quinta-feira, 10 de março de 2005

Já fez abortos?

Esta pergunta não é feita todos os dias... Não é, também, feita por todas as pessoas. No entanto, os médicos precisam muitas vezes de saber se uma determinada mulher já fez interrupções voluntárias da gravidez (IVG), pelo que é uma pergunta frequente no consultório de um Médico de Família. As respostas, essas, ficam lá dentro. Antes de ser estudante de medicina, não sei se por ser muito novo e inocente ou por contactar pouco com estas realidades, não fazia ideia se eram muitas ou poucas as mulheres que abortam. Devo dizer que fiquei surpreendido com o que encontrei: uma enorme percentagem das mulheres acima dos 25 anos já fez uma IVG. Arrisco afirmar que provavelmente mais de metade das mulheres já o fez... Este número não decorre de nenhum estudo estatístico (se os há), mas apenas do que me apercebo no dia a dia da prática clínica.

Antes de chamar a Ana, uma mulher de 42 anos, a minha tutora deu uma vista de olhos no processo. Rapidamente recordámos a história: tinha estado na consulta há cerca de três semanas, grávida. Tinha entrado descontraidamente no consultório com um teste rápido positivo. Na altura pedimos análises laboratoriais e uma ecografia obstétrica. Assim que saiu do consultória a minha tutora afirmou categoricamente: "Vai fazer um aborto.". Era já mãe de dois rapazes, e não tinha planeado engravidar. Não usava qualquer método anticoncepcional apesar da insistência da minha tutora na consulta de planeamento familiar.
A minha tutora disse-me "Queres ver como fez um aborto?" e chamou a Ana. Entrou no gabinete com o mesmo ar descontraido da outra vez. Sentou-se, e disse: "Tenho uma coisa que se calhar era melhor falar só com a doutora...". A minha tutora respondeu-lhe que eu já sabia o que era, podia contar à vontade... Confirmava-se: tinha tentado abortar. Foi ao Ginecologista/Obstetra em consulta particular fazer a ecografia obstétrica que tinhamos pedido na consulta anterior, onde confirmou a presença de um saco gestacional. Nada contou ao Ginecologista da sua intenção, e comprou os já famosos comprimidos abortivos (aqueles que servem para as patologias do estômago). Desconheço como obteve acesso aos comprimidos (mas reconheço que não deve ser nada compicado, com mais ou menos dinheiro...), mas ingeriu-os na quantidade que lhe foi recomendada pela vizinha. Pouco tempo depois teve uma pequena hemorragia. Explicou: "Da última vez tinha feito no bidé, e vi sair qualquer coisa. Desta vez não tive coragem, e fui para a sanita...". Não me surpreendi com a recorrência da situação, uma vez que as pessoas facilmente se habituam a utilizar o aborto como "método anticoncepcional"... Já não tinha tido mais perdas de sangue, dores ou corrimentos desde então, e vinha agora pedir as análises laboratoriais que confirmariam o sucesso do aborto. Observei-a, e facilmente senti o fundo uterino. Das duas uma: ou tinha um útero grande ou ainda estava grávida. Não tinhamos o relatório da ecografia obstétrica para tentar avaliar a existência de miomas, uma vez que ela tinha queimado o relatório na lareira para apagar os registos daquela gravidez. Qualquer que fosse a situação, uma certeza eu tinha: aquela gravidez não iria seguir por muito mais tempo... Passámos nova ecografia, desta vez "mascarada" de ecografia pélvica. Pensando alto afirmou que teria que ir a outro Ginecologista, não queria contar ao primeiro o que tinha sucedido. Afirmou ainda que se houvesse algum problema iria às Urgências do Hospital fazer uma "raspagem", mas naturalmente não iria contar a verdade. Expliquei-lhe que tal como nós naquele consultório, também os médicos da Urgência não são polícias. Não nos compete, como médicos, julga-la. Mas é importante que tenhamos em mão toda a informação possível para a tratar convenientemente. Lembrou a mediática história do enfermeiro que denunciou às autoridades uma doente que tinha abortado. Relembrámo-la que o enfermeiro em causa tinha sido penalizado por quebrar o sigilo profissional a que estava obrigado, e que as queixas tinham por isso sido retiradas. Encolheu os ombros, sorriu, e disse que fosse como fosse a situação se resolveria. E saiu, com descontracção semelhante àquela com que havia entrado.