domingo, 7 de setembro de 2008
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
Uma questão linguística...


Há uns meses atrás, estava eu - para variar - de banco, quando me aparece uma menina de 7 anos acompanhada pelos seus pais. História: Passeavam pelo Jardim Zoológico, quando viram o recinto das girafas. Entusiasmada pelas capacidades fabulosas da língua da girafa, a menina decide deitar a língua de fora. Os pais, animados pela brincadeira, iniciaram então uma sessão de "língua de girafa", imitando os três a extraordinária flexibilidade da língua do animal. Ei senão quando, ao olhar para a língua da sua filha em plena extrusão, viram aterrados algo que os fez recorrer a cuidados pediátricos urgentes... Umas "bolas", lá bem ao fundo da língua, tão bizarras que só podiam ser doença. As ditas bolas, expliquei-lhes depois (contendo afincadamente a diversão provocada por evento tão curioso), são papilas gustativas (as chamadas circunvaladas, na imagem abaixo) dotadas de sensibilidade para o paladar amargo... A pesquisa de imagens do Google deu-me uma ajuda, para os convencer da normalidade de tais "bolas". No entretanto, já que estavam de língua de fora, podiam ter espreitado para a boca um do outro. Aperceber-se-iam da presença das ditas cujas... 

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quarta-feira, 3 de setembro de 2008
terça-feira, 2 de setembro de 2008
domingo, 31 de agosto de 2008
No limbo
Quando nasceu pesava pouco mais de meio quilo. É muito pouco, de menos, e assustador quando pensamos que pesava tanto como meio pacote de leite (eu tenho esta mania de comparar tudo com pacotes de leite). Mas aquela pequena amostra de gente mostrava querer ficar entre nós, e num acto entre o heroismo e a piedade permitiu-se que assim fosse. A mãe, uma adolescente assustada, não tinha planeado nada daquilo. Saía completamente fora dos seus planos, e esconder a gravidez foi a solução que encontrou. Da mesma forma, continuava a desejar que aquilo não lhe tivesse acontecido. E nesse não (querer) amar, não fez análises, ecografias, não assumiu quaisquer outras formas de vigiar a gravidez. Não sabemos o que fez, ou o que aconteceu, para que às 23(?) semanas o bebé nascesse. Mas nasceu. Ela certamente não queria que ele nascesse. Queria que ele desaparecesse, que minguasse, que se escondesse, e, o ideal, que aquilo nunca tivesse acontecido. Mas nasceu. E, pior, chorou.
A perspectiva que tem um bebé no limiar da viabilidade (actualmente as 23 semanas), é muito complexa. A indução maturativa (administração à mãe de medicamentos para acelerar o amadurecimento dos pulmões e outros órgãos do bebé) e a administração de surfactante pulmonar vieram modificar muito a vida dos prematuros, trazendo-lhes uma esperança acrescida de vida. E quando se fala de um prematuro, não falamos só de vida ou morte. Falamos também (tema polémico e difícil) de QUE vida. A prematuridade extrema pode resultar em inúmeras sequelas, danos crónicos que no limite podem ser compatíveis com formas de vida muito frágeis. E portanto, não sendo Deuses, temos por vezes que nos confrontar com decisões extremamente difíceis. Investir, ou não, em salvar a vida de uma criança no limiar da viabilidade? Se investirmos em excesso estamos, nos casos limite, a prolongar a vida durante alguns dias ou semanas em condições miseráveis (tubos por todos os lados, apitos, barulhos, picadas, dor, medicamentos...), acarretando um sofrimento acrescido para os pais e bebés (e médicos...) absolutamente desnecessário. Por outro lado, em situações de fronteira, o excesso de investimento pode permitir a sobrevivência de crianças com quase nulo contacto com o exterior, com múltiplas doenças graves, com necessidade de múltiplos internamentos, com complicações atrás de complicações até que a vida se finde ao fim de alguns anos de tortura passados em camas de hospital. E se alguns deles são pelos corajosos amados (mas sempre com altos e baixos), outros são abandonados. Pareceria misericordioso, depois de corrida a tinta e espreitado o fim do livro, que se tivesse deixado pura e simplesmente a natureza seguir o seu curso, proporcionando o conforto necessário enquanto o coração se apagava. O problema é que nos falta a bola de cristal, e naquele momento nunca sabemos que tipo de vida estamos a - horrenda decisão - permitir ou impedir. E numa fracção de segundo, com três enfermeiros, um interno de pediatria, dois obstetras e um anestesista a espreitar por cima do ombro, decidir - não se crendo ou querendo ser Deus - a vida ou a morte de um ser humano. Quando o que na faculdade nos ensinam, o que as pessoas esperam de nós e o que nós queremos fazer é salvar vidas, a melhor atitude pode por vezes ser esperar, em sossego (e tumulto interior), a morte.
