quinta-feira, 28 de abril de 2005

Só um susto?

Ainda não foi desta que desapareci, engolido pelas enormes páginas do Harrison's. Estou de férias. Ou seja, estou dedicado a 100% ao estudo... Logo agora tinha quer fazer sol... Enfim...

No sexto ano da faculdade fiz a minha primeira paracentese. Uma paracentese consiste em introduzir uma espécie de "agulha" grossa no abdómen de um doente, quando este está cheio de líquido (o que se designa de ascite). Pode servir para retirar um pouco desse líquido para análises laboratoriais (paracentese diagnóstica) ou para remover esse líquido em excesso (paracentese evacuadora). Aquela era uma paracentese diagnóstica. O doente tinha por volta de 60 anos, era um grande bebedor com largos anos de whiskey, bagaço e vinho tinto. O fígado já dava sinais há alguns anos de que tanto álcool não lhe estava a cair muito bem. Dessa vez tinha sido internado no Serviço de Medicina Interna, onde eu estava a estagiar no 6º ano, por aumento de volume do abdómen de evolução relativamente rápida, com dor abdominal, náuseas, vómitos e um sinal que nos assustou um pouco à partida e que motivou o internamento: perda de peso significativa nos últimos 2 meses. As hipóteses diagnósticas eram várias, mas uma sobressaia: carcinoma hepatocelular. Este tipo de cancro desenvolve-se principalmente num fígado com cirrose, cirrose essa que pode resultar de várias coisas diferentes, como a Hepatite C e o alcoolismo crónico. Ali a história parecia linear: um alcoolismo marcado era provavelmente responsável por cirrose hepática, que parecia ter "degenerado" num carcinoma hepatocelular.
Uma das abordagens diagnósticas que se seguiu foi, então, a paracentese. E era eu que a ia fazer. Preparado todo o material, a minha tutora estava ao meu lado para me guiar nos vários passos (que eu já conhecia de cor pela observação de muitas paracenteses). Conhecido o local da picada, introduzo a agulha. Pela extremidade oposta começa a sair o conteúdo daquele abdómen. Gelei até aos ossos instantaneamente, para logo depois começar a suar profusamente. Saiu sangue. Não era "rosado", nem mesmo "sanguiolento". Era sangue vivo, puro e abundante. Imediatamente pensei "MERDA! Furei a veia cava ou a aorta!!" (vasos abdominais de grande calibre). A hipótese restante era que aquela ascite fosse mesmo assim por causa da eventual neoplasia. Durante alguns segundos, com o coração a bater descompassado e o suor a escorrer da testa, esperámos para ver o que acontecia. O doente estava bem, não se sentia tonto, o coração batia a um ritmo perfeitamente normal, e as várias medições de tensão arterial (prontamente medidas pela enfermeira que nos acompanhava) eram normalíssimas. Até que, e depois de drenar um pouco mais, parou. Respirámos de alívio quando percebemos que, de facto, eram aquelas as características da ascite. Mas só por um instante: era agora muito mais óbvio que se tratava mesmo de um cancro do fígado...
Nos dias seguintes confirmou-se o diagnóstico. Era um carcinoma hepatocelular grave, que minava todo o fígado. A causa daquela ascite hemática (com sangue) era o próprio carcinoma. O estadio da neoplasia era já muito avançado, e nenhuma manobra terapêutica seria sequer tentada. Tratava-se agora de tornar o final menos doloroso, com a maior qualidade de vida possível. Espantou-me a indiferença do doente perante o diagnóstico. Não queria saber da vida, não queria saber da morte. Indiferente ao nulo prognóstico afirmou que sabia ser dele a responsabilidade de tudo aquilo. E por isso nem queria saber da morte, nem queria saber da vida que lhe restava...