sexta-feira, 25 de março de 2005

Os "doentes saltitões"

A quem é que eu chamo "doente saltitão"? Àquele que procura directamente os médicos especialistas, sem passarem pelo "crivo" do médico generalista (clínico geral ou internista).
O "doente saltitão" interpreta os seus sintomas como correspondendo a doença de um determinado órgão, e imediatamente procura o especialista responsável pelo dito órgão. Se tem falta de ar vai ao pneumologista, se doi a barriga vai ao gastrenterologista, se tem um problema na pele vai ao dermatologista, e assim por diante.
O "doente saltitão" entra num de dois grupos: ou tem dinheiro suficiente para ir aos especialistas da privada, ou tem um sistema de saúde que faz convenções com os especialistas da privada (é o caso da ADSE e alguns seguros de saúde). Geralmente entende-se que a facilidade de acesso aos especialistas é sinónimo de bons cuidados médicos. Mas o grande problema dos "doentes saltitões", e é isso sim que me preocupa, é que essa correspondência é absolutamente falsa! De facto, estes doentes não têm um médico generalista que conheça o seu passado clínico e que olhe para o doente como um todo, mais do que um somatório de vários órgãos. Porque nem sempre uma falta de ar corresponde a uma doença pulmonar! Pode surgir por doença cardíaca, por doença muscular, por doença do sistema nervoso central, por um problema psicológico/psiquiátrico, por um problema hormonal (endocrinológico), etc, etc, etc... Não quer isto dizer que os especialistas não conhecem os diagnósticos diferenciais das doenças que tratam com mais frequência, mas é muito fácil olhar para o doente pensando predominantemente num órgão e encontrar um diagnóstico que "encaixa" mas não é correcto...

A D. Luísa tem ADSE. Foi ao consultório privado de um Clínico Geral, que trabalha no Centro de Saúde onde eu trabalho actualmente, porque não se sentia bem. Aliás, já há dois anos que não se sentia bem. Nesses dois anos tinha tido vários problemas de pele, com queda de cabelo e pele seca, pelo que tinha ido a um Dermatologista. Infelizmente, apesar das melhoras provocadas pelos cremes e champôs, não tinha ficado completamente bem. Queixava-se também de falta de força e de ar, que tinha agravado progressivamente nos dois últimos anos. Tinha também engordado vários quilos, pelo que foi seguida por um Nutricionista que tinha feito uma amiga dela emagrecer 15 quilos! No entanto, não perdeu peso algum. Por tudo isto, porque uma das suas irmãs tinha cancro, e se calhar algo mais que desconhecia, sentia-se profundamente triste. Chorava facilmente, e ficava horas a fio fechada dentro de casa sem vontade de falar com as pessoas. Uma amiga íntima recomendou-lhe um Psiquiatra excelente, que lhe diagnosticou uma depressão. Medicou-a, bem, com antidepressivos.
Outra amiga houve que, passados dois anos de "saltitar", lhe recomendou um "saltinho" a um médico de Clínica Geral - mas que é muito competente. E assim tinha ido parar ao consultório do dito Clínico Geral. Este, em face de toda esta história, facilmente suspeitou de um hipotiroidismo (doença endocrinológica em que a tiróide não produz a quantidade normal de hormona tiroideia). As análises laboratoriais confirmaram o diagnóstico, e a terapêutica adequada fez resolver a queda de cabelo, a pele seca, o cansaço, o aumento de peso e a depressão...
Pele seca tem muita gente... O dermatologista medicou de acordo com os sintomas apresentados, e a doente tinha apenas falado do problema da pele (ora se estava no dermatologista, iria ela falar da depressão?). Depressão tem muita gente, e a neoplasia da irmã dava-lhe um motivo bem plausível para se sentir mais triste... Que diabo, e havia ela de se queixar ao Psiquiatra da pele seca?! Excesso de peso, infelizmente, sobeja na população portuguesa. É óbvio que o Nutricionista fez o que devia: recomendou uma dieta adequada e exercício físico. E, caramba, porque iria ela falar da depressão ao Nutricionista?

Um médico generalista não trata todas as doenças - apesar de resolver 90% dos problemas de saúde das pessoas*. Mas olha para o doente como um todo, e encaminha as doenças que não sabe tratar para o especialista adequado. E poupa, assim, muito tempo aos "doentes saltitões"...



* Para o meu leitor ABS, que certamente lerá esta pequena crónica: recordo a aula em que este surpreendente número me foi transmitido pelo Prof. GJ. Para ele fica esta memória.