Três dias depois de ter nascido, depois de intubado, picado, repicado e medicado, e num aparato de apitos e alarmes, o bebé morreu.

A perspectiva que tem um bebé no limiar da viabilidade (actualmente as 23 semanas), é muito complexa. A indução maturativa (administração à mãe de medicamentos para acelerar o amadurecimento dos pulmões e outros órgãos do bebé) e a administração de surfactante pulmonar vieram modificar muito a vida dos prematuros, trazendo-lhes uma esperança acrescida de vida. E quando se fala de um prematuro, não falamos só de vida ou morte. Falamos também (tema polémico e difícil) de QUE vida. A prematuridade extrema pode resultar em inúmeras sequelas, danos crónicos que no limite podem ser compatíveis com formas de vida muito frágeis. E portanto, não sendo Deuses, temos por vezes que nos confrontar com decisões extremamente difíceis. Investir, ou não, em salvar a vida de uma criança no limiar da viabilidade? Se investirmos em excesso estamos, nos casos limite, a prolongar a vida durante alguns dias ou semanas em condições miseráveis (tubos por todos os lados, apitos, barulhos, picadas, dor, medicamentos...), acarretando um sofrimento acrescido para os pais e bebés (e médicos...) absolutamente desnecessário. Por outro lado, em situações de fronteira, o excesso de investimento pode permitir a sobrevivência de crianças com quase nulo contacto com o exterior, com múltiplas doenças graves, com necessidade de múltiplos internamentos, com complicações atrás de complicações até que a vida se finde ao fim de alguns anos de tortura passados em camas de hospital. E se alguns deles são pelos corajosos amados (mas sempre com altos e baixos), outros são abandonados. Pareceria misericordioso, depois de corrida a tinta e espreitado o fim do livro, que se tivesse deixado pura e simplesmente a natureza seguir o seu curso, proporcionando o conforto necessário enquanto o coração se apagava. O problema é que nos falta a bola de cristal, e naquele momento nunca sabemos que tipo de vida estamos a - horrenda decisão - permitir ou impedir. E numa fracção de segundo, com três enfermeiros, um interno de pediatria, dois obstetras e um anestesista a espreitar por cima do ombro, decidir - não se crendo ou querendo ser Deus - a vida ou a morte de um ser humano. Quando o que na faculdade nos ensinam, o que as pessoas esperam de nós e o que nós queremos fazer é salvar vidas, a melhor atitude pode por vezes ser esperar, em sossego (e tumulto interior), a morte.
Três dias depois de ter nascido, depois de intubado, picado, repicado e medicado, e num aparato de apitos e alarmes, o bebé morreu.
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quinta-feira, 28 de agosto de 2008
Uma verdade soprada ao ouvido
Há dias em que sinto que nunca serei capaz de saber tudo o que faria de mim um bom Pediatra - especialmente aqueles dias em que estudo e leio artigos científicos, e me sinto burro e pequenino. Felizmente são poucos (devia estudar mais vezes, eu sei...). Mas os dias que valem mesmo a pena são aqueles em que me sinto capaz de tudo, feito para isto, e esses apagam os dias menos bons e enfiam-nos num saco. Esses dias não vêm quando estudo ou leio, mas quando estou no terreno, a "meter a mão na massa", a ver doentes, a pensar, a diagnosticar e agir*.
Naquele banco vi dezenas de "dores de barriga", e dezenas de dores de barriga enviei de volta para casa, com diagnósticos como "gastroenterite aguda", "obstipação", ou o brilhante diagnóstico "simples-dores-de-barriga-não-sabemos-porquê-mas-não-parece-nada-de-grave". Já ao entrar da noite, ao cruzar-me com a minha colega Paula no corredor comentei: "Hoje já vi dezenas de dores de barriga, tenho a certeza que algum volta amanhã com uma apendicite aguda. O problema é que não sei qual deles...". Ela sorriu, e seguiu o seu caminho. Sentei-me então no meu gabinete e chamei o Pedro.
