quinta-feira, 3 de março de 2005

Histórias de SAP

O SAP, Serviço de Atendimento Permanente, é um sítio muito especial, por mim carinhosamente apelidado de "Selva". Estive lá hoje. A grande maioria dos doentes que vi estavam constipados. Entre "COF COF!" e "ATCHIM!", vamos fazendo diagnósticos complexos e brilhantes como sendo as rinites, sinusites, rinofaringites, faringites, amigdalites, laringites, laringotraqueites, etc... No meio de tanta gente pouco-doente (porque a maioria destas doenças não são doenças graves, por muito que custe te-las) aparecem umas dezenas de não-doentes. Desde "dores nas costas há três meses", passando pelos tradicionais "estive doente, faltei ao emprego, e agora quero baixa", os não-doentes vão passear ao SAP, em vez de ir para o supermercado. Para variar um bocadinho. Com sorte encontra-se alguém de-facto-um-bocado-doente.

Acabados de atender a D. Júlia, que padecia de uma rinofaringite viral, a enfermeira do SAP entrou na sala onde eu estava com o meu tutor. Informou-nos que um rapaz tinha perdido os sentidos na sala de espera. Fomos até ao gabinete do lado, onde estava o rapaz. Já tinha recuperado a consciência, e estava sentado numa cadeira de rodas com a cabeça baixa. Tinha 19 anos, e um breve questionário permitiu-nos perceber que se trataria provavelmente de uma reacção vagal (um simples "desmaio", que geralmente não implica a existência de uma doença do coração ou epilepsia). Ele ainda estava meio "abananado", a tensão arterial estava baixa e a frequência cardíaca também. Tudo isto estava de acordo com uma reacção vagal. Aos poucos começou a recuperar, e ficou um pouco naquele gabinete a fazer "esperoterapia" (esperar a ver se passa...).
Entretanto chamamos o próximo doente, uma criança de 2 anos. Entrou sorridente, mas rapidamente se desvaneceu o sorriso quando o comecei a observar. A auscultação até correu bem, ele entendeu que o estetoscópio seria inofensivo. As minhas palavras e festinhas também ajudaram, mas quando chegámos à observação da garganta e dos ouvidos o caso mudou de figura. A inocente e sorridente criança transformou-se num demónio, gritando com todas as suas forças. Esperneava e serpenteava no colo da mãe, de tal forma que acertar-lhe com o otoscópio no ouvido foi um "tiro" digno de recorde mundial. Ver a garganta não foi mais fácil, sendo que o pequeno demónio mordeu a espátula com força sobre-humana, enquanto berrava entredentes. No final da sessão de tortura, diagnóstico feito: NADA. Tinha febre, sim, mas o restante exame objectivo era normal. Provavelmente virá a manifestar-se amanhã ou depois como uma otite, uma faringite, ou qualquer outra "ite", mas hoje não tem ainda nada. Explicamos isto calmamente à mãe, que se vai embora com a receita de anti-inflamatório e anti-pirético com um ar desconfiado. Amanhã ou depois seremos concerteza os "péssimos médicos do SAP", que não diagnosticaram uma "claríssima amigdalite" à criancinha... "É uma vergonha, a medicina deste país..." dirá no autocarro à amiga.
Entretanto o rapaz de 19 anos já estava bem. A tensão arterial e a frequência cardíaca tinham regressado ao normal, e conseguia queixar-se agora dos vómitos que tinha tido durante a noite. Medicámos adequadamente, demos os conselhos certos, e foi-se embora.
Já dez fichas repousavam em cima da secretária, cada uma delas tinha o seu "doente" à espera de ser atendido. Entrou então o Sr. António. Estava preocupado com os "açúcares no sangue, têm estado altos". Mediu na farmácia três vezes em três dias diferentes, tinha sempre valores elevados. Ali ficou diagnosticada uma Diabetes. Os valores eram de facto muito elevados, e confirmaram-se ali mesmo. Fazia, por acaso, parte da lista de utentes do meu tutor. O tom de pele escurecido colocaram-nos na pista de uma Hemocromatose. Ficou, esse diagnóstico ou a sua exclusão, para as cenas do próximo episódio. Ali era importante medicar, para trazer a glicémia para valores mais próximos dos normais.
E muitas fichas se seguiram, com outras tantas histórias. Umas mais interessantes que outras, claro.