domingo, 8 de janeiro de 2006

O Natal dos hospitais

O verdadeiro Natal dos Hospitais pouco tem de Tony Carreira, Anjos ou Toy. É feito de muitas histórias tristes, que nem a aparente alegria despreocupada da música dita "pimba" consegue esconder.
O Serviço de Urgência estava, no dia 23 de Dezembro, repleto de "utentes". Uso também eu o popular eufemismo porque havia de facto bastantes utentes-não-doentes. O tradicional despejo de Natal, geralmente invisível aos olhos da maioria, apresentava-se em todo o seu esplendor no chamado "corredor externo" do SO. Em fila indiana, as macas com os chamados casos sociais acumulavam-se. Os processos clínicos eram inequívocos, os motivos de internamento eram os mais estranhos, mas todos gritavam uma palavra: abandono. Centenas de "velhotes" são todos os anos abandonados no Serviço de Urgência, sem história pregressa, sem vida de relação com o exterior, sem família. Correcção: com família desertora. O Natal é o culminar desta tendência, e este não foi excepção. Na maca 3 estava o Sr. Amaro, trazido pela família por "mau-hálito". O estado de desnutrição e desidratação, aliado ao facto de o Sr. Amaro viver num mundo apenas partilhado consigo mesmo, fechado para o exterior, obrigava à realização de análises laboratoriais. O mau-hálito não se confirmou, e a promessa de permanência para avaliação laboratorial encorajou os familiares ao desaparecimento. O número de telefone falso obrigou à permanência do Sr. Amaro na maca 3 do SO, rotulado como caso social, apesar da practicamente normal avaliação analítica...
Uma outra face do Natal no hospital é o internamento. Na cama 2, a D. Josefa olhou para mim com um ar desolado, no dia 24, quando lhe disse que não estaria ainda em condições de ir passar o Natal a casa. A dependência de oxigénio que uma pneumonia lhe causava impedia-a de se afastar do hospital. A sua família iria concerteza passar a consoada sem ela, uma consoada mais triste e sombria que as anteriores. No entanto a D. Raquel, na cama 3, estava já clinicamente melhorada - também ela de uma pneumonia. Estava em condições de, ela sim, passar a consoada com a família. Quando lho disse não sorriu, fez antes uma cara apreensiva. Explicou-me que as filhas estavam na Bélgica, que vivia sozinha, e que a relativa dependência de terceiros que ainda apresentava não lhe permitia ir para casa. A D. Josefa, quando saí do quarto, deixava cair uma lágrima de triste revolta pela face.

Este é o verdadeiro Natal dos Hospitais, ou antes uma pequena amostra...