O Pedro tinha 9 anos, e a ficha de triagem informava-me que tinha - surpresa! - dor de barriga. Ao ve-lo entrar no gabinete pensei: "Este miúdo tem uma apendicite.". Tinha qualquer coisa que não me deixou tranquilo (o tal "mau ar", termo subjectivo que detestava até me ver confrontado com a inevitabilidade da sua utilização, à falta de descrição mais assertiva), mas a história contada era inocente, e a observação do doente não era característica de apendicite. Os sinais clássicos não estavam lá, e tinha muito pouca coisa dos menos clássicos. Um conflito estabeleceu-se dentro de mim, entre o meu feeling pessimista e o meu lado racional - que não tinha nada a que se agarrar para deixar seguir o feeling. E enquanto a minha boca apressada explicava que ia pedir análises laboratoriais, uma voz soava-me na cabeça "Tu não és de pedir exames desnecessários, o que é que estás a fazer!?". O Pedro saiu, descontente com a ideia de ser "furado", e eu continuei a trabalhar.
Algum tempo depois chegaram as análises. Ao abri-las, uma surpresa: parâmetros infecciosos elevados. Pedi-lhe uma ecografia abdominal et voilá, lá estava ela. Foi operado, e resolvido o problema.
Os exames laboratoriais e de imagem devem, de facto, ser usados com critério rigoroso. Mas tenho vindo a aprender que nunca devemos menosprezar um feeling... Às vezes há alguém a soprar-nos a verdade ao ouvido... E isto de ser médico às vezes é dificil.
* Tens razão MM
Naquele banco vi dezenas de "dores de barriga", e dezenas de dores de barriga enviei de volta para casa, com diagnósticos como "gastroenterite aguda", "obstipação", ou o brilhante diagnóstico "simples-dores-de-barriga-não-sabemos-porquê-mas-não-parece-nada-de-grave". Já ao entrar da noite, ao cruzar-me com a minha colega Paula no corredor comentei: "Hoje já vi dezenas de dores de barriga, tenho a certeza que algum volta amanhã com uma apendicite aguda. O problema é que não sei qual deles...". Ela sorriu, e seguiu o seu caminho. Sentei-me então no meu gabinete e chamei o Pedro.
O Pedro tinha 9 anos, e a ficha de triagem informava-me que tinha - surpresa! - dor de barriga. Ao ve-lo entrar no gabinete pensei: "Este miúdo tem uma apendicite.". Tinha qualquer coisa que não me deixou tranquilo (o tal "mau ar", termo subjectivo que detestava até me ver confrontado com a inevitabilidade da sua utilização, à falta de descrição mais assertiva), mas a história contada era inocente, e a observação do doente não era característica de apendicite. Os sinais clássicos não estavam lá, e tinha muito pouca coisa dos menos clássicos. Um conflito estabeleceu-se dentro de mim, entre o meu feeling pessimista e o meu lado racional - que não tinha nada a que se agarrar para deixar seguir o feeling. E enquanto a minha boca apressada explicava que ia pedir análises laboratoriais, uma voz soava-me na cabeça "Tu não és de pedir exames desnecessários, o que é que estás a fazer!?". O Pedro saiu, descontente com a ideia de ser "furado", e eu continuei a trabalhar.
Algum tempo depois chegaram as análises. Ao abri-las, uma surpresa: parâmetros infecciosos elevados. Pedi-lhe uma ecografia abdominal et voilá, lá estava ela. Foi operado, e resolvido o problema.
Os exames laboratoriais e de imagem devem, de facto, ser usados com critério rigoroso. Mas tenho vindo a aprender que nunca devemos menosprezar um feeling... Às vezes há alguém a soprar-nos a verdade ao ouvido... E isto de ser médico às vezes é dificil.
* Tens razão MM
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Hospital
sábado, 23 de agosto de 2008
Questionável!!
Uma comparação muito questionável mas assustadoramente realista!
MyHeritage: Celebrity Morph - Desenho arvore genealogica - Sobrenomes
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Coisas
Está tudo explicado...
Politiquices de fora, está brilhante.
MyHeritage: Celebrity Morph - Modelo de arvore genealogica - árvore geneológica da família
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Coisas
sexta-feira, 22 de agosto de 2008
Ando a cantarolar isto
Tive a sorte de assistir a uma "ante-estreia" desta música num mini-concerto da Mariza.
