terça-feira, 8 de fevereiro de 2005

O infinito mundo do papel

Vivemos no país do papel. Precisamos de papéis para tudo, desde que nascemos, passando pela escola, pelo desporto, pela faculdade, pela vida profissional, pelo casamento, pelo divórcio... Desconfio que até para morrer temos que ter um atestado médico em como estávamos vivos a priori... Para tudo precisamos de certificados, atestados, comprovativos.

O médico, especialmente o Clínico Geral, não foge à regra. Fora todos os papéis que tem que tratar para seguir a sua vida normal, no trabalho enfrenta uma pilha de papéis para tratar, que distraem e ocupam o médico afastando-o do seu verdadeiro objecto de trabalho: o doente.
Por um lado temos a repetida exigência da responsabilização do médico para a desresponsabilização da sociedade. Hoje em dia é preciso atestado médico para fazer um contrato, para entrar para a ginástica, para a escola, para a faculdade, para faltar ao emprego e até, imagine-se, para estacionar o carro dentro do cemitério. Estranho mas verídico: na cidade onde trabalho o familiar de um doente falecido precisa de declaração médica para estacionar o carro no interior do cemitério, alegando que está impossibilitado de se deslocar até à campa por motivos de saúde. É que o cemitério é grande... As companhias de seguros, as escolas, as empresas, os ginásios e até, imagine-se, os cemitérios, desresponsabilizam-se de todo e qualquer mal que possa acontecer, responsabilizando o médico por tudo e por nada. Mas alguém acredita que um atestado de robustez física é absolutamente fidedigno? Mesmo que o médico que o passe faça um exame objectivo completíssimo, faça uma série de exames complementares de diagnóstico da mais alta tecnologia, isso iliba o doente de adoecer? Por muito apertado que seja o crivo, há sempre situações inesperadas! E se elas surgem quem é responsável? O médico, claro.
Depois vêm as receitas. Todos os dias o Clínico Geral tem uma pilha de receitas para passar, que os doentes deixam nas administrativas. Não são duas ou três receitas: na sexta-feira eu e a minha tutora estivémos 1h30 a passar receitas, declarações e exames complementares de forma ininterrupta. No final, tinhamos uma pilha de receitas enorme, todas passadinhas. À mão, porque infelizmente a informatização está longe, muito longe, de chegar a todos os Centros de Saúde. E nessa hora e meia, que seriam duas horas e meia se eu não estivesse a ajudar, quantas consultas poderiam ser feitas?! Quantos doentes deixavam de ir para casa a resmungar com o médico, o governo e o mundo porque já não havia consultas para hoje, apesar de ter chegado ao CS às 8h30 da manhã? Isto, claro, não esquecendo que o grau de satisfação do Clínico Geral seria superior se se dedicasse mais aos doentes e menos aos papéis, o que aumentaria exponencialmente a sua produtividade...
Claro que há regras a cumprir ao preencher os mil e um papéis... Se é ADSE, a receita vai no papel preformatado, mas se é ADME já não... Mas para os exames complementares só o SNS vai no papel verde, para os outros subsistemas vai no papelinho branco timbrado. Há depois o papel castanho para a referenciação para o Hospital, que serve também para as fisioterapias, justificação de exames complementares de diagnóstico, etc... Ah, e quanto a esses, há alguns que têm que ser assinados pela Directora do Centro, que assina de cruz porque não vai questionar a competência do colega. Para a função pública passam-se atestados, para os outros tem que ir o papel da baixa. Todos os papéis precisam da mágica vinheta cor-de-burro-quando-foge, sinal do poder burocrático do médico. Não esquecer ainda que, no Hospital, o número da Ordem dos Médicos se põe nas requisições do serviço de sangue, enquanto que nas do Laboratório tem que ir o número mecanográfico do hospital...

Vivemos no infinito mundo do papel. Se simplificarmos um pouco as coisas, mantendo obviamente a segurança, rigor e inviolabilidade indispensáveis a estas coisas, trabalhamos todos mais felizes e produzimos todos mais trabalho. E trabalho é riqueza, pessoal e colectiva. Como dizia o outro, "Deixem-nos trabalhar!!".