terça-feira, 30 de novembro de 2004

Era apenas uma criança...

Eu expliquei bem o que ía fazer... "Tens que te portar bem! Não te vai doer nada, não te assustes... Vou-te por um pano verde na cara, mas a mãe não vai a lado nenhum, fica aí ao teu lado a dar-te a mão!" (e a segurar-te com força, espero).

A Joana tinha caído em casa, onde acontecem a maior parte dos acidentes. A força com que a sua sobrancelha direita tinha batido na esquina da mesa tinha sido suficiente para fazer um golpe com aproximadamente 2 centímetros. Embrulhada em panos sangrentos tinha sido trazida para o hospital, para as Urgências de Pediatria, de onde a referenciaram para a sala de Pequena Cirurgia. Aí estava eu, entre um corte na mão feito por uma serra de peixe e um abcesso malcheiroso para drenar.
Quando entrou já não sangrava activamente, e não se queixava de dores. Mas a sala fria e branca da Pequena Cirurgia, e o meu fato de bloco verde doeram-lhe bastante à entrada, e desatou logo numa berraria (esta vai dar luta). Falei com ela com o meu sorriso 31, dei-lhe a mão, e pouco depois estava mais silenciosa, fungando deitada na maca (isto não vai ser nada fácil...). "Quantos anos tens? Três?" (a pior idade possível...).
Depois de montado o campo esterilizado com todo o material de sutura coloquei o dito pano verde sobre a cara da Joana, com o buraco sobre a ferida. Imediatamente desatou a espernear e a gritar em plenos pulmões. Dois auxiliares de acção médica, um enfermeiro e um colega meu, que já estavam avisados da provável necessidade do uso da "força" seguraram as pernas, os braços e a cabeça, tentando que o meu "campo de trabalho" se mantivesse o mais imóvel possível. A mãe da Joana sentou-se no banco a chorar, largando-lhe a mão, o que só fez com que a Joana se sacudisse com mais força e gritasse mais alto... Tremendo como varas verdes (quem é que gosta de fazer estas coisas às crianças??) dei os dois pontos necessários, entre rugidos, gritos agudos e bastantes safanões (não, nem quatro homens seguram quieta uma criança de 3 anos, desde que ela não queira MESMO ser agarrada...).
Quando acabei, suado como se tivesse estado a pegar um touro, parecia que tinha passado um furacão pela sala de Pequena Cirurgia... Os auxiliares, o enfermeiro e o meu colega, tão suados como eu, massajavam os braços entorpecidos de fazerem tanta força e a mãe da Joana chorava, agora abraçada à filha. Passado algum tempo, enquanto eu preenchia papeladas, as coisas estavam já mais calmas, e a Joana tinha percebido que o fim da tortura tinha chegado. Com o sorriso 32 voltei a falar com a Joana, autora do cenário dantesco que me rodeava, como que fazendo as pazes com ela... Expliquei-lhe que tinha mesmo que fazer aquilo, e ela acabou por perceber. Não se foi embora sem antes me dar um beijinho. Afinal eu tinha parado com as maldades, tinha doido mais no orgulho do que na pele, e eu até lhe fiz um balão giro com uma luva...
E a Joana, afinal, era apenas a primeira criança daquele dia...

O Clínico Geral (1)

O Clínico Geral, esse tão incompreendido pela sociedade em geral e pelas restantes especialidades médicas, é o mais importante médico para qualquer sistema de saúde (seja o SNS o melhor exemplo). Por isso lhe dedicarei concerteza vários posts, e por isso numero este post como "o primeiro".

Começo por explicar, porque assim é devido, que o Clínico Geral é o Médico de Família. Essa é a designação mais correcta. Porque, se de facto aborda o doente em todas as suas vertentes e toda a sua multipatologia, aborda o doente inserido num grupo familiar, com toda a carga social que tem a família. A especialidade designa-se "Medicina Geral e Familiar" (MGF).

