Na prática clínica vemo-nos por vezes confrontados com diferenças culturais que nos surpreendem. Temos obviamente que as aceitar, e o seu conhecimento prévio permite-nos lidar com as situações futuras de uma forma mais adequada. Aquilo a que assisti hoje surpreendeu-me a mim e à minha tutora (com dezenas de anos de profissão, milhares de doentes na sua lista, e bastantes deles de etnia cigana).
Entrou no gabinete a Manuela. Tinha 25 anos, e era rara frequentadora do Centro de Saúde (o que é adequado, tendo em conta a idade). Era de etnia cigana, já mãe de três filhos. Entrou no gabinete com um ar muito grave. Sentou-se com um ar mais grave ainda, e fulminou-me com o olhar. "Quero falar com a Doutora.". Assegurei-a que, sendo eu médico, o que fosse dito naquela sala era absolutamente confidencial. Dei-lhe liberdade para exigir a minha saida, mas reconsiderou e permitiu a minha presença. Quando abriu a boca para começar a falar parou, ficou vermelha da ponta dos cabelos às unhas dos pés (suponho eu, já que no meio de tantos panos, aventais e xailes só lhe via a cara). E disse, finalmente: "Quando faço cocó deito sangue...". Baixou a cabeça por instantes, em silêncio, para depois iniciar uma verborreia fluente: "Vem sangue, quando faço cocó, e dói-me, doutora, fica ferido! Tenho uma pele, eu sei porque, ai que vergonha, vi-me ao espelho, assim por baixo, e tenho lá uma pele que me dói, deve ser daí que sangra, assustei-me tanto, ai doutor que vergonha, ai doutora acuda-me, não sei que faça, o mê marido diz que deve ser uma "almorróidea", mas se é estou desgraçada, é a pior coisa para um cigano, ai valha-me Deus, que a mulher do meu irmão Lelo tem disso e ninguém como o que vem da mão dela, se eu tenho o mesmo estou perdida, ai a minha vida, não sei o que fazer!!". Tentámos tranquiliza-la, mas ao mesmo tempo transmitir-lhe que era provavelmente de uma hemorróida que se tratava. Explicámos que as hemorróidas não se "pegam", que muitas, mas mesmo muitas, pessoas têm hemorróidas (especialmente depois de um parto), que se trata de uma variz como as das pernas, etc. A verdade é que quanto mais falávamos mais nervosa ela ficava, insistindo na certeza absoluta que tinha que seria deserdada pela família, que nunca mais iria comer do que ela cozinhasse... Afirmava: "É a pior coisa que pode acontecer a um cigano!!!". Fiquei muito surpreendido com a carga emotiva e social que acarretava aquela doença tão simples, mas era incontornável que não eram "factores de gravidade" que desencadeavam aquela resposta, mas factores meramente sociais/étnicos. A obviamente necessária observação da lesão desencadeou outra "crise": eu tinha que sair da sala. "Se o mê marido sonha que o doutor, desculpe-me lá, me viu o cú, não sei o que acontece!". Respeitei, obviamente, e saí temporariamente da sala. Tratava-se, segundo a minha tutora, de uma pequena hemorróida ligeiramente fissurada, como suspeitámos pela descrição inicial. A confirmação do diagnóstico desencadeou outra "crise", que só acalmou quando lhe dissémos que não precisava de explicar à família que se tratava de uma hemorróida, poderia dizer que se tratava apenas de uma fissura. Esta solução, apesar de parecer pouco lógica no contexto puramente médica, fazia todo o sentido do ponto de vista social. No entanto, ela própria tinha o preconceito relativo às hemorróidas, pelo que estava, segundo as suas palavras, "cheia de nojo de mim própria". Adequadamente medicada saiu da consulta, preocupada e "enojada" consigo própria.
Aprendi hoje a carga emotiva que a etnia cigana atribui à patologia hemorroidária. Para evitar futuras confusões, ficou registado...
segunda-feira, 7 de março de 2005
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