sábado, 12 de fevereiro de 2005

Fel (parte 1)

A Ana tinha descoberto aos 35 anos que tinha um cancro da mama direita. Fez na altura mastectomia radical (remoção da mama direita por inteiro) e quimioterapia. Quando tudo parecia controlado, apareceu uma metástase (massa tumoral originária do mesmo tumor mas numa localização diferente) na mama esquerda. Mais uma vez, desta feita aos 38 anos, fez mastectomia radical esquerda, e novamente quimioterapia.
Com o passar do tempo começou a perceber-se que o pesadelo não tinha passado, estava apenas adormecido. Surgiu uma recidiva local (reaparecimento no mesmo sítio) da metástase na mama esquerda, e as sucessivas tentativas de remoção do tumor pareciam ineficazes. Voltava sempre a aparecer.
Aos poucos começavam a manifestar-se metástases noutros locais. Uma metástase numa vértebra atirou-a para a cama. O crescimento desta metástase comprimia-lhe a medula espinhal de forma tal que practicamente lhe paralisava ambas as pernas. Fez radioterapia dirigida a esta metástase, para a fazer diminuir de tamanho e tentar recuperar um pouco a capacidade de andar. As melhoras que teve, pouco duradouras, permitiam-lhe apenas deslocar-se com ajuda.
Também no cérebro existiam metástases. Suspeitou-se da sua existência pelas dores de cabeça que a Ana referia, bem como falta de força no braço esquerdo. Os pulmões também não escaparam, e as metástases pulmonares provocavam-lhe uma falta de ar constante. Perto dos pulmões, metástases nos gânglios linfáticos comprimiam-lhe o esófago, pelo que tinha dificuldade em engolir. Comprimiam ainda um nervo que inerva as cordas vocais, pelo que ficou muito rouca. Fazia-se entender com muita dificuldade, faltava-lhe a rouca voz que lhe restava.
Foi sempre, ao longo da evolução da sua doença, seguida por um oncologista (especialista em cancro). Visto tratar-se de uma mulher muito nova foram tentadas todas as técnicas terapêuticas conhecidas. Fez inúmeros ciclos de quimioterapia e radioterapia, cujos efeitos devastadores a debilitavam para além do que a própria doença era capaz.
O António, o seu marido, sofreu muito durante todo este tempo. Esteve sempre presente ao seu lado, sempre muito preocupado com o seu bem estar. Mais do que isso, o António sempre se recusou, até mesmo quando o oncologista o disse a olhar-lhe nos olhos, a admitir que era chegada a altura de deixar a morte chegar. Não acreditava que diminuir o sofrimento fosse a única coisa passível de ser feita. Levou a Ana para Espanha para fazer quimioterapia experimental. O oncologista, avisando da fatalidade da evolução da doença naquela fase avançada, não lhe negou essa tentativa. Poderia ele extirpar o último fio de esperança que o António e a Ana fitavam no horizonte? Ciclos poderosíssimos de quimioterapia experimental, cuja eficácia não estava demonstrada, debilitaram a Ana de uma forma extrema. E, como tinha sido dito pelo oncologista, não curaram a doença. Nem sequer atrasaram a sua progressão.
Alguns dias depois do regresso de Espanha surgiu um novo sintoma. Toda a face e membros superiores estavam "inchados". Foi por esse motivo que se deslocou às Urgências de um grande Hospital de Lisboa. Ficou internada no Serviço de Medicina Interna onde eu estagiava como aluno do 6º ano, ao cuidado da minha orientadora de estágio.

Continua...