Uma determinada manhã, estava a Ana equilibrada tanto quanto possível na terrível situação em que se encontrava, a minha tutora entendeu que ela estava em condições de ter alta. Será mais adequado dizer que ela estava estável o suficiente para ir para casa passar os (poucos) últimos dias da sua vida. Escrevi na nota de alta um resumo do que se tinha passado com a Ana durante o internamento, e a minha tutora assinou todos os papéis referentes à alta. Informei a Ana da situação, o que a deixou um pouco apreensiva por não saber como poderia ter em casa as condições necessárias. Tranquilizei-a, certamente a Assistente Social iria enquadrar adequadamente a situação. A minha tutora falou pelo telefone com o António. Ficou bastante atrapalhado com a decisão, mas prometeu ir busca-la ao hospital naquela tarde.
Na manhã seguinte tudo foi muito confuso. Ao chegar ao serviço, constatei que a Ana ainda estava internada. Perguntei à Enfermeira Chefe se tinha acontecido alguma coisa em relação com o seu estado clínico. A Enfermeira Chefe afirmou: "Não, o marido é que não a veio buscar. Disse que vinha mas não veio. Abandonou-a.". Senti-me imediatamente revoltado com a situação, e contei tudo isto à minha tutora. Nisto fomos informados que o António estava ao telefone. Uma vez que tinha sido sempre eu a lidar com ele, a minha tutora entendeu que deveria ser novamente eu a falar com ele. E assim foi. Perguntei-lhe porque é que não a tinha vindo buscar, ao que me respondeu não estar preparado para a levar para casa, onde não tinha condições para a ter. Quando lhe transmiti que a impressão com que o serviço tinha ficado era a de que ele a teria abandonado disse-me que se dirigiria de imediato ao hospital. Já transtornado com toda aquela confusão, recebo em seguida uma informação que me gelou o peito. A Assistente Social informou-me que foi ela mesma a dizer ao António que não valia a pena ir buscar a Ana enquanto não se conseguisse encontrar um local com cuidados de enfermagem adequados à fase terminal em que se encontrava. Apercebi-me que tinha havido um enorme mal-entendido provocado pela falta de comunicação dentro do serviço, e que por causa dele eu tinha "acusado" injustamente o António de deixar a impressão de abandono.
Assim que o António chegou ao hospital chamei-o para esclarecer tudo o que se tinha passado. Expliquei todos os pormenores do mal-entendido, e pedi as minhas sinceras desculpas pelo papel que eu nele tinha tomado. Contou-me entretanto que tinha encontrado um local onde a Ana poderia ficar internada temporariamente, onde teria acesso aos cuidados de que necessitava. Despedimo-nos com um aperto de mão, ambos com lágrimas nos olhos. E nessa tarde a Ana saiu do hospital.
Dois meses mais tarde o Chefe de Serviço chamou-me ao seu gabinete. Perguntou-me o que sabia da situação da Ana, do seu internamento e da sua alta. Estranhei as perguntas, mas sentia a consciência perfeitamente tranquila em relação ao que tinha sucedido e às "pazes" que tinha feito com o António. Explicou-me, o Chefe de Serviço, que tinha chegado uma queixa ao Gabinete do Utente do Hospital. Com um ar grave, que me preocupou bastante, explicou-me que a carta tinha sido escrita pelo António, e que se tratava nitidamente da escrita de um homem perturbado por uma situação extremamente desagradável. Afirmou que, sendo eu aluno do 6º ano, o único elemento médico responsabilizável pela queixa seria a minha tutora. Fiquei muito apreensivo quando me disse, mais uma vez com um tom sério e grave, que não sabia se seria prudente eu ler a queixa. Informou-me do teor extremamente agressivo da carta em relação à minha pessoa. Pedi, porque não poderia dormir descansado sem conhecer o conteúdo da carta, para ter acesso a uma cópia da carta.
Saí do serviço com o coração nas mãos, junto da cópia da carta que levei para ler mais tarde. Não consegui ler "mais tarde", assim que me encontrei sozinho num corredor mais recatado do hospital comecei a ler a carta. Tinha cinco páginas, onde o António dirigia para mim toda a raiva que tinha contra o cancro que matou a Ana dez dias depois da alta hospitalar. Li o meu nome repetidas vezes, adjectivado da forma mais atroz e cáustica. Afirmava ser eu "um desses tipos" que entra para o curso de Medicina sem qualquer vocação. Afirmou ter sido eu o responsável pela morte da esperança, quando incessantemente o assegurava da morte certa. Sentia-me tonto a cada linha que lia, sentia-me pisado, subtraído de mim mesmo. Lia o meu nome vezes sem conta, rodeado das mais ferozes e enraivecidas acusações. Acusava-me de falta de humanismo, de falta de sensibilidade, de excesso de presunção e de ignorância. Aconselhava-me a escolher outro rumo para a minha vida, outra profissão, outros saberes. Contava-me como eu não prestava para ser médico e deveria repensar a minha vocação. Responsabilizava-me de forma exclusiva, por fim, pela morte da Ana. Crescia em mim, a cada linha que lia, uma raiva cada vez maior, que se libertou numa enxurrada de lágrimas.
Amadureci muito com este episódio. Não teve, para mim, consequências legais ou profissionais, mas marcou-me muito. Custa-me ainda hoje, cerca de um ano depois, escrever sobre o que aconteceu. Ainda hoje sinto um nó na garganta, uma imensa tristeza, ao recordar aquelas palavras cruéis. Sobretudo cruéis, muito cruéis. A raiva inicial desapareceu depressa, e percebi que aquela carta era o produto de um sofrimento enorme por que passava o António. A revolta do António em relação à doença que matou a Ana foi integralmente transferida para mim. E, obviamente, como poderia eu não perdoar um homem profundamente perturbado por uma dor imensa?
Muitas vezes, hoje em dia, me lembro do que aprendi com esta situação. Aprendi a defender-me da realização de tarefas que não devem ser da minha competência. Aprendi a resguardar-me da entrega excessiva, do investimento emocional excessivo. Aprendi a fugir dos potenciais problemas, fiquei um pouco mais frio. Para me escudar de sofrimentos semelhantes. Não perdi a capacidade de sentir. Mas muitas vezes, hoje em dia, recordo o sabor a fel.
domingo, 20 de fevereiro de 2005
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