sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Insónias

Há coisas que não se esquecem. E a situação que vivi ontem é uma delas. Daquelas que nos fazem custar a adormecer.

Pelas 12h00 de ontem, no Serviço de Urgência, um "triiiiim!" fez médicos, enfermeiros e auxiliares levantarem-se das cadeiras. Era a campainha da reanimação, que avisa da chegada de um doente grave. Tratava-se de uma mulher jovem, com 30 anos, que dizia, com as poucas forças que lhe restavam, que tinha uma falta de ar imensa. Conseguiu contar aos médicos que a falta de ar tinha começado de forma súbita, e conseguiu ainda responder a algumas perguntas relativas a factores de risco para algumas doenças que podem ser responsáveis por um quadro assim. Tentava, desesperada, respirar o mais profundamente possível, e quando percebeu que o mundo em seu redor lhe fugia disse "Vou Morrer". A tensão arterial descia a pique, o coração batia muito depressa, e ela rapidamente perdeu os sentidos. De seu redor, os auxiliares despiam-na, os enfermeiros tentavam desesperadamente canalizar uma veia, um médico fazia-lhe um ECG e um outro fazia intubação orotraqueal (colocação de um tubo na traqueia para conexão a um ventilador). O Cardiologista de urgência rapidamente chegou com o aparelho de ecocardiografia, e as peças do puzzle começavam a organizar-se: tratava-se provavelmente de um tromboembolismo pulmonar maçiço (um coágulo de grandes dimensões - formado na corrente sanguínea, geralmente nas grandes veias dos membros inferiores - desloca-se e oclui os grandes vasos que entram nos pulmões). O ecocardiograma mostrava várias alterações compatíveis com esse diagnóstico, e mostrava - segundo a segundo - um agravamento progressivo da função cardíaca. Rapidamente os pulsos deixaram de se sentir (um sinal claro que a função do coração era já muito baixa), e um médico iniciou massagem cardíaca. O monitor cardíaco mostrava agora que o coração batia cada vez mais devagar, e o ecocardiograma mostrou que batia cada vez pior. No meio de todos estes passos iam sendo administrados vários fármacos que tinham como objectivo melhorar a função do coração, e assim que o diagnóstico se tornou claro foi pedido ao enfermeiro que preparasse a trombólise. A trombólise consiste num farmaco capaz de destruir o coágulo que obstruia as artérias pulmonares, de forma a corrigir o problema que estava na base de todo aquele quadro catastrófico. Estava já a trombólise pronta para a administração quando uma enfermeira diz "esperem!!"... Tinha acabado de fazer a intubação naso-gástrica (colocação de um tubo até ao estômago para esvazia-lo do seu conteúdo), e esta drenava o que parecia ser sangue vivo. Em poucos segundos a incerteza esbateu-se: era sangue vivo que saía do estômago, e em quantidade significativa. Um frio gélido percorreu a sala. O problema não era o sangue em si, mas o facto de a hemorragia activa ser uma contraindicação absoluta para a trombólise. Ou seja, aquele achado tinha acabado de contraindicar a única coisa que poderia reverter aquele quadro gravíssimo, e que aguardava apenas o carregar de um botão para ser iniciada... As manobras de reanimação continuavam, entre a colocação de um catéter venoso central na veia femural (um acesso venoso para a administração de fármacos e soros) e uma gasimetria arterial na artéria femural. Rendi o colega que estava a fazer massagem cardíaca, e subi para cima do estrado. Entre algumas dezenas de compressões o Cardiologista fazia ecocardiograma, que mostrava que o coração já não era capaz de contrair. O monitor mostrava ainda complexos (que denotam a actividade eléctrica do coração), mas já muito espaçados. Tinham já passado 45 minutos desde a entrada da rapariga no Serviço de Urgência. Em poucos segundos surgiu a linha isoeléctrica (a linha plana que mostra a inexistência de actividade eléctrica), e o médico mais velho disse o que todos pensámos: "Acabou". Eu tinha ainda as mãos colocadas sobre o peito da rapariga, de pé em cima do estrado. Perguntei, pura retórica, "acabou?". "Sim, acabou" responderam-me. Uma dezena de profissionais de saúde baixavam os braços, em silêncio. Um silêncio aterrador, cortado apenas pelo barulho que alguns pares de luvas faziam ao serem tirados e deitados para o lixo. Não o "piiiiiii" constante que nos habituamos a ver nos filmes, mas em sua substituição um silêncio enorme. Desci do estrado, endireitei as costas, e tirei também eu as luvas. Em silêncio.