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Gosto
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
Erro de cálculo
A Anilde, uma linda menina negra de 4 anos, caíu. Fez uma ferida no meio da testa, não muito grande, e foi assim com os seus pais à Urgência. Depois de a convencer que colocar Steristrips não custava nada, coloquei as luvas.
Pergunta da praxe:
- "Então quem é que tem umas luvas iguais às minhas, assim branquinhas?"
- "..."
- "Dou-te uma pista: tem orelhas muito grandes e pretas!"
- "Ah! A minha tia Felicidade!"
Resolvido o problema, na fase das despedidas, fez uma cara triste e perguntou entredentes se eu não lhe ia pesar o coração. Disse-lhe que tinha a certeza que era muito grande e pesado. Vá-se lá entender.

- "Então quem é que tem umas luvas iguais às minhas, assim branquinhas?"
- "..."
- "Dou-te uma pista: tem orelhas muito grandes e pretas!"
- "Ah! A minha tia Felicidade!"
Resolvido o problema, na fase das despedidas, fez uma cara triste e perguntou entredentes se eu não lhe ia pesar o coração. Disse-lhe que tinha a certeza que era muito grande e pesado. Vá-se lá entender.
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Hospital
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Um confronto difícil
Durante toda a gravidez a Susana imaginou como seria o Pedro. Imaginava-o moreno, de cabelos lisos - como a mãe - mas tinha uma leve esperança que ele tivesse olhos verdes. Apesar de tudo o pai tinha-os claros, e na família da mãe - dizia a tia Micas - havia uns dois ou três primos afastados com olhos assim. E um moreno de olhos verdes é sempre especial. Imaginava como seria a sua voz, o seu choro até. Tinha planos para enormes passeios, pelos vários jardins da cidade, uma visita ao Oceanário quando fosse maiorzinho. De certeza que o Pedro ia gostar de peixes, o pai pescava nos tempos livres e a Susana tinha um quê de ambientalista. A Susana achava que o Pedro ia ser bom aluno, tinha uma série de estratégias infalíveis para que ele gostasse de estudar. Tinha pensado até em estimular-lhe o gosto pela música, umas aulas de piano talvez. A mãe dela avisava-a, meio na brincadeira, que as coisas podiam não ser assim, que o que importava é que viesse com saúde - mas recordava que na ecografia 3D tinha o perfil do avô, um homem de carácter sério. Só podia ser um homem a valer.
Um dia, depois de muito penar, o Pedro chegou finalmente. Era moreno, como a mãe previra, olhos ainda cinzentos e escondidos. Era sem dúvida diferente do que tinha imaginado - o perfil era o do tio - e limitava-se a chorar, mamar, e fazer as suas necessidades (um cocó verde escuro horrível que nunca tinha passado pelas fantasias da Susana, mas que era normal - dizia a Enfermeira). Mas era o bebé mais lindo que ela alguma vez tinha visto (as mães com que partilhava a enfermaria do puerpério diferiam da sua avaliação comparativa, mas isso que importava...). Era o seu bebé e, apesar de nada ter sido até então como tinha imaginado (e, que raio, como as amigas com bebés lhe tinham dito) estava serena e confiante. Esperava então a primeira visita dos Pediatras, mas como o Pedro tinha nascido ao fim do dia isso iria ficar para a manhã seguinte.
Pelas 9h00 daquele dia, a Dra. Inês (futura Médica de Família a estagiar em Pediatria no Puerpério) agarrou na craveira e na fita métrica e seguiu para a cama dois. Como aquele bebé, o "Filho de Susana ...", não tinha sido visto ainda cabia-lhe a tarefa de fazer um enorme rol de perguntas relativas à gravidez e parto. Tratava-se do primeiro filho de uma jovem de 25 anos, cuja gravidez tinha sido desejada, planeada e vigiada de forma adequada. Tinha todas as análises e ecografias normais, feitas nos tempos certos. Nada falhara. O parto tinha decorrido sem intercorrências de maior, e o bebé estava aparentemente bem, se bem que preguiçoso a mamar. Bebé despido para observar, começou pela auscultação cardíaca. Não conseguindo disfarçar a apreensão, explicou à mãe que lhe parecia ouvir um sopro e que ia pedir a opinião de um outro colega. A Inês chamou-me, eu tinha acabado de dar uma alta e podia naquele momento ir com ela. No corredor uma Enfermeira alertou-me: "O bebé da cama dois, além de estar preguiçoso para mamar, está um bocado hipotónico." Como era o mesmo bebé, fiquei um pouco mais preocupado, mais atento. Quando cheguei ao pé da Susana o seu olhar dizia tudo, não tinha brilho. Estava claramente preocupada, e antes sequer de poder observar o bebé fui bombardeado com perguntas. Expliquei que tinhamos que avaliar o bebé, com calma, e que só depois poderíamos adiantar mais coisas. A auscultação era claramente "não normal", e diferente da maioria dos sopros "inocentes" que ouvimos todos os dias em tantos bebés. Era provável que existisse mesmo um problema cardíaco, mas a sua natureza era incerta. Esta foi toda a informação que a Susana foi capaz de reter naquele momento. Tudo o resto que eu tinha para lhe dizer ia ter que esperar pelo dia seguinte. Expliquei-lhe que tinhamos que esperar algum tempo, para percebermos como evoluiam as coisas nas horas seguintes. Quando saí da sala a Susana chorava em silêncio.
