A Ana entrou no consultório com um ar estafado. Estava grávida de termo, e parecia estar longe de parir. Rebolou-se até à cadeira, sentou-se com um estrondo, e ficou parada, ofegante, durante uns segundos. Depois disse "Olá Doutor! Pufff, pant...". Sorriu, e eu sorri de volta. As varizes estavam cada dia maiores, as hemorróidas atingiam o auge, a barriga estava enorme e pesava trezentos quilos. Além disso a cara estava inchada e escura, e a barriga enorme tinha uma enorme linha negra que parecia o primo vertical do equador. Respirava mal, e não tinha fôlego para andar dez metros de seguida. Mas disse-me "Está tudo óptimo! Já podia era nascer, mas o gaiato não há meio de querer sair... Temos que ter paciência, não é?". Despiu-se afogueada, e com muita ajuda lá rebolou para cima da marquesa. Fiz o toque obstétrico, e as notícias mantinham-se: "Ana, o colo está fechado, formado, e a apresentação está altíssima... Traduzindo, não quer sair de modo nenhum!". Sorriu, chamou-o de preguiçoso, e voltou a rebolar para o chão. Vestiu-se e sentou-se, sempre com o mesmo ar sorridente e ofegante. "Volte na terça feira, estamos de banco. Faz 41 semanas, e não podemos esperar muito mais. Teremos que induzir o parto, a menos que ele se decida a sair sozinho! Vá passear para o Jumbo, pode ser que ele vá descendo!". Deu uma gargalhada e disse que apesar de não poder dar dez passos seguidos iria fazer um esforço. Sempre com um sorriso despediu-se "até terça!", e rebolou novamente para fora da sala.
A Cláudia esteve de manhã na Urgência. Estava com 37 semanas de gravidez, uma gravidez normalíssima. Foi lá porque tinha "muitas, muitas dores das contracções! A barriga fica dura, dura, parece pedra!". O toque mostrou que aquele útero prometia manter o bebé lá dentro durante mais uns tempos, e o CTG mostrou uma absoluta ausência de contracções. Quando confrontada com a realidade dos exames mudou o discurso "Tenho tido algumas contracções, mas não aguento é mais a gravidez! Estou farta!". Explicámos que para o bem do bebé não se deveria induzir o parto. A maturação completa do feto ainda não tinha chegado, e seria nocivo retira-lo antes de tempo. Quando saiu a minha tutora explicou-me: "Tem vindo TODOS os dias à urgência desde as 32 semanas! A mãe é auxiliar de acção médica neste Hospital, e todos os dias insiste com TODOS os médicos do serviço para que induzam o parto à filha.".
Sete da tarde, chamamos a próxima doente. Era a Cláudia... Tinha caído, disse. "Mas ficou com dores, ou contracções, ou perdas de sangue, ou perdas de líquidos?". Nada disso, doiam-lhe as costas da queda, "Doutora, faça-o nascer agora!". Mais uma observação, um toque, um CTG, e o mesmo diagnóstico: estava grávida, e ia assim ficar por mais uns tempos... Saiu da sala, contrafeita e bem lampeira (para quem tinha caído), e volta a entrar com a mãe. Esta pede (pela enésima vez) o favor "especial" de fazer nascer o menino. " A Cláudia já não aguenta, olhe para ela!" - e imediatamente ela monta um ar infeliz. A mesma conversa: "Não pode ser, blá blá blá, deixe o bebé crescer, blá blá blá, é melhor para ele, blá blá blá, não há indicação nenhuma para induzir...". Saem as duas, lampeiras e contrafeitas.
Três dias depois, passo descontraidamente no corredor e vejo a mãe da Cláudia ao telemóvel. Inadvertidamente abrandei e ouvi um pouco da conversa: "Filha, com esta médica não te safas... Voltei a pedir-lhe por tudo, diz que não há desculpa para induzir... Até lhe disse que tinhas caido outra vez, mas nada feito. Tenho que ir falar com o Dr. X, ele é mais acessível e está de urgência hoje. Filha, podes passar por cá agora? Diz-lhe que caiste...". Devo ter mudado de cor, e afastei-me para não ouvir mais nada...
segunda-feira, 10 de janeiro de 2005
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