sexta-feira, 8 de abril de 2005

Pedro

O Pedro era um rapaz como os outros. Andava na escola, chumbou um anito ou dois. Era um tipo calado, metido com os seus botões. Tinha também aquela perigosa tendência de se aproximar das pessoas erradas. O ambiente familiar era mau. As condições económicas eram fracas, e a mãe era o que se pode designar genericamente de uma pessoa insuportável. Berrava com o pai dela, velhote acamado, berrava com o marido, bêbado, e berrava com o filho. O ponto fulcral que o Pedro descrevia da sua casa eram os gritos da mãe. O Pedro queria fugir daquele ambiente. Queria-se afastar da gritaria. Queria qualquer coisa que o fizesse esquecer aquela família, aquela vida. Encontrou nos charros, que fumava com os "amigos" mais próximos, um escape. Tudo ficava bem com uma pedrinha de haxixe, e afinal não faz mal a ninguém. Cedo se fartaram das drogas leves, e passado um tempo o Pedro era utilizador de heroína. Injectava-se inicialmente em grupo, aos poucos passou a faze-lo sozinho. A mãe já não mandava nele. Quem mandava agora nele era uma substância... Roubou diversos objectos de casa, muitos outros fora dela. A sua vida girava em torno de uma necessidade: evitar a ressaca. Entrou, mais tarde, num programa de substituição com metadona. Deu-se mal, assim que parou a metadona voltou para a heroína. Nessa altura já sabia que era seropositivo. Mas foi já depois da má experiência com a metadona que a tuberculose lhe bateu à porta. Arrastou durante algum tempo uma tosse bem produtiva, a febre nem dava por ela nos intervalos da heroína. Foi quando a tosse começou a trazer sangue que recorreu ao hospital. Tinha uma grave infecção pulmonar típica da SIDA (pneumocistose), que quando foi tratada mostrou uma tuberculose escondida. Ficou internado durante bastante tempo, foi a oportunidade que teve para se afastar da heroína. Começou nesse internamento a terapêutica para o HIV e para a tuberculose. Quando teve alta começou a ser seguido na consulta de infecciologia do Hospital e no CDP do Centro de Saúde.

O meu tutor diz-me, antes de chamar o Pedro para a consulta, que ele tinha muito pior aspecto quando apareceu lá da primeira vez. Assim que ele entrou custou-me a acreditar. O rapaz era esquelético, o cabelo era uma vaga ideia de pelo ruivo no alto da cabeça, e todas as feições angulosas. Tinha pele clara, e um bizarro e paradoxal ar de criança doente. Não era já nenhuma criança, mas quase parecia. A mãe tinha vindo com ele, estava a berrar no corredor com a enfermeira porque "só eu é que sei o que é ter um filho assim!! Vocês sabem lá, põem-se a mandar bitates sobre a maneira como devo ou não devo educar o meu filho?!". Ele parecia muitíssimo aliviado por ela ter ficado fora do consultório. Estava muito ansioso, afirmou-nos que estava a milímetros de voltar para a heroína. O ambiente em casa era pesadíssimo, e os gritos da mãe ressoavam-lhe na cabeça o dia inteiro. Tinha recusado a sugestão da infecciologista de adesão a novo programa de metadona para evitar a mais que certa recaída, reportando-se ao anterior insucesso. A TOD (terapêutica observada directa) era a única forma de manter a terapêutica de forma adequada, admitiu-nos que de outra forma já teria parado a medicação. A radiografia e a TAC mostravam francos sinais de melhoria da tuberculose pulmonar, mas muito caminho havia ainda a percorrer. Saiu do consultório a coxear, como tinha entrado, não tinha força muscular suficiente para andar decentemente. Assim que saiu, a mãe desatou aos berros com ele por qualquer outra coisa pouco importante. Ele continuou silencioso. A coxear em direcção à morte.