domingo, 2 de janeiro de 2005

Uma situação stressante

No 6º ano do curso fiz um estágio de Anestesiologia. Muitas pessoas acham que os Anestesistas não são médicos, mas são. E para quem acha que não tem nada que saber, desengane-se. O anestesista não tem como única função "pôr o doente a dormir", ele mantém a vida do doente durante a cirurgia, responde a todas as situações inesperadas que aconteçam, e realiza uma série de técnicas complexas. São os anestesistas que olham para os complicados monitores utilizados nas cirurgias, olhando assim pela vida dos doentes. Isto para não falar do trabalho do anestesista fora do bloco operatório - já que alguns optam por trabalhar no Intensivismo (com os doentes MUITO doentes cujo equilíbrio é mais instável e por isso necessitam de cuidados permanentes - Intensivos). Na minha curta passagem pela Anestesiologia tive oportunidade de assistir a uma situação - felizmente - rara, muito stressante.

A doente que estava para ser operada tinha uma massa muito volumosa dentro do abdómen, que se supunha tratar de um "quisto" do ovário apesar de os meios complementares de diagnóstico não terem sido suficientemente esclarecedores quanto à sua origem e características. A cirurgia consistia em "abrir para investigar", que ao fim e ao cabo é a tradução do termo científico "laparotomia exploradora". Sendo a massa muito volumosa, e de origem desconhecida, a incisão era vertical e muito grande. Após a indução da anestesia começámos a realizar algumas técnicas, nomeadamente a colocação de um catéter venoso central. Isto consiste na introdução de um catéter (um tubo fino) numa veia do pescoço, para administração de fármacos e soros que não podem ser administrados numa veia periférica (como sendo as da mão). Trata-se de um procedimento muito frequente, que muito raramente dá complicações. Mas naquele caso não foi assim. Enquanto a anestesista colocava o catéter, eu estava descontraidamente a olhar para o monitor. De repente vejo a linha do electrocardiograma alterar-se, ficando semelhante à de um sismógrafo durante um grande sismo. Meio incrédulo, mas já assustado, aviso "Dra., eu... acho que está em fibrilhação...". Ela olha para o monitor e diz "Nah, eles devem estar a usar o Bzzz*... Estão a usar o Bzzz? Não? - voltou a olhar para o monitor - então...". E de repente começou o grande stress. Gritou "tragam o desfibrilhador!!!", os cirurgiões começaram a fazer massagem cardíaca, enquanto enfermeiros e auxiliares corriam fora da sala à procura do desfibrilhador. Por avaria do monitor da sala ao lado o desfibrilhador estava a servir para monitorizar o doente dessa sala. Imediatamente trouxeram o desfibrilhador, retiraram-se os panos cirúrgicos e a anestesista deu o primeiro choque: "Está carregado! Afastem-se! Vou chocar!". Ao "clack" dos botões e da descarga seguiu-se uma contracção de todos os músculos da doente. Estando a cirurgia a decorrer há algum tempo (já a massa tinha sido removida), o abdómen estava completamente aberto. Com o choque, os intestinos practicamente saltaram para fora do abdómen, para tão depressa como tinham saído voltarem ao seu lugar. Olhos no monitor, onda de choque, um segundo de suspense, "Continua em fibrilhação! Carregar a 300 Joules! A carregar... Está carregado, afastem-se todos, vou chocar, afastem-se!" e "CLACK!". Novamente os intestinos saltaram, novamente regressaram. Mais uma vez todos os olhos da sala se voltavam para o monitor, e passada a onda de choque veio... ritmo normal! "Conseguimos, vamos rapidamente pôr panos novos, os cirurgiões trocam de fato e luvas, vamos acabar isto!". Devolvemos o "monitor improvisado" à sala do lado e esquecemos o catéter venoso central, enquanto os auxiliares iam buscar novos panos, fatos e luvas. Fomos observar os registos informáticos nos parâmetros vitais recolhidos durante aquele tempo, e apercebemo-nos que toda a reanimação tinha decorrido em 3 minutos! E parecia ter demorado meia hora... Finalmente, a cirurgia concluiu-se com sucesso e o ritmo cardíaco ficou normal até ao fim. Mas o nosso ficou um pouco acelerado até ao fim da cirurgia...


* Bzzzz é o nome "carinhoso" do bisturi eléctrico... :)