O segundo ponto a sublinhar é que sim, a MGF é uma especialidade! Criada no início dos anos 80 em Portugal, há muito que a Clínica Geral deixou de ser o "saco" para os médicos que não tiravam especialidade! Hoje em dia a formação específica da MGF é de 4 anos. Por isso nunca mais perguntem aos vossos amigos "jovens médicos": "Vais tirar uma especialidade ou vais para Clínica Geral?!"

O Médico de Família é de todos o que trabalha mais perto da população, nos Centros de Saúde, e é capaz de responder por si a 90% (!!!) dos problemas de saúde apresentados pelas pessoas! Os restantes 10% são referenciados às especialidades hospitalares. Muitos desses problemas não são verdadeiros problemas de saúde (no sentido mais estricto do termo), mas sim problemas sociais, problemas de relacionamento familiar, problemas psicológicos, etc... E o Médico de Família tem que ser capaz de abordar o doente como "portador de doença", como indivíduo, como membro de uma família, como elemento da sociedade!

No entanto a sociedade e as restantes especialidades médicas continuam a encarar a MGF como a medicina "menor" e mais ignorante...

segunda-feira, 29 de novembro de 2004

"Inexperiência de médicos"

Encontrei aqui o seguinte:

Degradação das urgências ligada à inexperiência de médicos
in Diário Digital, 22 de Novembro de 2004

Os utentes que recorrem às urgências têm vindo a ser penalizados com a degradação dos serviços, admitiu o presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Manuel Delgado.
A mesma ideia tinha sido já apontada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Germano de Sousa, no início dos trabalhos. De acordo com o clínico, espanhóis recém-formados exercem funções nas urgências dos hospitais nacionais, muitas vezes sem muita preparação. Manuel Delgado partilha destas preocupações, e explicou ao congresso que a contratação de clínico espanhóis é uma solução de recurso, sendo uma segunda escolha. «São profissionais que são colocados nos hospitais sem qualquer ligação com o funcionamento dos hospitais, com a sua estrutura, com os outros colegas que ali trabalham. Não acompanham os doentes», avançou.
Delgado admite mesmo que, neste aspecto, «estamos a repetir um pouco o modelo brasileiro que já provou que não funciona e os doentes que vão às urgências são os mais penalizados com certeza». Como consequência, a qualidade do serviço tem vindo claramente a degradar-se.
____________________

Hum... Eu vivo de perto a situação do Serviço de Urgência, e a minha opinião é bem diferente da do Sr. Bastonário. Trabalhei já com muitos colegas espanhóis, e se concordo que a formação médica deles é um pouco inferior à nossa (especialmente a formação orientada para a prática clínica, situação que se ultrapassa com algum tempo de prática), acho que não é aí que reside o grande problema das nossas urgências!
Na minha opinião, se algum componente de "inexperiência" há no mau funcionamento das Urgências, ele prende-se com a baixa profissionalização dos médicos que asseguram a maior parte dos "balcões" generalistas das urgências: médicos provenientes dos PALOP com baixo grau de diferenciação de conhecimentos médicos (atenção que não pretendo generalizar nem estabelecer uma correlação directa entre competência médica e nacionalidade/etnia...) - única e exclusivamente a licenciatura, tirada nos países de origem. São os chamados "médicos multibanco", por terem como único exercício da profissão fazerem bancos (Urgências) em vários hospitais diferentes.
Mas teremos outra solução no presente? Temos que esperar que as grandes "golfadas" de alunos que entraram para Medicina nos últimos anos lá cheguem para compensar o défice numérico! Isto claro está se não se agravar a tendência política presente de encarar os médicos como mão-de-obra fácil... Porque se assim for, estes "médicos multibanco" serão sempre mão-de-obra mais barata e portanto preferencial do ponto de vista da gestão empresarial dos hospitais...

Já agora aproveito para censurar fortemente o título sensacionalista e deletério da imagem dos médicos em geral usado pelo "Diário Digital" neste artigo!

domingo, 28 de novembro de 2004

O erro médico

Nos arquivos d'O Gin Tónico encontrei um texto intitulado "Erro médico", muito interessante!

