Há dias em que sinto que nunca serei capaz de saber tudo o que faria de mim um bom Pediatra - especialmente aqueles dias em que estudo e leio artigos científicos, e me sinto burro e pequenino. Felizmente são poucos (devia estudar mais vezes, eu sei...). Mas os dias que valem mesmo a pena são aqueles em que me sinto capaz de tudo, feito para isto, e esses apagam os dias menos bons e enfiam-nos num saco. Esses dias não vêm quando estudo ou leio, mas quando estou no terreno, a "meter a mão na massa", a ver doentes, a pensar, a diagnosticar e agir*.
Naquele banco vi dezenas de "dores de barriga", e dezenas de dores de barriga enviei de volta para casa, com diagnósticos como "gastroenterite aguda", "obstipação", ou o brilhante diagnóstico "simples-dores-de-barriga-não-sabemos-porquê-mas-não-parece-nada-de-grave". Já ao entrar da noite, ao cruzar-me com a minha colega Paula no corredor comentei: "Hoje já vi dezenas de dores de barriga, tenho a certeza que algum volta amanhã com uma apendicite aguda. O problema é que não sei qual deles...". Ela sorriu, e seguiu o seu caminho. Sentei-me então no meu gabinete e chamei o Pedro.
O Pedro tinha 9 anos, e a ficha de triagem informava-me que tinha - surpresa! - dor de barriga. Ao ve-lo entrar no gabinete pensei: "Este miúdo tem uma apendicite.". Tinha qualquer coisa que não me deixou tranquilo (o tal "mau ar", termo subjectivo que detestava até me ver confrontado com a inevitabilidade da sua utilização, à falta de descrição mais assertiva), mas a história contada era inocente, e a observação do doente não era característica de apendicite. Os sinais clássicos não estavam lá, e tinha muito pouca coisa dos menos clássicos. Um conflito estabeleceu-se dentro de mim, entre o meu feeling pessimista e o meu lado racional - que não tinha nada a que se agarrar para deixar seguir o feeling. E enquanto a minha boca apressada explicava que ia pedir análises laboratoriais, uma voz soava-me na cabeça "Tu não és de pedir exames desnecessários, o que é que estás a fazer!?". O Pedro saiu, descontente com a ideia de ser "furado", e eu continuei a trabalhar.
Algum tempo depois chegaram as análises. Ao abri-las, uma surpresa: parâmetros infecciosos elevados. Pedi-lhe uma ecografia abdominal et voilá, lá estava ela. Foi operado, e resolvido o problema.
Os exames laboratoriais e de imagem devem, de facto, ser usados com critério rigoroso. Mas tenho vindo a aprender que nunca devemos menosprezar um feeling... Às vezes há alguém a soprar-nos a verdade ao ouvido... E isto de ser médico às vezes é dificil.
* Tens razão MM
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
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