domingo, 9 de janeiro de 2005

O verdadeiro motivo

A ficha da doente que se seguia estava em cima da mesa. A enfermeira avisou que se tratava de uma toxicodependente (ou pelo menos era assim que ela a via), com um desdém um pouco escusado. Chamámos o nome dela, e pouco depois entrou na sala da urgência de ginecologia-obstetrícia. Era extremamente magra, com a pele escurecida e bastante peluda. Tinha calças de cabedal, com botas altas, um casaco com pelo na gola e uma bóina enterrada na cabeça. Tinha um ar pouco "higiénico". Cumprimentámo-la, e perguntámos do que se queixava. Disse "tenho muita comichão por trás, muita muita, dá vontade de ficar lá com o chuveiro a dar com força... E parece que tenho um pedaço de carne lá no cú, parece que é lá que tenho a comichão.". Tinha começado há algumas semanas. Não nos soube explicar porque não tinha ido à médica de família, só que "a comichão no cú não me deixa dormir...". Despiu-se da cintura para baixo (deixou o casaco e a bóina), deitou-se na marquesa de observação, e colocou-se na posição de observação. Tinha um condiloma no ânus (uma lesão provocada por um vírus transmitido por via sexual), mas fora isso nada mais. Vestiu-se novamente, e recomendámos que fosse à médica de família, visto não se tratar de uma situação urgente. Justificava seguimento, mas não no SU. Agradeceu, levantou-se, apertou-nos a mão, e de repente (com "aquele" ar de quem tinha aquela na manga desde que entrou) diz "ah, é verdade, tinha mais uma coisa para lhe perguntar... Eu tenho uma amiga, lá num centro onde faço umas coisas (?), que tem aquela doença, sabe a SIDA... No outro dia usei um pente dela, nem pensei bem, e depois lembrei-me que ela tem umas feridas horríveis, sabe, da doença que tem, na cabeça, que até têm sangue... Uma coisa horrível, deixou-me cheinha de nojo, arrepiei-me toda, olhe está a ver, ainda agora me arrepio todinha de me lembrar daquele nojo de feridas... Acha que há problema, do pente?". Torcemos ambos o nariz aquela história (muito mal contada), e a minha tutora disse-lhe descontraidamente que estivesse descansada, que não era daquele pente que ela poderia ser HIV+ e que, se havia outros motivos para isso, o melhor era falar com a médica de família. Recordo que a doente tinha lesões sexualmente transmissíveis no ânus... Não era concerteza o pente que a preocupava...

É muito frequente, em urgência e em consulta, esta história dos "motivos ocultos"... Os doentes fazem as suas queixas habituais, conversam "da vida", e à saída disparam o verdadeiro motivo da ida à urgência ou à consulta. Assim como quem não quer a coisa... E nós temos mais é que compreender, sorrir, e começar a consulta verdadeira!

Enfim, histórias do SU de GO...