terça-feira, 9 de novembro de 2004

Falta de ar...

Mais um dia passado nas urgências de um grande Hospital de Lisboa, e a sala de aerossóis estava como de costume: a rebentar pelas costuras. Asmas, doenças pulmonares crónicas (DPOCs), insuficiências cardíacas, enfim, muitas queixas de falta de ar levavam as pessoas a entrar na sala de aerossóis.

Por volta da uma da manhã as coisas acalmavam um pouco, e conseguíamos ter só dois ou três doentes nos grandes cadeirões daquela sala. A maior parte das asmas e DPOCs já tinham ido embora, e chegavam agora pessoas um bocadinho diferentes...
O Manuel, habitueé, dormitava no cadeirão. Já tinha feito um jantar tardio, e contado a mesma história de sempre. Tem falta de ar, senhor Manuel? "Sim, sim... Mas deixe-me contar... A minha mulher é uma chata... Ressona muito e é uma mulher doente... Sinto-me muito sozinho às vezes, sabe?". A casa dele, segundo contava, não podia ser bem chamada de casa... Era um barracão frio, onde chovia, quando chovia. Nessa noite não era esse o problema, o que lhe custava era a mulher. "Eu tenho 84 anos, sabe? A minha mulher 64. Mas ela é muito mais doente que eu, sabe, tenho pouca paciência...". Quando a falta de ar continuava a não existir, mas a hora adiantava, dizia: "Já não há transportes baratos a esta hora, e eu não tenho dinheiro para o táxi... Os seus colegas costumam..." Eu sei, senhor Manuel, deixa-lo cá ficar até ser dia... Sim, dão-lhe qualquer coisa que se coma, dão sempre...

O José era mais conversador, e ia lá menos vezes. Era a solidão que o assolava de vez em quando, e a sala de aerossóis era o ponto de destino. O passaporte directo para lá era o de sempre: "Tenho muita falta de ar...". Mas só tinha falta de ar quando falava demais, e em casa "Estava muito sozinho e assustei-me...". José ajudava sempre a melhorar o "moral" da sala de aerossóis. Fazia rir os doentes com as suas histórias de vida "Quando eu carregava mercadorias no porto de Lisboa...", o que com os asmáticos não dava bom resultado...

Dia após dia, para dois dedos de conversa ou um copo de leite quente, umas quantas "faltas de ar" atacam a noite solitária da Lisboa mais escura.