quarta-feira, 2 de fevereiro de 2005

O Clínico Geral (3)

Antes de mandar entrar o doente seguinte a minha tutora de Clínica Geral disse-me: "Olha, este... A irmã dele morreu no mês passado... Tinha uma neoplasia pélvica, demorámos imenso tempo a perceber o que se passava com ela. Andou entre o CS e a Ginecologia do Hospital tempos e tempos até aquilo se manifestar a sério. Tinha 35 anos, coitada. A mãe deles veio cá ontem, está com uma depressão, claro. Ele deve cá vir só mostrar exames. Anda no mergulho, veio cá pedir-me os exames que precisa para a licença de mergulho. Também deve andar a antidepressivos, numa situação destas... E ele não deve ter aguentado isto muito bem, já quando o pai morreu se foi muito abaixo.". Entra o doente, confirma-se tudo.
Mal acaba de sair este doente irrompe pela sala de consulta uma senhora obesa, rosada e ofegante. "Esqueceu-me da consulta de ontem, Doutora! Atenda-me lá hoje, Doutora!". Por escassos momentos fez-se difícil: "Só se for aqui com o Dr. JC! Pode ser?". A doente olhou para mim, atrapalhada, e disse que "não desfazendo Doutor, até pode ser muito bom médico, mas quem me tira a minha Doutora tira-me tudo!". Como a consulta hoje (surpreendentemente) até estava mais ou menos calma, autorizou a consulta. Seguiu-se uma explosão de abraços e beijinhos, entre os quais exclamava "É a minha Doutorazinha! Que é que eu fazia sem ela?!". Assim que ela saiu, a minha tutora disse-me que ela não tinha doença nenhuma nova, de certeza, só lá ia para fazer visita. Pude comprovar no final das consultas que ela tinha toda a razão do mundo.
Pelo meio das consultas surgem pedidos de renovação de receituário (os doentes com medicações crónicas deixam nos administrativos os medicamentos para "a Doutora fazer o favor de passar"). Entre a papelada um pedido de "certificado médico para entrar com o carro no cemitério" (esta desresponsabilização da sociedade por troca com a responsabilização do médico atingiu os limites do que eu consideraria aceitável, mas enfim...). "Então a mulher dele já morreu... Coitada, andou aqui num calvário com um linfoma... Não tem sorte nenhuma na vida, este homem, parece que lhe acontece tudo!".

Hoje saí do Centro de Saúde impressionadíssimo. Como é possível que, com uma lista enorme de utentes, a minha tutora saiba tudo sobre a vida, doenças e morte de cada um dos seus doentes?! Compreendo perfeitamente que os doentes digam, com orgulho "é a MINHA Doutora!!". De facto impressionante.