Durante toda a gravidez a Susana imaginou como seria o Pedro. Imaginava-o moreno, de cabelos lisos - como a mãe - mas tinha uma leve esperança que ele tivesse olhos verdes. Apesar de tudo o pai tinha-os claros, e na família da mãe - dizia a tia Micas - havia uns dois ou três primos afastados com olhos assim. E um moreno de olhos verdes é sempre especial. Imaginava como seria a sua voz, o seu choro até. Tinha planos para enormes passeios, pelos vários jardins da cidade, uma visita ao Oceanário quando fosse maiorzinho. De certeza que o Pedro ia gostar de peixes, o pai pescava nos tempos livres e a Susana tinha um quê de ambientalista. A Susana achava que o Pedro ia ser bom aluno, tinha uma série de estratégias infalíveis para que ele gostasse de estudar. Tinha pensado até em estimular-lhe o gosto pela música, umas aulas de piano talvez. A mãe dela avisava-a, meio na brincadeira, que as coisas podiam não ser assim, que o que importava é que viesse com saúde - mas recordava que na ecografia 3D tinha o perfil do avô, um homem de carácter sério. Só podia ser um homem a valer.
Um dia, depois de muito penar, o Pedro chegou finalmente. Era moreno, como a mãe previra, olhos ainda cinzentos e escondidos. Era sem dúvida diferente do que tinha imaginado - o perfil era o do tio - e limitava-se a chorar, mamar, e fazer as suas necessidades (um cocó verde escuro horrível que nunca tinha passado pelas fantasias da Susana, mas que era normal - dizia a Enfermeira). Mas era o bebé mais lindo que ela alguma vez tinha visto (as mães com que partilhava a enfermaria do puerpério diferiam da sua avaliação comparativa, mas isso que importava...). Era o seu bebé e, apesar de nada ter sido até então como tinha imaginado (e, que raio, como as amigas com bebés lhe tinham dito) estava serena e confiante. Esperava então a primeira visita dos Pediatras, mas como o Pedro tinha nascido ao fim do dia isso iria ficar para a manhã seguinte.
Pelas 9h00 daquele dia, a Dra. Inês (futura Médica de Família a estagiar em Pediatria no Puerpério) agarrou na craveira e na fita métrica e seguiu para a cama dois. Como aquele bebé, o "Filho de Susana ...", não tinha sido visto ainda cabia-lhe a tarefa de fazer um enorme rol de perguntas relativas à gravidez e parto. Tratava-se do primeiro filho de uma jovem de 25 anos, cuja gravidez tinha sido desejada, planeada e vigiada de forma adequada. Tinha todas as análises e ecografias normais, feitas nos tempos certos. Nada falhara. O parto tinha decorrido sem intercorrências de maior, e o bebé estava aparentemente bem, se bem que preguiçoso a mamar. Bebé despido para observar, começou pela auscultação cardíaca. Não conseguindo disfarçar a apreensão, explicou à mãe que lhe parecia ouvir um sopro e que ia pedir a opinião de um outro colega. A Inês chamou-me, eu tinha acabado de dar uma alta e podia naquele momento ir com ela. No corredor uma Enfermeira alertou-me: "O bebé da cama dois, além de estar preguiçoso para mamar, está um bocado hipotónico." Como era o mesmo bebé, fiquei um pouco mais preocupado, mais atento. Quando cheguei ao pé da Susana o seu olhar dizia tudo, não tinha brilho. Estava claramente preocupada, e antes sequer de poder observar o bebé fui bombardeado com perguntas. Expliquei que tinhamos que avaliar o bebé, com calma, e que só depois poderíamos adiantar mais coisas. A auscultação era claramente "não normal", e diferente da maioria dos sopros "inocentes" que ouvimos todos os dias em tantos bebés. Era provável que existisse mesmo um problema cardíaco, mas a sua natureza era incerta. Esta foi toda a informação que a Susana foi capaz de reter naquele momento. Tudo o resto que eu tinha para lhe dizer ia ter que esperar pelo dia seguinte. Expliquei-lhe que tinhamos que esperar algum tempo, para percebermos como evoluiam as coisas nas horas seguintes. Quando saí da sala a Susana chorava em silêncio.
Quando o Pediatra saíu a Susana começou a chorar. Tinha percebido que não seria assim tão simples como ali tinha sido dito, mas aquela informação era já demasiada para o que conseguia aguentar. O embate era grande, o bebé perfeito que ela tinha imaginado não existia. Tinha um problema, e talvez fosse maior do que estava preparada para admitir naquele momento. Durante o resto do dia a Susana dedicou-se ao seu pequeno. Afinal as mamadas seguintes correram melhor, e o bebé adaptou-se um pouco mais à mama. Conversou longamente com o João, o seu marido, e com a sua mãe, e ao longo do dia o confronto entre o bebé imaginado e o bebé real foi dando lugar a uma aceitação maior. Afinal, fosse o que fosse, aquele era o seu filho, o seu bebé, e ela tinha que ser forte "no matter what".
Quando no dia seguinte voltei a falar com a Susana senti-a diferente. Estava mais calma, e parecia estar já preparada para o resto. Voltei a observar o bebé atentamente, e expliquei-lhe que encontrávamos uma série de pequenas alterações físicas no bebé, cada uma delas com um significado muito pequeno por si. Expliquei-lhe que se cada uma delas viesse num bebé diferente nenhum deles merecia preocupação, e deles diríamos "não é defeito, é feitio!". Mas todas aquelas pequenas alterações juntas podiam significar mais alguma coisa. Era possível que algum defeito genético estivesse na base de tudo aquilo, como era - apesar de tudo - possível que fosse só mesmo "feitio". E só uma investigação feita com calma e em consulta, com a ajuda do passar do tempo, podia dar alguma resposta a todas as questões que se levantavam naquele momento. Contrastando com a reacção do dia anterior, vi nos olhos da Susana uma determinação paciente - a de amar o Pedro independentemente de tudo o que o tempo pudesse trazer. A diferença era abismal em relação à véspera: as pessoas às vezes precisam de tempo. Quando saí ficou a ler atentamente o que eu tinha escrito no boletim de saúde, onde enumerava as várias alterações encontradas.
Senti que de todas as coisas que eu disse houve uma que ficou a ecoar na memória da Susana: "Goze o seu bebé agora que estes tempos não voltam atrás. Deixe as notícias chegar, melhores ou piores, a seu tempo. Mas não adie a oportunidade que tem agora, enquanto elas não chegam.". Pelas piores razões, sei que vou ficar para sempre na memória daquela mulher.
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
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