in Jornal do Fundão, 17 de Setembro de 2004
por Artur Portela
É antigo esse ódio. E decorre, desde logo, das sombras mágicas de onde, histórica, miticamente, emergiram os médicos. E sobretudo do poder que, sobre o nosso corpo, sobre os nossos medos, sobre a nossa vida, lhes atribuímos. Não foram poucos os adversários dos médicos. Desde logo, os mágicos que persistiram como tal, em forma de loja, de cabala, de seita ou de igreja. Apanharam os médicos a boleia das revoluções burguesas. Instalaram-se. Estão naturalmente em todos os partidos. São blocos de pressão. São lobbies. Bastonarizaram-se. Ordenaram-se. Têm até, suplementar, a sua tradição cultural-humanística, literária. Passaram a supor-se, assim, seguros. Mas eis que ao caminho dos médicos sai, digamos, um novo adversário: tem vinte e alguns-trinta e poucos anos. São os jovens turcos dos engenheiros da banca e do empresariado tutelar. Passam de assessores a chefes de gabinete, primeiro dos engenheiros financeiros, depois dos políticos. Serão secretários de Estado. Isto é, futuros ministros. Os dentes aguçam-se-lhes e as gengivas são a cultura dos seus dentes. Quantificar, racionalizar, rentabilizar. Monetarizar sentimentos. Insensibilizar afectos. Desafectar e desafectivar. Associabilizar, dessolidarizar, desprovidencializar. Um banquete de bancos. Uma empresa de grandes empresas. Ora a Saúde, pelo seu dramatismo, pela sua emotividade, pela desorganização que a morte e o seu risco impõem, é uma oportunidade de ouro para estes jovens turcos. Mas aí estão os médicos. Aqueles que – embora marcados pela evolução, pelas glórias da burguesia – geriam, coutavam, a Saúde. O choque é tremendo. O ataque aos médicos é violento e generalizado. É o médico-barão. É o médico contribuinte faltoso. É o médico incompetente como gestor. É o médico medicamente incompetente. É o médico despromovido a “profissional de saúde”. É o médico submetido a gestores de aviário. É o médico inquirido, processado, culpado. É o médico-funcionário. É o médico-burocrata. É o médico que se insulta a ponto de se lhe acenar com mais salário para que ele se desvincule do Estado e opte pelo contrato individual. Ora, independentemente do óbvio que é ser, ter de ser, o médico, responsável pelos seus actos como médico e como cidadão, o que se passa aqui é o mais evidente dos analfabetismos culturais, humanísticos, do neo-conservadorismo. Não apenas por ser, digamos, um racismo-sócio-profissional. Mas sobretudo por – atingindo-se esta classe desta maneira – se atingir, e em todos nós, aquilo a que esta classe está indissociavelmente ligada, aquilo que ela, para nós, representa: a nossa confiança, a nossa saúde, a nossa vida, a nossa esperança. Claro que os trintanários dos engenheiros não percebem. Mas não o intuirá, ao menos, o instinto de sobrevivência do populismo?
Aqui vai um artigo de opinião tirado d"O Jornal do Fundão". Um pouco agressivo na forma, mas diz algumas coisas interessantes que nos fazem reflectir, mais uma vez, sobre o papel do médico na sociedade actual.
A verdade é que em geral, por muito descabido que possa parecer, o médico sente no "jovem empresário" simultaneamente um amigo e inimigo... Amigo porque está disposto a pagar bem pelos actos médicos, inimigo porque está disposto a cobrar bem pelo que considerar serem os erros médicos. Um reflexo interessante da nossa sociedade...
quinta-feira, 25 de novembro de 2004
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