Podem encontra-lo aqui.

A estrada

Fala-se muito sobre as estradas em Portugal, sobre a morte nas estradas, sobre o modo de condução dos portugueses (blog.liberal-social.org). Agora há anúncios na televisão que têm por objectivo chocar, levar aos portugueses um pouco do horror, fazer entrar na casa de cada um o drama vivido na estrada. Não concordo com o formato, mas é uma maneira de fazer as coisas...

Nos hospitais esse drama é vivido de uma forma um pouco diferente, mas igualmente dramática... (sem o piano de fundo)
"Vai chegar um acidentado da Ponte Vasco da Gama!", informa o chefe de equipe. Acorda-se quem fica a assegurar as urgências, quem vai para a "sala de directos" (para onde entram os doentes verdadeiramente emergentes). Felizmente avisaram com alguma antecedência, quase parecia um filme. O mais frequente é simplesmente tocar a campainha dos directos e segue-se a debandada geral. Prepara-se tudo para um acidentado, porque apesar de virem dois um deles entrou cadáver. O "directo" é o "innocent by-stander", regressava a casa depois do turno quando os "Streetracers" o apanharam desprevenido e provavelmente sonolento... À chegada do doente a ansiedade é enorme, e todos os procedimentos necessários se colocam em marcha. Um aluno de Medicina olha de longe, encostado à parede para não atrapalhar, com todos os sentidos alerta. Algumas manobras de reanimação depois e o doente está estabilizado o suficiente para seguir para o bloco operatório. Dois cirurgiões "sénior" e um médico interno, três intensas horas depois, saem enraivecidos e desiludidos (o calo não impede a frustração) por não terem sido capazes de modificar o destino daquele homem. Entraram à partida cientes da baixa probabilidade de sucesso, mas ainda assim investiram tudo o que podiam, porque acreditaram. Mas ao contrário dos filmes acreditar não chega... "Doutor, tem ali a esposa do senhor..." avisa uma auxiliar apreensiva. Dez segundos de conversa acabam num grito agudo que preenche o corredor deserto de acesso ao Bloco Operatório. As Urgências não esperam, e há um baleado a entrar. Parece que foi uma rixa entre traficantes. 24 horas podem ser muito, muito longas...

sábado, 27 de novembro de 2004

Violência

Quando estava no Centro de Saúde a fazer um estágio passou-me pelas mãos um caso verdadeiramente desagradável...
Telefonaram-nos para o gabinete a meio das consultas da manhã, era a Directora do Centro. Disse-nos que vinha uma criança da escola com as professoras. Explicou pouco, queria avisar que se tratava de uma situação delicada e que iria passar directamente para o gabinete médico sem espera.
Alguns minutos depois chegou ao Centro e entrou no gabinete um rapaz de 8 anos de raça negra, alto para a idade, um pouco magro, com um ar bastante indiferente, um pouco envergonhado. Duas professoras da escola primária vinham com ele, absolutamente em polvorosa. Começaram as duas a falar ao mesmo tempo, baralhando-se mutuamente, pelo que a nossa primeira reacção foi tirar a mais espalhafatosa delas da sala: "vá com a Directora tratar das papeladas necessárias...". Com mais calma perguntámos então o porquê de tanta agitação. As professoras tinham-se apercebido que a criança apresentava sinais de agressão física grave na face, situação de que já suspeitavam pelo enquadramento social e comportamental da família, e por esse motivo tinham imediatamente contactado o Centro de Saúde para avaliação médica e seguimento legal/social da situação.
Tinhamos que observar a criança dos pés à cabeça, e por isso pedimos à professora que restava para saír da sala. Aos poucos abordámos o rapaz para perceber o que lhe tinha acontecido. Enquanto se despia contou a história: a tia, com quem ficava sozinho durante a tarde, costumava castiga-lo pelos atrasos ao chegar da escola. Até esse dia os castigos tinham sido leves, apesar de físicos, mas no dia anterior as coisas tinham sido diferentes... (As marcas tornavam-se visíveis à medida que ele se despia) O fio do telemóvel, dobrado, serviu como chicote (nas costas e no peito as marcas em "laço" comprovavam), uma colher de pau tinha servido como bastão (as marcas eram nítidas na pele, e enormes hematomas nas coxas e antebraços atestavam o elevado grau de violência). Uma colher de pau tinha chegado a partir-se, pelo que a tia usou uma segunda colher de pau, até a partir também... Todo o corpo do rapaz tinha sido violentamente agredido, e um hematoma na face tinha denunciado a situação às professoras. Negou abuso sexual, com a mesma frieza gélida com que tinha admitido os espancamentos...
O simples olhar envergonhado para o chão era o único denunciador do desconforto interior que o miúdo sentia... Mas a frieza e naturalidade com que descrevia o episódio gelaram-me até aos ossos: o miúdo estava habituado àquilo...

