O meu primeiro contacto com a Ana foi relativamente assustador. Tinha ambos os membros superiores ligados, para tentar reduzir os inchaços, e tinha o tórax enfaixado como forma de fazer o penso da lesão na mama esquerda. A face estava extremamente inchada, não tinha cabelo, e falava com muita dificuldade. A sua voz era muito rouca, quase inaudível. Não conseguia andar, e estava sentada no cadeirão. Tinha uma dificuldade respiratória marcada, não conseguindo articular uma frase seguida sem parar para ganhar fôlego. Sentei-me ao lado dela e falei com ela durante algum tempo, tentando perceber tudo o que se tinha passado e estaria a passar naquele momento. Um enfermeiro veio mudar o penso entretanto, e pude observar horrorizado a lesão que tinha no tórax. Era uma massa enorme, com aproximadamente 20 cm de diâmetro, arroxeada, com uma cratera no centro de onde saía tecido necrosado e pús com abundância. A imagem era assustadora, e a Ana olhava para ela com a indiferença de quem conhece bem o seu inimigo.
O problema que tinha levado a Ana às Urgências parecia corresponder à primeira vista ao chamado "Síndrome da Veia Cava Superior". Isto significa que por algum motivo a veia que leva ao coração o sangue proveniente da cabeça e membros superiores não estava a drenar o sangue adequadamente, pelo que estes territórios estavam inchados. O mais provável, tendo em conta a neoplasia da mama em estadio avançado, era que uma metástase estivesse a comprimir essa veia. Por esse motivo pedimos uma TAC torácica. Esta confirmou as nossas suspeitas: havia uma metástase a comprimir a Veia Cava Superior. Iniciou imediatamente radioterapia dirigida especificamente àquela metástase, em acordo com o oncologista que a seguia. O objectivo era reduzir as dimensões daquela metástase para que o sangue fluisse normalmente e pudessemos providenciar um pouco mais de qualidade de vida à Ana.
A TAC mostrou-nos ainda a presença de múltiplas metástases pulmonares e um derrame pleural extenso à direita (líquido em volta do pulmão). Quanto às metástases, nada podíamos fazer, mas o derrame agravava a falta de ar. Decidimos por esse motivo drenar o líquido do pulmão, para melhorar a falta de ar que ela sentia. Assim fizémos.
O internamento foi muito prolongado, e recheado de complicações. Surgiu uma peumonia grave, que tratámos com os antibióticos adequados. O derrame pleural voltou a aparecer, e foram tentadas várias técnicas para impedir o seu reaparecimento, com sucesso limitado. O "inchaço" foi melhorando progressivamente, e a falta de ar foi também melhorando com os sucessivos tratamentos. Aos poucos foi recuperando um pouco da sua autonomia, passando a ser capaz de se alimentar sozinha, se bem que com muita dificuldade.
O António estava sempre presente. Estava muitíssimo perturbado por toda aquela situação, e mantinha a ilusão de a levar novamente para Espanha depois do internamento para retomar a quimioterapia experimental. Todos os dias falava com os enfermeiros responsáveis pela Ana, pressionando para que eles agissem desta e daquela forma. Perguntava coisas sobre os tratamentos que lhe estavam a ser feitos e duvidava constantemente da nossa competência. Todos os dias falava comigo. Perguntava-me pelo estado dela, e questionava a eficácia dos tratamentos que lhe estavam a ser efectuados. Fui sempre absolutamente honesto com ele, e por mais do que uma vez o levei para a sala dos médicos, sentei-me ao lado dele e expliquei-lhe a extrema gravidade e irreversibilidade da situação da Ana. Após essas francas conversas (e sempre na presença de uma médica mais graduada, já que eu era apenas um aluno de 6º ano), ele parecia ceder um pouco mais à cruel realidade da situação que destruia a Ana e a matava um pouco mais a cada dia que passava. Inexoravelmente.
Continua...
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
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