segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Ambição

Há já alguns dias ao preparar-me para ver os doentes na enfermaria, deparei-me com o processo clínico de uma velhota de 84 anos, a D. Ilda. Estava internada para investigação de uma anemia importante, com valores que a impediriam concerteza de fazer uma vida normal. Ainda por cima aos 84 anos, quando a definição de vida normal das pessoas está geralmente já alterada. Tinha ainda uma doença das válvulas do coração, que lhe limitaria concerteza ainda mais a actividade física.
Quando entrei no quarto olhei para a cama 2, onde devia estar a D. Ilda, e não a vi. Os lençóis esvoaçavam, enquanto uma auxiliar e outra senhora os desdobravam vigorosamente para fazer a cama. Olhei para o cadeirão ao lado da cama, na esperança de a encontrar, e nada. Dei uma olhadela de longe à doente da cama 3, fechada em mundos interiores, e cumprimentei a doente da cama um, a aniversariante do outro dia. Dando pela minha presença, a auxiliar que fazia a cama sorriu e disse: "Está a ver, doutor? Até já as doentes ajudam a fazer a cama!!". Olhei uma vez, sem ter percebido bem o que me havia sido dito, e voltei a olhar quando finalmente percebi. Era a D. Ilda que fazia a cama com a auxiliar, com uma genica fora de série. Comentei, banzado, a força dela, e disse em tom de brincadeira que já estava pronta para ir embora. Ela olhou para trás, e apercebendo-se do meu ar espantado exclamou: "Doutor! Eu tenho 84 anos! Veja lá se não me estraga, quero viver pelo menos até aos 100! A minha avó foi aos 120, estou nas suas mãos!". Sorri, e respondi-lhe que concerteza não seria eu a espantar-lhe a ambição!