoje, em princípio. Depois quando soubermos do que se trata vimos cá falar consigo.

- Os Doutores não me escondam nada. Eu não sou mariquinhas, como os meus filhos que choram por tudo e por nada... Sou uma mulher de armas! (sorri para mim com um sorriso largo) Vou à luta até ao fim!

- Oh D. Otília, não lhe estamos a esconder nada! [gasp...] Mas quando o exame chegar e nós falarmos entre nós sobre ele explicamos-lhe tudo!

- Está bem, senhor doutor, mas veja lá se me põe com cores de gente, que o amarelo está fora de moda!!

[risos]

- Está bem, D. Otília, acabe lá de tomar o pequeno-almoço descansada que já cá a venho observar melhor!

[Saio da sala com o sorriso nº3 montado, que se desvanece após passar a porta. Ainda não discutimos o caso entre nós decentemente, e a doente não é minha... A verdade vai ter que esperar melhor momento... Mas custa, caramba...]

segunda-feira, 9 de maio de 2005

O fax que veio do Inferno

A D. Otília, que tem cerca de 55 anos, já está internada no serviço de Cirurgia Geral há uns dias. Entrou através da urgência com uma cólica biliar. Suspeitava-se de litíase (pedras) na vesícula biliar, uma vez que após o episódio de dor começou progressivamente a ficar com icterícia (coloração amarelada da pele). Sem dúvida que se tratava de uma icterícia obstructiva (alguma obstrução à drenagem da bílis fazia acumular pigmentos amarelados no organismo). O local e natureza da obstrução é que eram uma incógnita. As análises laboratoriais eram compatíveis com o mesmo problema, mas a ecografia não mostrou pedras nenhumas. Mostrou apenas que as vias biliares (canais que levam a bílis do fígado e vesícula para o intestino) estavam dilatadas, o que confirmava a existência de uma obstrução. Mas a ecografia não mostrava o local nem o motivo da obstrução. Pedimos então, na semana passada, um exame que tem por base a utilização da ressonância magnética para observação das vias biliares (a que chamamos CPRM). Esse exame faz-se fora do hospital, e assim a doente foi até à clínica de imagiologia fazer a CPRM.

Hoje a doente estava amarelíssima. Estava muito mais ictérica que na semana passada, a obstrução mantinha-se de forma nítida. Para além disso, as análises mostraram que além das vias biliares, já o fígado está a sofrer as repercussões da obstrução. Uma outra análise, pedida na semana passada, deixou-nos imediatamente de pé atrás: um marcador tumoral está um pouco aumentado... Os marcadores tumorais são substâncias detectadas no sangue que costumam estar associados a cancros (não são 100% fiáveis, mas dão fortes pistas).
Ao fim da manhã, e depois de umas quantas insistências telefónicas, chega o fax da clínica com o relatório (o exame só chega amanhã). Ficámos a olhar para o fax. Nos olhos dos médicos que estavam comigo lia-se o mesmo sentimento que me trespassava: desolação. A CPRM mostrou que a obstrução é provocada por uma neoplasia do pâncreas. Apesar de não identificar metástases, o exame mostrou que o tumor se localiza perigosamente perto de vasos de grandes dimensões do abdómen. Após um breve momento de silêncio, discutimos brevemente as hipóteses a considerar: ou se desiste de tentar tratar (os tumores do pâncreas têm um prognóstico péssimo, e este parece estar numa fase pouco favorável) e se faz algo para aliviar a obstrução provocada pelo tumor, ou se tenta tudo por tudo (com muito baixas probabilidades de sucesso) e se faz uma cirurgia enorme que a vai deixar diabética e muito fragilizada. Precisamos de mais dados (nomeadamente do próprio exame, não apenas do relatório, e talvez demais exames) e mais reflexão. Mas uma coisa é certa: as probabilidades de aquela mulher de 55 anos estar morta daqui a um ano são enormes. E qualquer que seja a decisão tomada aquela mulher vai sofrer muito...

sexta-feira, 6 de maio de 2005

Fazer das tripas coração

Hoje foi um dia especial. Estive no bloco operatório e, apenas no final da primeira semana de estágio, tive oportunidade de ajudar bem de perto nas cirurgias. Já tinha algumas saudades das "tripas", é caso para dizer que, quase literalmente, ando "a fazer das tripas coração"...

A primeira cirurgia foi, infelizmente, de muito curta duração. Mais uma laparotomia exploradora, mais uma carcinomatose peritoneal (disseminação de um cancro entre os órgãos do abdómen). Tratava-se de um cancro do estômago, que tinha sido encontrado já numa fase avançada. Tinha-se afastado inicialmente a hipótese de cirurgia, mas a quimioterapia tinha tido resultados espectaculares. Tinha reduzido imenso a massa tumoral, e não eram visíveis na TAC (exame de diagnóstico radiológico de precisão elevada) quaisquer outras lesões, tinham regredido (aparentemente) de forma completa. Dessa forma, decidiu-se avançar para a cirurgia numa tentativa de retirar o que sobrava do tumor. Quando passámos a mão no interior do abdómen sentimos que tudo tinha uma textura semelhante a "lixa"... A gordura no interior do abdómen estava encarquilhada por massas pequenas mas duras que nem pedra... Imediatamente a cirurgia inverteu o seu sentido, e sendo que não havia necessidade de fazer qualquer intervenção como terapêutica paliativa, fechámos sem fazer quase nada... Fizémos apenas uma biópsia daquelas massas, para análise pela anatomopatologia. Mas infelizmente, mais uma vez, resumiu-se a abrir e fechar...

