Mais um dia de SAP. Dezenas, largas dezenas de pessoas passaram pelo gabinete 5. Centenas esperavam lá fora para serem atendidos por um dos três médicos que estavam a trabalhar. A pilha de fichas a aguardar consulta crescia a olhos vistos, e estava cada vez maior (por mais doentes que víssemos).
Achámos graça ao nome. "Então vamos lá chamar o chinês!" disse o meu tutor. Com alguma dificuldade chamou o bizzarro nome pelo intercomunicador. O chinês era uma chinesa de 40 anos. Entrou, e por curiosidade (e cortesia) perguntámos-lhe como se pronunciava o nome dela. Tinhamos falhado redondamente na leitura, mas já estava corrigido o erro. Este "preâmbulo" da consulta chegou para percebermos que iria ser muito difícil estabelecer uma comunicação eficaz. Ela falava muito poucas palavras em português (provavelmente as que sabia não ajudariam muito, quando se trata de "sentir" usamos termos pouco usados no dia a dia), e entendia menos palavras ainda. Percebeu que lhe perguntávamos o motivo da consulta, após uma aturada gesiculação da nossa parte em que apontávamos para as costas, abdómen e tórax com ar de sofrimento e inquisição em simultâneo. Era a vez dela gesticular, e agarrava a metade inferior do abdómen com "cara de dor". Isto complicava as coisas, se fosse uma simples faringite não era necessário nenhum inquérito apurado - uma observação detalhada seria provavelmente suficiente. Uma dor abdominal requer uma comunicação bem mais complexa... Não é fácil, por gestos, perguntar se vomitou, se teve diarreia (daria concerteza uma mímica expressiva e hilariante), se arde ao urinar, se já tem alguma doença conhecida... Apercebendo-se das dificuldades de comunicação, a doente tomou uma iniciativa inteligente: disse "eu não fala, telefó!", e rapidamente tirou o telemóvel da bolsa. Começou então a falar chinês (desconheço se cantonês ou outra língua, para mim era simplesmente chinês...) muito rapidamente com a interluctora do outro lado da linha. Falou... Falou... Falou... Eu e o meu tutor entreolhávamo-nos com um ar espantado, e confesso que foi complicado não rir da situação caricata em que nos encontrávamos... De repente pára de falar, e estica o telemóvel na direcção do meu tutor. Era a filha da doente, que começou a explicar o longo discurso da mãe (pelo menos em chinês era longo...). Resumindo, doia-lhe a barriga... O meu tutor deu-lhe três perguntas-chave para fazer à mãe, e passou de novo o telefone à doente. Mais uma conversa interminável, finda a qual a filha negou a existência dos três sintomas perguntados... Desligado o telefone, mais uns gestos largos para a deitar na marquesa. A palpação abdominal era dolorosa num ponto específico, mas não tinha características compatíveis com apendicite. Pedimos análises laboratoriais e uma radiografia ao abdómen... Tinhamos pouca informação, e a que tinhamos não nos permitia excluir uma situação potencialmente grave... Nesse sentido tentámos ganhar mais alguma informação que nos tranquilizasse ou alertasse para uma situação grave. Ainda assim, provavelmente a doente seria referenciada às urgências hospitalares. Parecia tratar-se de um problema do foro ginecológico, que provavelmente iria justificar uma ecografia pélvica. Acabámos por passar o caso ao colega que nos "rendeu" para o turno seguinte, transmitindo a parca informação que possuíamos...
Ainda hoje me rio ao lembrar aquela situação caricata... Imagino a perspectiva da doente, com dois tipos de bata branca e estetoscópio a gesticular e a gemer, uma agarrado à barriga e o outro a simular tosse e espirros...
sábado, 12 de março de 2005
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