quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

Quando nos viramos contra nós próprios

As doenças autoimunes são doenças em que o nosso sistema imunitário (o "exército" de defesa do nosso organismo contra agentes externos) deixa de saber reconhecer, de uma forma mais ou menos extensa, o que é do próprio organismo. Dessa forma, o sistema imunitário combate os nossos órgãos e células como se de organismos estranhos se tratassem. Se há doenças autoimunes específicas de determinados órgãos, outras há que afectam todo o organismo. A doença-mãe de todas estas doenças é o Lupus. Mas estas doenças podem-se manifestar de variadíssimas formas.

A Ana tinha 25 anos quando decidiu engravidar. Por motivos que na altura ninguém soube explicar, teve vários abortos espontâneos. Aos 30 anos aconteceu uma coisa dramática: de um dia para o outro deixou de ver do olho esquerdo. Na altura os médicos explicaram-lhe que aquilo tinha sido provocado por um "entupimento" da artéria que nutre o olho. Ficou com perda completa de visão no olho esquerdo. Um ano depois outro susto bizarro: sentiu toda a metade direita do corpo dormente e paralizada. Foi transportada para o Hospital, onde lhe foi diagnosticado um AVC. Situação raríssima em mulheres jovens, suspeitou-se da presença de alguma outra doença por trás daquele AVC, mas na altura não se conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Recuperou apenas parcialmente das sequelas do AVC. Assustou-se novamente quando, poucos meses depois, sentiu a perna direita ficar muito inchada e azulada. No Hospital foi-lhe diagnosticada uma flebotrombose (coágulo numa veia profunda da perna). Recuperada desta situação passou a ser seguida de muito perto pelos médicos, que após fazerem variadíssimas análises à coagulação, entre outras coisas, à Ana nada encontraram. Algum tempo depois surgia uma hipótese de resposta para o problema: uma doença autoimune até há muito pouco tempo desconhecida causava abortos de repetição e tromboses várias nas artérias e veias dos doentes. Quando se tornou possível, analisaram o sangue da Ana no sentido de verificar se tinha o Síndrome dos Anticorpos Anti-fosfolípido (SAF). Entretando a Ana tinha já perda parcial de visão no olho direito, e tinham-lhe sido detectadas alterações nas válvulas do coração que condicionavam gravemente a sua função e punham em risco os restantes órgãos. Quando finalmente chegaram as análises, confirmou-se o diagnóstico de SAF.

Acompanhei o caso da Ana durante o 3º ano da Faculdade. Na altura tudo aquilo me parecia bastante estranho. Muitas coisas diferentes aconteciam na mesma doente, em pontos diferentes do organismo, e se umas pareciam ter uma causa (como as tromboses venosas e arteriais), outras eram diferentes (como as lesões nas válvulas do coração). Acompanhei de perto a doente, e cheguei inclusivamente a assistir à cirurgia cardíaca que lhe foi feita para substituição da válvula aórtica. A terapêutica farmacológica nunca chegou a ser suficiente para controlar a doença completamente, mas desde então perdi o rasto a esta doente. Lembro-me de pensar, na altura, como podia ser dramático quando o nosso corpo se vira contra si próprio...