OS ATESTADOS MÉDICOS
in O Primeiro de Janeiro – 7 de Outubro de 2004
Paulo Mendo*
Primeiro caso: Justificando a sua não comparência a um exame cerca de 1200 alunos apresentaram atestado médico.
Estranhando a estranha epidemia que no mesmo dia afectou tão grande número de jovens foi ordenado um inquérito com suspeita de os atestados terem sido leviana ou fraudulentamente passados por médicos desonestos. Em resultado dessa investigação vários alunos e médicos vão começar a ser julgados, arguidos desta então chamada epidemia de Guimarães.
Segundo caso: A última colocação de professores, além de todos os desaires que sofreu, veio ainda mostrar que uma enorme percentagem de candidatos apresentou atestados para beneficiar da colocação em escolas próximas da residência, ultrapassando colegas mais antigos e melhor classificados. A quantidade desses atestados é tal que há fundadas suspeitas de muitos deles terem sido fraudulentamente obtidos com a cumplicidade e conivência de médicos.
Vale a pena debruçarmo-nos sobre este assunto. Seguramente que há médicos desonestos que a troco de pagamentos ou de favores passam conscientemente atestados que sabem falsos. Em todos as profissões há desonestos e numa classe de trinta mil profissionais ninguém se admirará de que nem todos sejam santos!
Por isso é natural e desejável que a justiça investigue e castigue se for caso disso, não só quem corrompeu como quem se deixou conscientemente corromper.
Mas não será que o próprio atestado faz parte do problema? Julgo que sim. Grande parte da responsabilidade do que sucede reside no facto de a sociedade ter feito do atestado médico e, portanto, do médico, a única justificação válida e insubstituível de faltas ao trabalho, de afirmações de robustez, de necessidade de acompanhamento de familiares doentes, de afirmações de doenças crónicas ou deficiências para atribuição de benefícios sociais e fiscais e por aí fora.
Para tudo a sociedade requer a afirmação peremptória, sim ou não, de um médico. E é aqui que se situa o péssimo nó górdio desta prática social.
Por várias razões: A primeira, mais imediata e indiscutível, é que devendo o médico orientar a sua consulta baseado nas queixas que o doente refere, porque elas são a base e razão do pedido de ajuda do paciente, não pode partir do princípio que o seu doente lhe está a mentir. Mesmo quando, após exame, não encontra razão para as queixas não pode delas duvidar.
Se o doente se queixa de cefaleias intensas e o médico nada encontra que as justifiquem, pode tranquilizar o doente, afirmar-lhe a normalidade do exame, mas não pode dizer que as cefaleias não existem.
E se este lhe pede um atestado porque não aguenta ir trabalhar nesse dia? Vai recusá-lo porque, como se fazia, dizem, na antiga tropa, não tem febre logo não tem doença? Vai destruir a confiança entre si e o doente, princípio essencial do acto médico, dizendo-lhe que não acredita nele?
E qualquer clínico sabe que uma enorme percentagem dos doentes que diariamente vê não tem sinais objectivos detectados no exame que justifiquem as queixas que, no entanto, são reais e indiscutíveis.
Mas outra razão que dá mais valor ainda à anterior é a posição filosófica das sociedades modernas face à saúde e à doença. Porque se por um lado os Estados modernos colocam os médicos como os grandes decisores legais da doença e da saúde dos cidadãos, por outro lado, ultrapassaram toda a humana e limitada capacidade do médico, afirmando que a saúde “ é a completa sensação de bem estar físico moral e social do indivíduo”, tal como o afirma a Organização Mundial da Saúde.
O que, levado ao exagero, mas não muito, serve para justificar como doente e merecedor de atestado aquele que nos vem dizer que não lhe apetece ir ao emprego porque está aborrecido!!!
Por estas razões é muito difícil concluir da falsidade dos atestados médicos, exceptuando-se, apenas, aqueles em que se demonstra terem sido passados, com conhecimento da sua falsidade. E mesmo aqui, há um factor a ter em conta: a banalização e burocratização do atestado.
Necessário para tudo, em nenhuma circunstância sendo substituído pela palavra de honra do interessado, tornou-se um papel inócuo e insignificante que serve para validar tudo. Já a mim, há anos, não podendo comparecer num julgamento porque, como director de um hospital, tinha sido convocado para uma reunião no Ministério e disso tendo informado o Juiz, este me aconselhou a… “meter um atestado”!!
Tendo a sociedade banalizado até ao limite da insignificância o atestado médico para tudo necessário e sendo o acto médico uma ajuda e não um inquérito administrativo, não é de estranhar que os clínicos ajudem o seu paciente, acreditando nele e passando, quando necessário o desacreditado, mas indispensável papel.
O problema não é resolvido pela exigência aos médicos de rígido rigor e precisão científica no atestado que passam, mas na modificação das exigências sociais, aceitando a palavra de honra do cidadão e a responsabilidade de testemunhos, com severo castigo aos mentirosos e tornando os atestados médicos, verdadeiros relatórios, sujeitos a sigilo, necessários apenas em casos especiais em que a gravidade da doença ou a sua duração os torne indispensáveis.
Seguramente que os médicos agradecerão.
*Médico, ex-Ministro da Saúde
A burocratização da profissão médica é um problema sério, que prejudica médicos, doentes, estado, e a própria sociedade... São necessários atestados para tudo e nada, desde o simples gesto de ir para o ginásio até ao mais complexo de faltar ao emprego... São linhas difíceis de traçar as que estabelecem o limite entre o aceitável e o inaceitável, o correcto e o incorrecto, o legal e o ilegal...
Quanto à história da "palavra de honra" cá tenho as minhas reservas, mas a responsabilização do cidadão é de momento mínima...
Enfim, dá que pensar...
quarta-feira, 24 de novembro de 2004
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