domingo, 23 de janeiro de 2005

Mais uma

Quando acabámos de observar a Luísa, que estava no termo da gravidez, chamáram-nos à porta. Era uma enfermeira do hospital, que trazia a sua sobrinha Carla para ser observada na urgência de ginecologia, a pedido dos colegas da urgência central. Perguntámos o motivo que as levava ao SU, e foi-nos dito que tinha dores pélvicas e uma anemia grave, pelo que estava até deitada numa maca. Mandámos entrar a filha, a mãe e a tia ficaram fora da sala. Antes de a observarmos fizemos as perguntas habituais. A Carla tinha 28 anos e tinha começado há alguns dias com dores pélvicas. Tinha aparecido o período menstrual, desta vez em quantidades superiores às habituais. Afirmou que o seu período menstrual era habitualmente abundante, mas desta vez tinha sido ainda mais. Não tinha tido qualquer atraso no período menstrual, afirmava claramente. Pedimos-lhe então que se deitasse na marquesa de observação. Assim que se despiu da cintura para baixo e se deitou na marquesa ginecológica surgiu um cheiro fétido, típico de uma infecção bacteriana, que imediatamente preencheu a sala com um ambiente pesado. A enfermeira, a médica e eu tivemos a mesma reacção, perfeitamente instintiva: todos franzimos a cara pela extrema intensidade do cheiro. Perguntámos se não tinha notado naquele odor fétido. Disse-nos que sim, olhou para o lado, e não disse mais nada. O ar comprometido dela e o novo dado adquirido fizeram-nos automaticamente desconfiar da veracidade da sua história. Colocámos o espéculo, e percebemos que do interior do útero, cujo colo estava dilatado, saía um material purulento e sanguinolento muito abundante. Era daí que vinha cheiro fétido. Tinha, aparentemente, uma infecção grave do útero que se designa endometrite (infecção do endométrio). Com uma pinça própria, e dada a dilatação do colo, drenámos o líquido fétido do interior do útero. Juntamente com o líquido fétido saíam massas disformes de material sólido. A ideia que aos poucos ganhava forma na nossa cabeça tornava-se cada vez mais clara. Perguntámos se não tinha engravidado e se não tinha feito qualquer manobra abortiva. Negou, com muito pouca convicção. Explicámos calmamente que não estávamos ali para criticar ou fazer juizos de valor fosse ao que fosse, que nos importava somente a saúde dela, e que precisávamos de saber a verdade para a tratarmos convenientemente. Manteve os olhos virados para o lado, e não voltou a abrir a boca. Saíu da marquesa, deitou-se na maca, e ficou numa sala a fazer soros endovenosos. O objectivo era deixar encher a bexiga para fazer uma ecografia pélvica. Algum tempo depois pudémos fazer a ecografia, e confirmar o que tinhamos visto antes: havia abundante conteúdo líquido e sólido no interior da cavidade uterina. As análises laboratoriais eram consistentes com infecção grave. Ficou internada para fazer antibiótico endovenoso.
Em termos clínicos poucas dúvidas restavam que questionassem o óbvio: a Carla tinha feito uma interrupção de gravidez, provavelmente de uma gravidez já relativamente "adiantada". A vergonha e ilegalidade do que tinha feito fizeram-na esconder o sucedido durante algum tempo, tempo suficiente para adquirir uma infecção uterina muito grave, com possível esterilidade futura. Isto, claro, se pudesse ser evitada a histerectomia (remoção do útero), tal era a extensão e gravidade da infecção. Isto para não dizer que a mera sobrevivência da Carla naquela situação não era um dado totalmente adquirido.

Esta é só mais uma das muitas histórias semelhantes que se passam neste país, de norte a sul, consequência do aborto ilegal.