A segunda cirurgia era também a um tumor, desta vez do pâncreas. O tumor estava bem localizado (no que se chama de "cauda do pâncreas"), e não havia evidência de invasão de outros órgãos ou de metástases. Era, portanto, necessário remover uma boa parte do pâncreas (e o baço). O pâncreas é um órgão de acesso difícil, escondido atrás do estômago e "enfiado" no meio de imensos vasos grandes com os quais é preciso ter muito cuidado... A abordagem cirúrgica do pâncreas é complicada, mas são cirurgias muito "bonitas". Esta expressão, embora possa ser um pouco chocante para quem está de fora, significa que tem uma técnica cirúrgica muito delicada, complexa, que a torna de certa forma estimulante... Do ponto de vista humano, não tem graça nenhuma ter que ser submetido a uma cirurgia ao pâncreas, e as doenças do pâncreas são em geral bastante complicadas e geralmente com mau prognóstico... Mas quem executa as cirurgias, sem perder obviamente noção da vertente humana, gosta de certa forma destes desafios. Qualquer médico lida com situações que do ponto de vista humano são difíceis, é preciso gostar de medicina para saber lidar com isso... Mas, voltando ao caso, a cirurgia correu bem. Durou umas três horas e meia (a minha inexperiência levou a que os vários passos da cirurgia me fossem explicados com mais cuidado, pelo que demorou um pouco mais que o habitual), mas não houve complicações nenhumas. Agora resta esperar que todo o esforço seja recompensado com alguns anos de vida da doente!! Entretanto, eu hoje durmo com a sensação de dever cumprido... O futuro o dirá...

quinta-feira, 5 de maio de 2005

Banco de Cirurgia

Hoje fiz Urgência de Cirurgia Geral. Foi uma urgência calma, não houve muita agitação. Entre um corte no dedo feito com uma varinha mágica, um corte na cabeça feito por um cano de esgoto e uma pedrada valente na cabeça não houve trabalho a sobejar.
O caso mais stressante foi o de uma rapariga de 16 anos que tinha sido atropelada. Felizmente não apresentava lesões muito graves, para além de um traumatismo craniano ligeiro. Vai, no entanto, ficar com uma cicatriz jeitosa na testa... Ainda assim teve sorte, não parecia ter fracturado nada e não tinha lesões evidentes de órgãos abdominais. Apanhou um grande susto, isso sim...
O caso mais assustador, do ponto de vista sociológico, resultava de uma discussão banal. Quem não assistiu já (ou esteve até envolvido numa) a uma disputa de lugar de estacionamento? Pois bem, esta não teve um resultado nada simpático... Um dos envolvidos resolveu agredir o outro com uma faca grande (descrita por quem presenciou como uma catana), de um só golpe. Fez-lhe um corte da orelha até ao queixo por onde se espreitava para dentro da boca... Muita sorte tinha ele em ter bochechas gorduchas, pior seria se assim não fosse... Claro que, uns centímetros abaixo, e tinha-lhe cortado o pescoço... O trânsito em Portugal é uma selva, de facto... Assustador!!

terça-feira, 3 de maio de 2005

Laparotomia exporadora

Finalmente começou o meu estágio na Cirurgia. Hoje estive a ajudar numa laparotomia exploradora. Laparotomia significa, basicamente, "abrir a barriga", e exploradora porque pretende explorar o abdómen para esclarecer um diagnóstico (com observação directa, biópsias) e eventualmente fazer alguma manobra terapêutica cirúrgica necessária.
O caso era dramático. Pressuponha-se que a laparotomia exploradora fosse breve, porque era provável que se tratasse de uma neoplasia já num estadio inoperável. Trata-se de uma mulher de 55 anos que há uma dezena de anos atrás descobriu uma neoplasia do sistema nervoso periférico (Schwanoma...), dentro do abdómen. Dez anos depois de estar aparentemente curada começou a sentir dores abdominais difusas, o abdómen aumentou de volume (por ascite, como no post anterior), e perdeu peso de forma relativamente rápida. Os exames complementares de diagnóstico não foram muito esclarecedores em relação à causa, mas detectavam a existência provável de várias massas no abdómen.
E assim foi. Abrimos, olhámos, palpámos, biopsámos e fechámos. Tinha todo o aspecto de se tratar de várias metástases entre os órgãos do abdómen, situação chamada "carcinomatose peritoneal". E agora? Muito pouco podemos fazer. Neste momento esperamos os resultados, se bem que já sabemos o que vão dizer...