A Miroslava, Ucraniana de 25 anos, estava grávida de 38 semanas. Estava a ser seguida há duas semanas nas consultas de Obstetrícia do Hospital, e vinha hoje ao Hospital para fazer CTG (cardiotocografia - é um exame que mede as contracções uterinas e a frequência cardíaca do feto). O CTG mostrou que havia já bastantes contracções do útero, e a frequência cardíaca do feto era normal e não mostrava sinais de qualquer problema com o bebé. Como a última ecografia mostrava que o bebé era pélvico (estava de "rabo virado" para a saída) resolvemos fazer uma ecografia rápida só para avaliar a posição do bebé. Confirmou-se a suspeita: era pélvico. O toque mostrava que o colo do útero não estava ainda preparado para o parto. Ponderou-se então se se deveria deixar seguir o trabalho de parto ou se se enviava a Miroslava para casa, para voltar na semana seguinte (ou mais cedo caso o trabalho de parto começasse entretanto ou surgisse algum sinal de alerta). O factor que pesou mais no sentido da permanência no Hospital foi a distância a que vivia a Miroslava: vivia a mais de 100 Km do Hospital. Foi uma decisão um bocadinho polémica, já que não havia um motivo verdadeiramente palpável para a indução do trabalho de parto (faltavam duas semanas para o termo da gravidez e a única coisa que havia de significativo era a contractilidade uterina). Mas assim foi: internou-se a Miroslava. Com a evolução da situação, tornou-se claro que a posição do bebé dentro do útero era desfavorável ao parto "normal" por via vaginal, e decidiu-se avançar com a cesariana. Não havia qualquer sinal de problemas com o bebé, e a Miroslava optou por um tipo de anestesia em que a parte inferior do corpo fica anestesiada, mas a pessoa fica acordada durante a cirurgia. Foi então para o bloco operatório, foi anestesiada, e começou a cesariana. Estavam duas Obstetras a operar, e eu estava como ajudante. Foi feita a incisão na pele, afastados os músculos abdominais, e finalmente entrou-se na cavidade abdominal. O passo seguinte foi a incisão no útero, por onde teria que saír o bebé. Foi então que, como sempre acontece, jorrou líquido amniótico da incisão feita no útero. No entanto algo não estava bem: o líquido amniótico não era da cor normal, era antes esverdeado. As únicas palavras ditas, uma vez que a Miroslava estava acordada, foram suficientes: "O líquido é meconial.". A sala gelou. Todos sabiam o que aquilo significava: existia mecónio (fezes do bebé) no líquido amniótico, o que indicava sofrimento fetal. Os Pediatras prepararam-se imediatamente para a possibilidade de ter que reanimar o bebé. Rapidamente começaram a tirar o bebé do útero. Sairam as pernas e o rabo, e algo de pouco frequente aconteceu: o útero contraíu-se violentamente, apertando o que ainda lá estava do bebé. As duas Obstetras começaram a lutar (de uma forma muito física) para tirar o bebé, mas parecia não resultar. Foi com muita dificuldade que sairam os ombros, e a cabeça parecia recusar-se a sair. O bebé começou a tentar respirar, ainda com a cabeça lá dentro, o que parecia piorar as coisas: estava a aspirar líquido amniótico e mecónio. Entretanto, e com muitíssima dificuldade, percebeu-se que o cordão umbilical estava enrolado à volta do pescoço do bebé (circular). Retirou-se a circular, mas ainda assim o bebé não saia. Na sala respirava-se uma tensão imensa, e a Miroslava começava a perguntar se estava tudo bem. Já ninguém podia evitar praguejar, apesar de baixinho, já que a situação parecia cada vez mais difícil. Da rápida remoção do bebé dependia a sua sobrevivência e o seu estado neurológico. Poderia morrer ou ficar com lesões cerebrais irreversíveis se demorasse mais alguns segundos do que era suposto. Entretanto mais um dado: uma segunda circular. Com dificuldade retirou-se a segunda circular. O cordão umbilical era fininho demais, o que justificava parcialmente o facto de o bebé estar em sofrimento e ter o líquido meconial. Com bastante força de braços, e com uma ansiedade tremenda, finalmente conseguiu-se retirar a cabeça do bebé do interior do útero. Cortei rapidamente o cordão umbilical, e em poucos segundos os Pediatras levaram o bebé em passo de corrida para o berço. Ainda no bloco, ouvi a agitação que decorria lá fora, enquanto tentavam reanimar o bebé. Entretanto, e visivelmente stressadas, as Obstetras retiraram a placenta do interior do útero, e começaram a concluir a cirurgia. Entretanto, o que trouxe um suspiro de alívio, ouvimos o bebé chorar. Significava, pelo menos, que estava vivo.
Tanto quanto é possível saber, o bebé parece estar bem. No entanto, só a longo prazo se entenderão as consequências de tão complicado trabalho de parto. É este um dos casos em que, por mais que se tenha a certeza que se fez tudo o que estava ao alcance, nunca se fica com a consciência perfeitamente tranquila. Poderá confortar um pouco, quanto muito, perguntarmo-nos o que teria acontecido se se tivesse optado por a enviar para casa. O bebé estava em sofrimento, e a distância a que vivia a Miroslava poderia comprometer o resultado de 38 semanas de ansiedade. Foi olho clínico ou intuição?
quarta-feira, 26 de janeiro de 2005
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