sábado, 27 de novembro de 2004

Violência

Quando estava no Centro de Saúde a fazer um estágio passou-me pelas mãos um caso verdadeiramente desagradável...
Telefonaram-nos para o gabinete a meio das consultas da manhã, era a Directora do Centro. Disse-nos que vinha uma criança da escola com as professoras. Explicou pouco, queria avisar que se tratava de uma situação delicada e que iria passar directamente para o gabinete médico sem espera.
Alguns minutos depois chegou ao Centro e entrou no gabinete um rapaz de 8 anos de raça negra, alto para a idade, um pouco magro, com um ar bastante indiferente, um pouco envergonhado. Duas professoras da escola primária vinham com ele, absolutamente em polvorosa. Começaram as duas a falar ao mesmo tempo, baralhando-se mutuamente, pelo que a nossa primeira reacção foi tirar a mais espalhafatosa delas da sala: "vá com a Directora tratar das papeladas necessárias...". Com mais calma perguntámos então o porquê de tanta agitação. As professoras tinham-se apercebido que a criança apresentava sinais de agressão física grave na face, situação de que já suspeitavam pelo enquadramento social e comportamental da família, e por esse motivo tinham imediatamente contactado o Centro de Saúde para avaliação médica e seguimento legal/social da situação.
Tinhamos que observar a criança dos pés à cabeça, e por isso pedimos à professora que restava para saír da sala. Aos poucos abordámos o rapaz para perceber o que lhe tinha acontecido. Enquanto se despia contou a história: a tia, com quem ficava sozinho durante a tarde, costumava castiga-lo pelos atrasos ao chegar da escola. Até esse dia os castigos tinham sido leves, apesar de físicos, mas no dia anterior as coisas tinham sido diferentes... (As marcas tornavam-se visíveis à medida que ele se despia) O fio do telemóvel, dobrado, serviu como chicote (nas costas e no peito as marcas em "laço" comprovavam), uma colher de pau tinha servido como bastão (as marcas eram nítidas na pele, e enormes hematomas nas coxas e antebraços atestavam o elevado grau de violência). Uma colher de pau tinha chegado a partir-se, pelo que a tia usou uma segunda colher de pau, até a partir também... Todo o corpo do rapaz tinha sido violentamente agredido, e um hematoma na face tinha denunciado a situação às professoras. Negou abuso sexual, com a mesma frieza gélida com que tinha admitido os espancamentos...
O simples olhar envergonhado para o chão era o único denunciador do desconforto interior que o miúdo sentia... Mas a frieza e naturalidade com que descrevia o episódio gelaram-me até aos ossos: o miúdo estava habituado àquilo...

Não sei o que aconteceu depois. A Assistente Social encarregou-se do caso, a Directora do Centro iria segui-lo de perto, e o meu estágio acabou pouco depois. Mas ainda hoje me arrepio ao lembrar a total ausência de brilho, a total ausência de esperança nos olhos daquele miúdo.