domingo, 27 de fevereiro de 2005

Vidas

O número do processo era bastante recente. Estava na última gaveta, no último separador. A minha tutora não os conhecia, deviam ter sido adicionados à lista de utentes muito recentemente. Estavam duas crianças do mesmo processo marcadas para a consulta, pelo que chamámos os dois nomes. Entrou uma mulher com cerca de 35 anos com duas crianças. Um rapaz com um ar malandro teria cerca de 9 anos, o outro tinha 4. Ambos vinham bastante sorridentes, o mais pequeno ao colo da mãe esbaforida, o outro entrou à frente a correr. A mãe pousava os sacos, enquanto tentava controlar os dois rapazes. O mais pequeno, já no chão, aproximou-se um pouco de mim. Estendi-lhe a mão para um "passou-bem", mas ele não achou muita piada e voltou costas. Começámos a tentar perceber o que se passava com aquela família. O processo tinha alguns nomes, alguns espaços em branco mas com números de utente, e nomes sem número. Uma grande confusão. A mãe começou então a explicar: tinha 6 filhos. Se alguns já tinha dado o nome às administrativas, de outros ainda decorria o processo de inscrição. Todos os filhos eram do mesmo pai. Viviam numa casa que um padre responsável por uma instituição de crianças desfavorecidas lhes tinha entregue. Essa casa ficava mesmo nas traseiras da instituição. O pai das crianças trabalhava na instituição (o padre tinha-lhe dado emprego), e as crianças estudavam na mesma instituição. Algumas delas. A mãe não trabalhava, tinha 6 filhos para cuidar. Tinham-se mudado agora mesmo para lá, anteriormente viviam noutro local onde não tinham condições mínimas de higiene. Ali tinham água e luz, estavam bem melhor agora.
O mais velho tinha estado doente. Tinha asma, e uma infecção respiratória banal tinha-lhe provocado um agravamento da asma. Já tinha estado medicado, e presentemente não tinha sintomas. Enquanto a mãe nos contava toda a história, o mais velho olhava com curiosidade para tudo o que o rodeava. Sorria sempre, com um ar semi-malandro que me despertou imediatamente uma empatia especial. Deve-se ter apercebido da empatia que tinha criado, pois começou a perguntar-me, enquanto a mãe falava com a minha tutora, o que eram os objectos que estavam em cima da mesa. Expliquei o que era o estetoscópio e o esfingmomanómetro. Depois deixou-se observar sem objecções, achou muita graça à minha aparência com o estetoscópio enfiado nas orelhas. Ao exame objectivo estava bem. Durante todo este processo o mais pequeno não saiu do colo da mãe. Estava entretido com o barulho que fazia ao dar pontapés na secretária. Tinha um sorriso um pouco bizzaro, achei-o um pouco estranho. Não falou uma unica palavra durante toda a consulta. Despachado o mais velho, chegou a altura da consulta do mais pequeno. Estava também constipado, ressonava durante a noite. Aos poucos a mãe contou o que sabia da história do pequeno: "Ele não é normal, doutora...", começou. O processo do Joel era de facto já gordo (tinha sido transferido do Centro de Saúde da residência anterior). Desde pequeno que lhe notaram alterações, inicialmente no desenvolvimento estato-ponderal (peso e altura), e mais tarde no desenvolvimento psico-motor. Tinha começado a andar apenas aos dois anos, e actualmente dizia apenas uma meia dúzia de palavras. Tinha sido operado aos "arnóides", segundo a mãe, porque parava de respirar durante a noite. Mas a mãe já não sabia se isso tinha sucedido no ano anterior ou dois anos antes. Começámos a tentar desbravar o espesso processo do Joel, e encontrámos fotocópias de notas de alta do Hospital da área anterior de residência. Tinha sido amplamente estudada a doença do Joel, inclusivamente com estudos genéticos aprofundados. O intenso estudo efectuado não tinha, aparentemente, fornecido resultados. Mas concluiam uma coisa: o desenvolvimento psico-motor do Joel não era melhor porque carecia de estimulação adequada. As notas de alta eram de 2003, e faziam referência a consultas marcadas de Desenvolvimento, Otorrino e Cardiologia Pediátrica, mas não havia registos de 2004. A mãe explicou que, com a mudança de residência, deixou de poder ir ao Hospital. Dessa forma, o aprofundado estudo efectuado não teve qualquer seguimento em consulta porque a mãe não tinha possibilidade de levar o Joel ao Hospital. Naturalmente isso nada acrescentou ao desenvolvimento e ao vocabulário do Joel...
O resto da consulta foi estranha. Era-nos impossível resolver todos os problemas daquela família, e os seus problemas eram tantos que era muito difícil escolher quais tentar resolver primeiro. Referenciámos o Joel de novo ao hospital onde tinha feito toda a investigação, e convencemos a mãe da importância de fazer os possíveis para conseguir leva-lo lá. Porque o tempo passa, e o Joel perde a cada minuto uma oportunidade de se desenvolver da forma mais normal possível.
Quando sairam respirei fundo. Há alturas em que não sabemos o que podemos fazer, mas sabemos que se nada fizermos nada mudará. E uma sensação de impotência invadiu-me quando a porta se fechou. Por um lado senti uma vontade enorme de me envolver, de me oferecer para levar eu o Joel ao Hospital. Quis pegar nele e ensina-lo a crescer, a aprender. Mas o meu lado racional contrariou imediatamente esse meu instinto. Em quantos casos eu irei ao longo da minha vida sentir esse impulso? Mas não é esse o meu papel. Sei que não me posso envolver. Mas custa muito. Tal como custa, nesses dias, adormecer à noite.