Não sei o que aconteceu depois. A Assistente Social encarregou-se do caso, a Directora do Centro iria segui-lo de perto, e o meu estágio acabou pouco depois. Mas ainda hoje me arrepio ao lembrar a total ausência de brilho, a total ausência de esperança nos olhos daquele miúdo.

quinta-feira, 25 de novembro de 2004

O ódio aos médicos

in Jornal do Fundão, 17 de Setembro de 2004
por Artur Portela


É antigo esse ódio. E decorre, desde logo, das sombras mágicas de onde, histórica, miticamente, emergiram os médicos. E sobretudo do poder que, sobre o nosso corpo, sobre os nossos medos, sobre a nossa vida, lhes atribuímos. Não foram poucos os adversários dos médicos. Desde logo, os mágicos que persistiram como tal, em forma de loja, de cabala, de seita ou de igreja. Apanharam os médicos a boleia das revoluções burguesas. Instalaram-se. Estão naturalmente em todos os partidos. São blocos de pressão. São lobbies. Bastonarizaram-se. Ordenaram-se. Têm até, suplementar, a sua tradição cultural-humanística, literária. Passaram a supor-se, assim, seguros. Mas eis que ao caminho dos médicos sai, digamos, um novo adversário: tem vinte e alguns-trinta e poucos anos. São os jovens turcos dos engenheiros da banca e do empresariado tutelar. Passam de assessores a chefes de gabinete, primeiro dos engenheiros financeiros, depois dos políticos. Serão secretários de Estado. Isto é, futuros ministros. Os dentes aguçam-se-lhes e as gengivas são a cultura dos seus dentes. Quantificar, racionalizar, rentabilizar. Monetarizar sentimentos. Insensibilizar afectos. Desafectar e desafectivar. Associabilizar, dessolidarizar, desprovidencializar. Um banquete de bancos. Uma empresa de grandes empresas. Ora a Saúde, pelo seu dramatismo, pela sua emotividade, pela desorganização que a morte e o seu risco impõem, é uma oportunidade de ouro para estes jovens turcos. Mas aí estão os médicos. Aqueles que – embora marcados pela evolução, pelas glórias da burguesia – geriam, coutavam, a Saúde. O choque é tremendo. O ataque aos médicos é violento e generalizado. É o médico-barão. É o médico contribuinte faltoso. É o médico incompetente como gestor. É o médico medicamente incompetente. É o médico despromovido a “profissional de saúde”. É o médico submetido a gestores de aviário. É o médico inquirido, processado, culpado. É o médico-funcionário. É o médico-burocrata. É o médico que se insulta a ponto de se lhe acenar com mais salário para que ele se desvincule do Estado e opte pelo contrato individual. Ora, independentemente do óbvio que é ser, ter de ser, o médico, responsável pelos seus actos como médico e como cidadão, o que se passa aqui é o mais evidente dos analfabetismos culturais, humanísticos, do neo-conservadorismo. Não apenas por ser, digamos, um racismo-sócio-profissional. Mas sobretudo por – atingindo-se esta classe desta maneira – se atingir, e em todos nós, aquilo a que esta classe está indissociavelmente ligada, aquilo que ela, para nós, representa: a nossa confiança, a nossa saúde, a nossa vida, a nossa esperança. Claro que os trintanários dos engenheiros não percebem. Mas não o intuirá, ao menos, o instinto de sobrevivência do populismo?