Quando o Pediatra saíu a Susana começou a chorar. Tinha percebido que não seria assim tão simples como ali tinha sido dito, mas aquela informação era já demasiada para o que conseguia aguentar. O embate era grande, o bebé perfeito que ela tinha imaginado não existia. Tinha um problema, e talvez fosse maior do que estava preparada para admitir naquele momento. Durante o resto do dia a Susana dedicou-se ao seu pequeno. Afinal as mamadas seguintes correram melhor, e o bebé adaptou-se um pouco mais à mama. Conversou longamente com o João, o seu marido, e com a sua mãe, e ao longo do dia o confronto entre o bebé imaginado e o bebé real foi dando lugar a uma aceitação maior. Afinal, fosse o que fosse, aquele era o seu filho, o seu bebé, e ela tinha que ser forte "no matter what".
Quando no dia seguinte voltei a falar com a Susana senti-a diferente. Estava mais calma, e parecia estar já preparada para o resto. Voltei a observar o bebé atentamente, e expliquei-lhe que encontrávamos uma série de pequenas alterações físicas no bebé, cada uma delas com um significado muito pequeno por si. Expliquei-lhe que se cada uma delas viesse num bebé diferente nenhum deles merecia preocupação, e deles diríamos "não é defeito, é feitio!". Mas todas aquelas pequenas alterações juntas podiam significar mais alguma coisa. Era possível que algum defeito genético estivesse na base de tudo aquilo, como era - apesar de tudo - possível que fosse só mesmo "feitio". E só uma investigação feita com calma e em consulta, com a ajuda do passar do tempo, podia dar alguma resposta a todas as questões que se levantavam naquele momento. Contrastando com a reacção do dia anterior, vi nos olhos da Susana uma determinação paciente - a de amar o Pedro independentemente de tudo o que o tempo pudesse trazer. A diferença era abismal em relação à véspera: as pessoas às vezes precisam de tempo. Quando saí ficou a ler atentamente o que eu tinha escrito no boletim de saúde, onde enumerava as várias alterações encontradas.
Senti que de todas as coisas que eu disse houve uma que ficou a ecoar na memória da Susana: "Goze o seu bebé agora que estes tempos não voltam atrás. Deixe as notícias chegar, melhores ou piores, a seu tempo. Mas não adie a oportunidade que tem agora, enquanto elas não chegam.". Pelas piores razões, sei que vou ficar para sempre na memória daquela mulher.
Um dia, depois de muito penar, o Pedro chegou finalmente. Era moreno, como a mãe previra, olhos ainda cinzentos e escondidos. Era sem dúvida diferente do que tinha imaginado - o perfil era o do tio - e limitava-se a chorar, mamar, e fazer as suas necessidades (um cocó verde escuro horrível que nunca tinha passado pelas fantasias da Susana, mas que era normal - dizia a Enfermeira). Mas era o bebé mais lindo que ela alguma vez tinha visto (as mães com que partilhava a enfermaria do puerpério diferiam da sua avaliação comparativa, mas isso que importava...). Era o seu bebé e, apesar de nada ter sido até então como tinha imaginado (e, que raio, como as amigas com bebés lhe tinham dito) estava serena e confiante. Esperava então a primeira visita dos Pediatras, mas como o Pedro tinha nascido ao fim do dia isso iria ficar para a manhã seguinte.
