Chamámos pelo intercomunicador a D. Maria. Era uma primeira consulta, de Ginecologia. Entrou uma senhora de idade, devia rondar os 75 anos, acompanhada por outra mais nova, que lhe amparava os passos. Sentou-se, lentamente, na cadeira à nossa frente, e perguntou "Então mas eu estou doente, é?". Sorrimos, perante o aparente sentido de humor da D. Maria. Quando perguntámos o que a tinha levado à consulta de Ginecologia perguntou-nos "mas afinal eu estou aonde?". Afinal parecia que a pergunta da D. Maria tinha sido sincera, não era de facto uma questão de sentido de humor. Quando questionada sobre a sua idade, a D. Maria não esteve com meias medidas: "Sei lá eu! Não me lembra. Diz aí 67? Deve ser isso, deve!". A senhora que a acompanhava corrigiu: "São 77.". Reparei então que envergava uma bata da Santa Casa da Misericórdia. Seguiram-se as perguntas da praxe, e todas levaram um ponto de interrogação à frente na ficha de consulta. Explicava a carta do Centro de Saúde que a D. Maria tinha um prolapso uterino. Isso significa que, por vários motivos entre os quais o enfraquecimento dos tecidos e músculos, o útero está "descaído" para fora da vulva, levando consigo a vagina. Mas a D. Maria não sabia, sabia lá!, se tinha ou não uma "bola" a sair "lá por baixo". Com alguma dificuldade levantámo-la da cadeira, para a deitar na marquesa de observação ginecológica. Perguntava repetidamente "Quem são estes? Onde vamos? O que é que estou aqui a fazer?", perguntas às quais dávamos a resposta, para de novo serem repetidas. Confirmava-se o diagnóstico. Além do prolapso tinha também rectocelo e cistocelo (o que quer dizer que com o útero eram arrastados para fora da vulva o recto e a bexiga). Segundo informações da acompanhante, a D. Maria não sangrava dali, e quando se falou em cirurgia prontamente encontrou a lucidez para dizer que "não preciso de nada disso, está muito bem assim, não quero saber disso!". A D. Maria não tinha família, vivia num lar da Sta. Casa da Misericórdia, e tinha doença de Alzheimer. Não sentimos necessidade de insistir com a cirurgia, enquanto não perdesse sangue, e já que não demonstrava vontade de ser operada. Voltou a sentar-se, continuando a perguntar as mesmas perguntas: "Quem são estes? Vamos a algum lado?". Depois da consulta, a acompanhante ajudou-a a levantar-se. Quando lhe vestia o casaco ela perguntou, mais uma vez, se iam sair, se iam a algum lado. Quando nos despedimos perguntou-nos quem éramos. O que lhe queríamos. Perguntou depois à acompanhante se eramos conhecidos dela. E assim foi, passo a passo, de volta para o seu lar, com o seu prolapso uterino.
sábado, 29 de janeiro de 2005
Subscrever:
Comment Feed (RSS)
|