Aqui vai um artigo de opinião tirado d"O Jornal do Fundão". Um pouco agressivo na forma, mas diz algumas coisas interessantes que nos fazem reflectir, mais uma vez, sobre o papel do médico na sociedade actual.
A verdade é que em geral, por muito descabido que possa parecer, o médico sente no "jovem empresário" simultaneamente um amigo e inimigo... Amigo porque está disposto a pagar bem pelos actos médicos, inimigo porque está disposto a cobrar bem pelo que considerar serem os erros médicos. Um reflexo interessante da nossa sociedade...

quarta-feira, 24 de novembro de 2004

Dá que pensar...

OS ATESTADOS MÉDICOS
in O Primeiro de Janeiro7 de Outubro de 2004
Paulo Mendo*

Primeiro caso: Justificando a sua não comparência a um exame cerca de 1200 alunos apresentaram atestado médico.
Estranhando a estranha epidemia que no mesmo dia afectou tão grande número de jovens foi ordenado um inquérito com suspeita de os atestados terem sido leviana ou fraudulentamente passados por médicos desonestos. Em resultado dessa investigação vários alunos e médicos vão começar a ser julgados, arguidos desta então chamada epidemia de Guimarães.
Segundo caso: A última colocação de professores, além de todos os desaires que sofreu, veio ainda mostrar que uma enorme percentagem de candidatos apresentou atestados para beneficiar da colocação em escolas próximas da residência, ultrapassando colegas mais antigos e melhor classificados. A quantidade desses atestados é tal que há fundadas suspeitas de muitos deles terem sido fraudulentamente obtidos com a cumplicidade e conivência de médicos.
Vale a pena debruçarmo-nos sobre este assunto. Seguramente que há médicos desonestos que a troco de pagamentos ou de favores passam conscientemente atestados que sabem falsos. Em todos as profissões há desonestos e numa classe de trinta mil profissionais ninguém se admirará de que nem todos sejam santos!
Por isso é natural e desejável que a justiça investigue e castigue se for caso disso, não só quem corrompeu como quem se deixou conscientemente corromper.
Mas não será que o próprio atestado faz parte do problema? Julgo que sim. Grande parte da responsabilidade do que sucede reside no facto de a sociedade ter feito do atestado médico e, portanto, do médico, a única justificação válida e insubstituível de faltas ao trabalho, de afirmações de robustez, de necessidade de acompanhamento de familiares doentes, de afirmações de doenças crónicas ou deficiências para atribuição de benefícios sociais e fiscais e por aí fora.
Para tudo a sociedade requer a afirmação peremptória, sim ou não, de um médico. E é aqui que se situa o péssimo nó górdio desta prática social.
Por várias razões: A primeira, mais imediata e indiscutível, é que devendo o médico orientar a sua consulta baseado nas queixas que o doente refere, porque elas são a base e razão do pedido de ajuda do paciente, não pode partir do princípio que o seu doente lhe está a mentir. Mesmo quando, após exame, não encontra razão para as queixas não pode delas duvidar.
Se o doente se queixa de cefaleias intensas e o médico nada encontra que as justifiquem, pode tranquilizar o doente, afirmar-lhe a normalidade do exame, mas não pode dizer que as cefaleias não existem.
E se este lhe pede um atestado porque não aguenta ir trabalhar nesse dia? Vai recusá-lo porque, como se fazia, dizem, na antiga tropa, não tem febre logo não tem doença? Vai destruir a confiança entre si e o doente, princípio essencial do acto médico, dizendo-lhe que não acredita nele?
E qualquer clínico sabe que uma enorme percentagem dos doentes que diariamente vê não tem sinais objectivos detectados no exame que justifiquem as queixas que, no entanto, são reais e indiscutíveis.
Mas outra razão que dá mais valor ainda à anterior é a posição filosófica das sociedades modernas face à saúde e à doença. Porque se por um lado os Estados modernos colocam os médicos como os grandes decisores legais da doença e da saúde dos cidadãos, por outro lado, ultrapassaram toda a humana e limitada capacidade do médico, afirmando que a saúde “ é a completa sensação de bem estar físico moral e social do indivíduo”, tal como o afirma a Organização Mundial da Saúde.
O que, levado ao exagero, mas não muito, serve para justificar como doente e merecedor de atestado aquele que nos vem dizer que não lhe apetece ir ao emprego porque está aborrecido!!!
Por estas razões é muito difícil concluir da falsidade dos atestados médicos, exceptuando-se, apenas, aqueles em que se demonstra terem sido passados, com conhecimento da sua falsidade. E mesmo aqui, há um factor a ter em conta: a banalização e burocratização do atestado.
Necessário para tudo, em nenhuma circunstância sendo substituído pela palavra de honra do interessado, tornou-se um papel inócuo e insignificante que serve para validar tudo. Já a mim, há anos, não podendo comparecer num julgamento porque, como director de um hospital, tinha sido convocado para uma reunião no Ministério e disso tendo informado o Juiz, este me aconselhou a… “meter um atestado”!!
Tendo a sociedade banalizado até ao limite da insignificância o atestado médico para tudo necessário e sendo o acto médico uma ajuda e não um inquérito administrativo, não é de estranhar que os clínicos ajudem o seu paciente, acreditando nele e passando, quando necessário o desacreditado, mas indispensável papel.
O problema não é resolvido pela exigência aos médicos de rígido rigor e precisão científica no atestado que passam, mas na modificação das exigências sociais, aceitando a palavra de honra do cidadão e a responsabilidade de testemunhos, com severo castigo aos mentirosos e tornando os atestados médicos, verdadeiros relatórios, sujeitos a sigilo, necessários apenas em casos especiais em que a gravidade da doença ou a sua duração os torne indispensáveis.
Seguramente que os médicos agradecerão.

