Hoje participei numa cirurgia.
Já conhecia o doente, tinha-o seguido vários dias na enfermaria, quando ele tinha estado internado poucas semanas antes. Tem cancro. Sabe que tem uma "coisa ruim", mas pergunta pouca coisa, prefere ler-me o desalento nos olhos. E lê bem, não há já muito a fazer. A cirurgia era paliativa. Isto significa que pretende aliviar algum sofrimento, sem no entanto pretender curar o incurável.
Antes da cirurgia cumprimentou-me: "Oh, senhor doutor!". Pediu desculpa pelo sorriso desdentado, tinham-lhe tirado a placa. Não estava nervoso. Não são só os animais irracionais que sabem resignar-se ao inevitável, também os humanos pressentem mais do que percebem. Tinha nos olhos a calma de quem sabe que a morte não está muito longe.
A cirurgia mostrou que estava tudo pior do que se pensava. O desalento nos olhos do primeiro cirurgião dizia tudo, quando ele palpava todo o abdómen por dentro.
Já depois da cirurgia, ainda meio abananado (efeitos do já famoso Propofol - não faço ideia se era genérico), reconheceu-me quando me cheguei a ele no recobro. As mesmas palavras, uma amargura diferente no tom: "Oh, senhor doutor...". Deu-me umas pancadinhas nas costas, eu afaguei-lhe a careca. "Dói-me tudo..." , "Daqui a pouco vai sentir-se melhor" disse eu, e dei-lhe a mão. Ele apertou-me a mão. E eu engoli em seco, e esbocei um sorriso.
quinta-feira, 21 de outubro de 2004
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