Pelas 9h00 daquele dia, a Dra. Inês (futura Médica de Família a estagiar em Pediatria no Puerpério) agarrou na craveira e na fita métrica e seguiu para a cama dois. Como aquele bebé, o "Filho de Susana ...", não tinha sido visto ainda cabia-lhe a tarefa de fazer um enorme rol de perguntas relativas à gravidez e parto. Tratava-se do primeiro filho de uma jovem de 25 anos, cuja gravidez tinha sido desejada, planeada e vigiada de forma adequada. Tinha todas as análises e ecografias normais, feitas nos tempos certos. Nada falhara. O parto tinha decorrido sem intercorrências de maior, e o bebé estava aparentemente bem, se bem que preguiçoso a mamar. Bebé despido para observar, começou pela auscultação cardíaca. Não conseguindo disfarçar a apreensão, explicou à mãe que lhe parecia ouvir um sopro e que ia pedir a opinião de um outro colega. A Inês chamou-me, eu tinha acabado de dar uma alta e podia naquele momento ir com ela. No corredor uma Enfermeira alertou-me: "O bebé da cama dois, além de estar preguiçoso para mamar, está um bocado hipotónico." Como era o mesmo bebé, fiquei um pouco mais preocupado, mais atento. Quando cheguei ao pé da Susana o seu olhar dizia tudo, não tinha brilho. Estava claramente preocupada, e antes sequer de poder observar o bebé fui bombardeado com perguntas. Expliquei que tinhamos que avaliar o bebé, com calma, e que só depois poderíamos adiantar mais coisas. A auscultação era claramente "não normal", e diferente da maioria dos sopros "inocentes" que ouvimos todos os dias em tantos bebés. Era provável que existisse mesmo um problema cardíaco, mas a sua natureza era incerta. Esta foi toda a informação que a Susana foi capaz de reter naquele momento. Tudo o resto que eu tinha para lhe dizer ia ter que esperar pelo dia seguinte. Expliquei-lhe que tinhamos que esperar algum tempo, para percebermos como evoluiam as coisas nas horas seguintes. Quando saí da sala a Susana chorava em silêncio.
Quando o Pediatra saíu a Susana começou a chorar. Tinha percebido que não seria assim tão simples como ali tinha sido dito, mas aquela informação era já demasiada para o que conseguia aguentar. O embate era grande, o bebé perfeito que ela tinha imaginado não existia. Tinha um problema, e talvez fosse maior do que estava preparada para admitir naquele momento. Durante o resto do dia a Susana dedicou-se ao seu pequeno. Afinal as mamadas seguintes correram melhor, e o bebé adaptou-se um pouco mais à mama. Conversou longamente com o João, o seu marido, e com a sua mãe, e ao longo do dia o confronto entre o bebé imaginado e o bebé real foi dando lugar a uma aceitação maior. Afinal, fosse o que fosse, aquele era o seu filho, o seu bebé, e ela tinha que ser forte "no matter what".
Quando no dia seguinte voltei a falar com a Susana senti-a diferente. Estava mais calma, e parecia estar já preparada para o resto. Voltei a observar o bebé atentamente, e expliquei-lhe que encontrávamos uma série de pequenas alterações físicas no bebé, cada uma delas com um significado muito pequeno por si. Expliquei-lhe que se cada uma delas viesse num bebé diferente nenhum deles merecia preocupação, e deles diríamos "não é defeito, é feitio!". Mas todas aquelas pequenas alterações juntas podiam significar mais alguma coisa. Era possível que algum defeito genético estivesse na base de tudo aquilo, como era - apesar de tudo - possível que fosse só mesmo "feitio". E só uma investigação feita com calma e em consulta, com a ajuda do passar do tempo, podia dar alguma resposta a todas as questões que se levantavam naquele momento. Contrastando com a reacção do dia anterior, vi nos olhos da Susana uma determinação paciente - a de amar o Pedro independentemente de tudo o que o tempo pudesse trazer. A diferença era abismal em relação à véspera: as pessoas às vezes precisam de tempo. Quando saí ficou a ler atentamente o que eu tinha escrito no boletim de saúde, onde enumerava as várias alterações encontradas.
Senti que de todas as coisas que eu disse houve uma que ficou a ecoar na memória da Susana: "Goze o seu bebé agora que estes tempos não voltam atrás. Deixe as notícias chegar, melhores ou piores, a seu tempo. Mas não adie a oportunidade que tem agora, enquanto elas não chegam.". Pelas piores razões, sei que vou ficar para sempre na memória daquela mulher.
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