sexta-feira, 1 de abril de 2005

Pai Natal

O Pai Natal. Era assim que nos referíamos ao Sr. José. Estava internado no serviço de Medicina Interna onde eu estagiei no 6º ano da faculdade. Tinha entrado no serviço a propósito de uma pneumonia. Tinha feito a antibioterapia adequada, e tinha ficado bem. Na altura de dar alta surgiu um problema que, infelizmente, é demasiado frequente... O Sr. José, era então ainda conhecido assim, não tinha ninguém com quem ficar. Tinha 79 anos, e muito pouca autonomia. O irmão vivia longe, e não tinha meios para cuidar dele. Das filhas que tinha tido, nenhuma tinha contacto. Ele não sabia já o nome delas, tinha uma demência importante. E assim foi ficando. A Assistente Social procurou, de forma incansável, um sítio para o Sr. José. Mas um qualquer lar não chegava, ele precisava de cuidados de enfermagem que não havia em todo o lado. E não havia vagas nenhumas, havia sim uma enorme lista de espera de doentes à espera de uma "casinha" onde ficar.
O Sr. José não ficou no hospital. Foi ficando. A verdade é que parecia sempre que havia "agora" uma oportunidade de o transferir para um sítio melhor. Mas todas as espectativas saiam goradas. E o Sr. José ia ficando por lá.
Os enfermeiros foram criando um afecto especial pelo "zézinho", lidavam com ele todos os dias. E ele fazia questão de dor sempre um enorme sorriso desdentado a quem o cumprimentava. Os médicos, visto que estava internado, todos os dias lhe passavam uma pequena visita. Ele sorria, e fazia as suas queixinhas pequenas, com uma voz apagada e hesitante. Explicava que doía a perna, as costas, a cabeça... Íamos resolvendo os seus pequenos problemas, e ele... ía ficando por lá.
Teve algumas intercorrências no internamento, como seria de esperar num indivíduo internado no hospital, "quartel-general" dos bicharocos mais agressivos. Algumas pneumonias e infecções urinárias foram sendo tratadas. Uma suspeita de AVC, que acabou por se resolver sem sequelas, permitiu a realização de uma TAC ao crânio. Surpreendeu todos os médicos como é que um indivíduo com tão pouco cérebro (estava muito atrofiado, e tinha múltiplas e extensas lesões antigas), dizíamos aliás que só tinha "meio-cérebro" (já que uma metade era um queijo-suiço na TAC), conseguia ainda falar, comer, etc... Foi sobrevivendo a todas as intercorrências, e foi ficando por lá...
Quando eu cheguei ao serviço, em Outubro de 2003, o Sr. José estava lá desde Abril. Visitava-o todos os dias (nos dias mais complicados limitava-me a passar pelo corredor e acenar-lhe, confesso...). O seu diário clínico tinha 3 Kg de papel, sendo que o diário terapêutico tinha 10 páginas (fruto das várias intercorrências) e o registo médico largas dezenas. Fui assistindo a várias situações pontuais, fáceis de resolver, e fui vendo como ele ia ficando...
Passou o Natal de 2003, e o Sr. José ganhou uma alcunha: "O Pai Natal". O Pai Natal recebeu uma prenda, que os alunos de medicina dos primeiros anos andavam a distribuir voluntariamente pelo Hospital. Até chorou, o Sr. José, coisa aliás fácil: qualquer miminho o fazia chorar. Com a sua prenda de Natal, o Pai Natal foi ficando...
Foi só em Fevereiro de 2004 que o Pai Natal, aliás, o Sr. José saíu do hospital. Depois de largas semanas de promessas "É amanhã!!", finalmente foi o dia em que se disse "É hoje!!!!". O serviço em peso foi despedir-se do Sr. José, e ele não cabia em si de contente (era aliás muito pequenino, bastante "mirradinho"!). Finalmente o Sr. José arranjou um lar onde ficar em condições, e abandonou o serviço, 10 meses depois de lá ter entrado.

Por muito terna que seja esta história, verdadeira, o Sr. José não esteve bem no Hospital, enquanto lá foi ficando... As infecções repetidas eram mais frequentes, concerteza, que no exterior, e seria concerteza muito mais feliz fora do Hospital. Fora isso, uma cama num serviço de Medicina Interna é muito preciosa, e fez muitas vezes falta, especialmente quando os corredores do serviço se enchiam de macas por não haver camas suficientes. Acima de tudo, tudo isto parece ridículo quando sabemos que o preço estimado de internamento de um doente num serviço de Medicina Interna é elevadíssimo. Os antibióticos que repetidas vezes fez são caríssimos, e seriam escusados se o Sr. José estivesse fora do Hospital. Provavelmente, o que o José "custou" por semana daria para pagar a sua estadia num lar de luxo durante dois meses... Mas os sistemas de retaguarda para estes casos, que chamamos "casos sociais", são muito poucos... E estes doentes, quer seja numa cama ou numa maca, num serviço de Medicina Interna ou num Serviço de Urgência (!), vão ficando... Simplesmente, vão ficando...