quinta-feira, 12 de maio de 2005

Malfadado órgão

Outra vez, inevitável, o pâncreas. Desta vez uma pancreatite aguda. Trata-se de uma inflamação grave do pâncreas, que pode ser provocada por cálculos ("pedras") ou por ingestão abusiva de álcool. O pâncreas inflamado começa a libertar enzimas (moléculas que servem para digerir os alimentos, algumas delas produzidas pelo pâncreas) de forma desorganizada que digerem o próprio pancreas, os órgãos vizinhos e alguns órgãos à distância. Uma senda quase imparável de auto-digestão do nosso organismo...
A D. Laura tinha 75 anos, e tinha entrado na Urgência há cerca de uma semana com uma forte dor lombar e abdominal. Foi-lhe diagnosticada uma pancreatite aguda, e as análises laboratoriais mostraram a presença de bastantes critérios de gravidade (ou seja, de mau prognóstico). Foi à partida encarada como uma doente com elevadas probabilidades de morrer (praticamente 100%...). No entanto, na semana que se seguiu a recuperação foi muito melhor que a esperada. As várias análises laboratoriais melhoraram, e já andávamos a dizer uns aos outros pelos corredores que "afinal parece que não tinhamos razão!". Mas o estado geral da D. Laura era mau, e estavamos perfeitamente cientes dos riscos.
Ontem de manhã fui o primeiro da minha equipa a chegar ao serviço. Estava eu a olhar para o quadro dos doentes, a ver se tinham entrado doentes novos, quando sou abordado por uma enfermeira: "O Dr. é da equipa do Dr X?". "Sou, sim", respondo. Explica-me: "A doente da cama 1 dos Intermédios parou. Está lá o Dr. Y, que estava no corredor.". Olhei para o quadro e identifiquei imediatamente a doente. Deu-me um friozinho na barriga, mas imediatamente me lembrei do péssimo prognóstico que tinha aquela doença. Fui para o quarto da doente (uma Unidade de Cuidados Intermédios), sem correr. Em frente à cama estava o Dr. Y, com a pasta da doente na mão. "Tinha muitos critérios de gravidade..." disse eu. Respondeu-me: "Pois, era o que eu estava aqui a ver..." - fechou a pasta e pousou-a aos pés da doente - "Não podemos fazer nada". Concordei. No monitor ainda se viam complexos que denotavam actividade eléctrica no coração, mas o coração já não estava a bater (situação que chamamos "dissociação electro-mecânica", que tem uma taxa de insucesso na reanimação muito elevada) nem os pulmões funcionavam. A enfermeira que tinha identificado a paragem retirou da cara o facies preocupado, e substituiu-o por um facies resignado. "Vamos só esperar aqui um bocadinho, está quase.", disse o Dr. Y. E ficámos a ver a actividade eléctrica desaparecer. O resto da minha equipa foi chegando aos poucos, e todos concordaram com a decisão de não-reanimação. Passado algum tempo verificou-se, então, o óbito. Causa de morte: pancreatite aguda.

E depois fomos beber café. Tinhamos 15 doentes vivos para tratar a seguir.