segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Amizade

Esta semana na Urgência chamei o Duarte, de oito anos. Entrou no gabinete acompanhado pela mãe, que trazia um ar agastado, com olheiras fundas e os olhos vermelhos. O Duarte mostrou-me um sorriso simpático, quando o cumprimentei, mas trazia nos olhos uma tristeza escondida. A mãe, preocupada, explicou-me que o Duarte fazia já uma semana que vomitava todos os dias. Uns dias duas, outros três vezes. Sem diarreia, sem febre. Apesar de tudo andava bem disposto, pelo que não o tinha levado antes aos cuidados de um médico. Mas nos dois últimos dias o Duarte apresentava outras queixas, que a preocuparam mais: queixava-se de dores de cabeça e tonturas (explicava-me ele que via a mesa e o livro na escola a caírem para o lado), e também de dores de barriga. Enquanto ele descrevia o que sentia e a mãe completava a descrição, eu ficava progressivamente mais preocupado já que aquela sintomatologia me apontava para um problema do Sistema Nervoso Central. Entretanto a mãe confessou que, mais que a sintomatologia em si, era a semelhança com a sintomatologia que o seu pai, avô do Duarte, apresentava desde há alguns meses que a angustiava. O avô do Duarte tinha uma leucemia com invasão do Sistema Nervoso Central, e estava a aproximar-se a passos largos da morte. Explicou-me a mãe que o Duarte apresentava exactamente os mesmos sintomas do avô, e que já não tinha mais forças para tolerar pensar que também o Duarte pudesse estar doente da mesma forma como estava o pai dela. Expliquei-lhe que era seriamente improvável que o Duarte tivesse uma patologia semelhante à do avô, mas que deixaria a sua observação dar-me mais dados. Observei cuidadosa e demoradamente o Duarte, fiz-lhe um exame neurológico completo, e não encontrei nenhuma alteração. Tudo o que se podia ali inferir acerca do seu funcionamento neurológico me dizia que tudo estava bem. Ou seja, só podia concluir que o Duarte estava, inconscientemente, a imitar a sintomatologia do avô, de tal maneira estava perturbado com as circunstâncias que o envolviam. Cautelosamente abordei a mãe nesse sentido, que afirmou que as queixas eram exactamente iguais e que sim, o avô do Duarte era sem sombra de dúvida o seu melhor amigo. Aquele era o melhor diagnóstico que aqueles sintomas poderiam transmitir, uma transferência das queixas do avô para ele próprio, mas mostrava de facto quão doente estava o Duarte. Não fisicamente, essa parte estava impecável, mas o Duarte estava psicologicamente devastado pelo sofrimento, degradação e iminente morte do seu melhor amigo de sempre, o seu avô. Falei com ele, expliquei-lhe que tal como acontecem coisas boas às pessoas sem que elas façam alguma coisa por isso, também acontecem coisas más. Disse-lhe que a culpa do que se passava com o avô dele não era de ninguém, muito menos dele próprio. E expliquei-lhe que o avô precisava agora da ajuda dele, e que a melhor ajuda que ele poderia dar era estar bem, estar forte, e estar perto dele com um sorriso e um beijo sempre prontos. Conversei depois um pouco com a mãe, sobre o que pensava estar a acontecer, e expliquei-lhe que tinha que conversar muito com ele sobre isto, desculpabiliza-lo de toda a situação envolvente, mas que tinha que se manter atenta à evolução da situação e caso as coisas não melhorassem ele tinha novamente que ser observado. Enquanto isto o Duarte tirou sem eu ver uma folha de papel e uma caneta da minha secretária, e fez um desenho. Desenhou uma árvore alta, com um passarinho pequeno num ramo perto da copa, e uma flor no chão ao lado da árvore grande. No final, quando nos despedíamos, ofereceu-me o desenho, com o mesmo sorriso triste com que tinha entrado no gabinete.
A seguir fui jantar, engolindo as lágrimas ao canto do olho (que ainda agora teimam em aparecer), e amaldiçoando-me por ter sentimentos e me deixar afectar tanto pela história do Duarte. Tranportei esta história para a minha, lembrando-me da relação especial que o meu filho tem com os avós (felizmente saudáveis), coisa que já estava mais que avisado ser errado. Mas se não fosse assim, que tipo de ser humano seria eu?