*Médico, ex-Ministro da Saúde


A burocratização da profissão médica é um problema sério, que prejudica médicos, doentes, estado, e a própria sociedade... São necessários atestados para tudo e nada, desde o simples gesto de ir para o ginásio até ao mais complexo de faltar ao emprego... São linhas difíceis de traçar as que estabelecem o limite entre o aceitável e o inaceitável, o correcto e o incorrecto, o legal e o ilegal...
Quanto à história da "palavra de honra" cá tenho as minhas reservas, mas a responsabilização do cidadão é de momento mínima...
Enfim, dá que pensar...

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Outro mundo

O meu silêncio dos últimos dias prende-se com uma viagem a outro mundo. Um mundo de contrastes entre o que se quer deixar ver ao turista e o que o turista por vezes consegue ver por entre as frestas da fachada.

Estive no Brasil. Entrevi a pobreza numa escala assustadora, a pobreza económica e a pobreza social, a menos falada. Não se trata só de pessoas com poucas posses económicas a tentar lutar pela vida... Apercebi-me de um enorme vazio cultural e de valores criado por uma ainda maior descaracterização cultural. Falo, claro de uma grande cidade. Bastante grande mesmo, pelos padrões a que estamos habituados na nossa santa terrinha! Passeando em autocarros turísticos, por detrás do vidro, apresentaram-nos as caras sorridentes, os pontos turísticos bonitos, a cara lavada de Salvador da Bahia. Nas entrelinhas li fome, pobreza, favelas a perder de vista (tapadas pelo barulho do guia entre dois pontos turísticos), e uma cultura vazia de valores, em que o próximo é amado só para lhe tirar umas notas de Real do bolso. E depois há a cultura religiosa, onde o Orixá dá a mão a Deus numa contradição que surge com uma espantosa indiferença. São as histórias que se contam, a realidade é outra.

Mas confesso que foram as semelhanças com algumas vertentes mais recentes do nosso próprio país que me assustaram, mais que as diferenças. Saberemos nós fazer diferente?

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Falta de ar...

Mais um dia passado nas urgências de um grande Hospital de Lisboa, e a sala de aerossóis estava como de costume: a rebentar pelas costuras. Asmas, doenças pulmonares crónicas (DPOCs), insuficiências cardíacas, enfim, muitas queixas de falta de ar levavam as pessoas a entrar na sala de aerossóis.

Por volta da uma da manhã as coisas acalmavam um pouco, e conseguíamos ter só dois ou três doentes nos grandes cadeirões daquela sala. A maior parte das asmas e DPOCs já tinham ido embora, e chegavam agora pessoas um bocadinho diferentes...
O Manuel, habitueé, dormitava no cadeirão. Já tinha feito um jantar tardio, e contado a mesma história de sempre. Tem falta de ar, senhor Manuel? "Sim, sim... Mas deixe-me contar... A minha mulher é uma chata... Ressona muito e é uma mulher doente... Sinto-me muito sozinho às vezes, sabe?". A casa dele, segundo contava, não podia ser bem chamada de casa... Era um barracão frio, onde chovia, quando chovia. Nessa noite não era esse o problema, o que lhe custava era a mulher. "Eu tenho 84 anos, sabe? A minha mulher 64. Mas ela é muito mais doente que eu, sabe, tenho pouca paciência...". Quando a falta de ar continuava a não existir, mas a hora adiantava, dizia: "Já não há transportes baratos a esta hora, e eu não tenho dinheiro para o táxi... Os seus colegas costumam..." Eu sei, senhor Manuel, deixa-lo cá ficar até ser dia... Sim, dão-lhe qualquer coisa que se coma, dão sempre...

O José era mais conversador, e ia lá menos vezes. Era a solidão que o assolava de vez em quando, e a sala de aerossóis era o ponto de destino. O passaporte directo para lá era o de sempre: "Tenho muita falta de ar...". Mas só tinha falta de ar quando falava demais, e em casa "Estava muito sozinho e assustei-me...". José ajudava sempre a melhorar o "moral" da sala de aerossóis. Fazia rir os doentes com as suas histórias de vida "Quando eu carregava mercadorias no porto de Lisboa...", o que com os asmáticos não dava bom resultado...

Dia após dia, para dois dedos de conversa ou um copo de leite quente, umas quantas "faltas de ar" atacam a noite solitária da Lisboa mais escura.

segunda-feira, 8 de novembro de 2004

Contrastes



Posted by Hello

Reflexos da nossa sociedade onde nos custa mais ve-los: nas crianças.

O milagre de S. Cosme


Óleo sobre tela; Museu da Real Colegiata de San Cosme y San Damian de Covarrubias. Burgos, Espanha. Pedro Berruguete (1450-1504) Posted by Hello

Esta imagem faz-nos pensar um pouco sobre a actual imagem dos médicos na sociedade... Antigamente os médicos eram muito distantes do povo, eram os burgueses e os nobres os únicos com acesso aos cuidados médicos. Por outro lado, os médicos eram tidos como "semi-deuses", com algum poder sobre a vida e a morte (reparem nas auréolas).

Hoje em dia a medicina pretende chegar a todos, pelo menos na Europa. Por outro lado, especialmente nas camadas mais jovens da sociedade, os médicos são alvo de enormes desconfianças e críticas, e à partida as pessoas tendem a abordar o médico defensivamente, com a ameaça de um processo em tribunal constantemente no bolso...

Duas visões completamente distintas da profissão, nenhuma delas do meu acordo. O médico é um profissional, como tantos outros, com uma profissão de enorme responsabilidade. Dessa responsabilidade (lidamos de facto com a vida e a morte) não nos podemos alhear, como médicos ou como doentes. Mas também não nos podemos alhear do facto de que todos os médicos são humanos, e como tal têm o direito a errar (direito não concedido aos deuses...).